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sábado, 1 de fevereiro de 2014

Obreiros

Por Rodrigo Amém

Dona Ana suportou o máximo que pode. Logo ela, fiel opositora das iniquidades, honrosa participante das atividades pastorais e pregadora dos bons costumes. Sentia-se aviltada diante daquele acinte diário. Lembrava-se com desgosto da manhã em que tudo começara.

Acordou cedo e, como de costume, dirigiu-se à igreja para a liturgia matinal. Já na volta, comprou pães e leite e tomou o rumo de casa. Sentiu suas pernas tremerem à medida que seus passos, esguios e decididos ganhavam a calçada. Sentia a terra toda tremer, de fato. Parou e notou que os abalos surdos continuavam a desdém de seus passos cessados.

Percebeu que se tratava de um bate-estaca, ruidosamente localizado na construção na quadra vizinha à sua residência. Ao aproximar-se, percebeu as colunas de concreto tomadas de operários, como um esqueleto povoado por formigas. Viu também caminhões basculantes rodopiando suas caçambas ásperas e poeirentas. Ao fundo, como um maestro, o gigantesco bate-estaca marcava o ritmo do caos, subindo e descendo em movimentos obscenos. Lembrou-lhe um altar pagão, fálico, adorado por uma corja de bárbaros suados, carregando sacos de cimento sobre seus torsos desnudos. Dona Ana sentiu um arrepio e fez o sinal da cruz.

Prosseguiu sua caminhada de pose altiva em resposta ao prosaico cenário do canteiro de obras. Um súbito silvo agudo invadiu-lhe os tímpanos, seguido de um jocoso impropério. Ana sentiu seu sangue gelar. Parou e virou-se para a construção que jazia sobre suas costas. Voltou seus olhos para o alto e encontrou três homens muito feios e sujos sorrindo-lhe com dentes podres.

- Eita, gostosona! Ah, um rabo desses lá em casa, o que eu não fazia...

- Tá precisando de um trato, né dona? Faz tempo que não vê um desses, né? - Urrou o segundo operário, sacolejando a mão sobre a virilha.

- Vem cá que eu te lambo todinha! - completou o terceiro.

De cenho franzido sobre a raiva e o constrangimento, Dona Ana observou os três homens pendurados no andaime. Pareciam primatas, mais bichos do que gente. Seu primeiro impulso foi atirar pedras sobre aqueles porcos alpinistas.
Mas resolveu fechar os olhos, respirar fundo e retomar sua caminhada, sem tomar parte naquela barbárie.

Com passos rápidos e desconcertados, Dona Ana entrou em sua casa aos prantos. Nunca havia sido tão humilhada. A revolta no seu peito se alastrava como um câncer. Por que esta provação agora, Deus? Não era merecedora da misericórdia divina? Logo ela, um exemplo de castidade e pureza para toda a comunidade. Logo ela, líder pastoral. Uma vida inteira dedicada à busca do Caminho. Estaria Nosso Senhor buscando provar-lhe a fé como fizera com Jó?

Seria o momento de ter sua retidão testada? Por certo que sim. Se mesmo Moisés duvidou do Senhor e cravou seu cajado pela terceira vez em busca de água no solo do deserto, porque ela não deveria ser testada? Mas, ao contrário do velho judeu, não trairia o meu pacto com Jesus. Se também teria que enfrentar um deserto, amém, Senhor.

Três, quatro meses se passaram e a sabatina diária de desaforos não dava trégua. E eram sempre os mesmos algozes. Dona Ana batizou os obreiros, de forma a sedimentar em sua mente a natureza vil daqueles homens. Ao mais alto e forte, chamou de Barrabás. O que parecia ser o mais velho foi apelidado de Pilatos. E, é claro, o mais grosseiro deles recebeu a alcunha de Judas. Toda vez que se dirigiam à beata, ela lembrava de como o Mestre lidou com tais carrascos. Assim, ela procurava controlar sua vontade de matá-los. De atirar neles como se fossem patos selvagens. Sentia o desejo de sangrá-los por toda aquela desonra.

De noite tinha pesadelos, até. Via-se caminhando para casa, sorridente, após a missa. O Sol radiante da manhã era encoberto por nuvens quando ela se aproximava da construção. Então, Barrabás, Judas e Pilatos aparecem. Em sonho, eles são mais fortes, tem olhos vermelhos de fogo e língua de serpente. De repente eles se jogam do andaime e enormes asas de morcego crescem de suas costas. Os demônios, voando, perseguem Dona Ana. Gritam impropérios, riem dela. Ela corre, chora, tropeça. Judas a agarra pela cintura e sussurra obscenidades em seu ouvido enquanto acaricia-lhe as coxas. Seu hálito cheira a enxofre.

Logo Barrabás e Pilatos também se aproximam e começam a lamber-lhe pescoço e nuca, com suas línguas bifurcadas, incrivelmente compridas e viscosas. Rasgam suas vestes, acariciam seu corpo com garras de coruja. Ana acorda apavorada, suada, em prantos. Por Deus, até quando?

Ela chegou a conversar com o mestre de obras, mas ele não deu muita atenção. Disse que não havia nenhum pedreiro com nome de Barrabás, Judas ou Pilatos. Falou que ia dar uma bronca nos funcionários. Na verdade, falou com Dona Ana por dez minutos e não passou um segundo sequer sem fitar-lhe os seios, o porco. O chamaria de Herodes, daquele dia em diante.

No dia em que a obra ficou pronta, Ana considerou-se novamente uma mulher feliz. Havia vencido o desafio de Deus. Jamais fraquejara. Tivera força em sua fé e em sua oração. Estava pronta para continuar sua vida de devoção.

Melhor que isso, estava pronta para ser aceita nos portões do paraíso. Aleluia.
Passada uma semana, Ana viu-se tomada de uma inexplicável depressão. Uma angústia terrível lhe infernizava o peito. Não tinha motivação para continuar o trabalho pastoral. Não se interessava mais pela liturgia. Sucumbiu na fé, a coitada. Desesperada, procurou o auxílio de uma amiga e contou do seu desânimo. A amiga, por sua vez, recomendou que ela procurasse outra comunidade. Talvez ares novos pudessem restabelecer seu credo.

Ana procurou então uma paróquia no bairro vizinho, cerca de 10 quadras de sua casa. Chegou à missa exaurida, suada. Não iria dar certo. Era muito longe. Além do mais, o padre não era aquelas coisas. Melhor voltar à antiga comunidade.

No caminho de volta, no entanto, sentiu a terra tremer. Seu coração disparou. Não podia ser. Acelerou seus passos e contemplou uma outra construção, com outro bate-estaca fálico surrando a terra. Conteve a própria pressa e passou suave pelo canteiro. Do alto, logo veio o silvo, seguido das grosserias.

- Olha lá quem veio visitar a gente! Eita, gostosa!

- Debaixo dessa saia deve estar um incêndio, hein? Pega na minha mangueira, dona!


No final das contas, Ana resolveu dar mais uma chance ao padre da comunidade vizinha.



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