Por Rodrigo Amém
Dona Ana suportou o máximo que pode.
Logo ela, fiel opositora das iniquidades, honrosa participante das atividades
pastorais e pregadora dos bons costumes. Sentia-se aviltada diante daquele
acinte diário. Lembrava-se com desgosto da manhã em que tudo começara.
Acordou cedo e, como de costume,
dirigiu-se à igreja para a liturgia matinal. Já na volta, comprou pães e leite
e tomou o rumo de casa. Sentiu suas pernas tremerem à medida que seus passos,
esguios e decididos ganhavam a calçada. Sentia a terra toda tremer, de fato.
Parou e notou que os abalos surdos continuavam a desdém de seus passos
cessados.
Percebeu que se tratava de um
bate-estaca, ruidosamente localizado na construção na quadra vizinha à sua
residência. Ao aproximar-se, percebeu as colunas de concreto tomadas de
operários, como um esqueleto povoado por formigas. Viu também caminhões
basculantes rodopiando suas caçambas ásperas e poeirentas. Ao fundo, como um
maestro, o gigantesco bate-estaca marcava o ritmo do caos, subindo e descendo em
movimentos obscenos. Lembrou-lhe um altar pagão, fálico, adorado por uma corja
de bárbaros suados, carregando sacos de cimento sobre seus torsos desnudos.
Dona Ana sentiu um arrepio e fez o sinal da cruz.
Prosseguiu sua caminhada de pose
altiva em resposta ao prosaico cenário do canteiro de obras. Um súbito silvo
agudo invadiu-lhe os tímpanos, seguido de um jocoso impropério. Ana sentiu seu
sangue gelar. Parou e virou-se para a construção que jazia sobre suas costas.
Voltou seus olhos para o alto e encontrou três homens muito feios e sujos
sorrindo-lhe com dentes podres.
- Eita, gostosona! Ah, um rabo desses
lá em casa, o que eu não fazia...
- Tá precisando de um trato, né dona?
Faz tempo que não vê um desses, né? - Urrou o segundo operário, sacolejando a
mão sobre a virilha.
- Vem cá que eu te lambo todinha! -
completou o terceiro.
De cenho franzido sobre a raiva e o
constrangimento, Dona Ana observou os três homens pendurados no andaime.
Pareciam primatas, mais bichos do que gente. Seu primeiro impulso foi atirar
pedras sobre aqueles porcos alpinistas.
Mas resolveu fechar os olhos,
respirar fundo e retomar sua caminhada, sem tomar parte naquela barbárie.
Com passos rápidos e desconcertados,
Dona Ana entrou em sua casa aos prantos. Nunca havia sido tão humilhada. A
revolta no seu peito se alastrava como um câncer. Por que esta provação agora,
Deus? Não era merecedora da misericórdia divina? Logo ela, um exemplo de
castidade e pureza para toda a comunidade. Logo ela, líder pastoral. Uma vida
inteira dedicada à busca do Caminho. Estaria Nosso Senhor buscando provar-lhe a
fé como fizera com Jó?
Seria o momento de ter sua retidão
testada? Por certo que sim. Se mesmo Moisés duvidou do Senhor e cravou seu
cajado pela terceira vez em busca de água no solo do deserto, porque ela não
deveria ser testada? Mas, ao contrário do velho judeu, não trairia o meu pacto
com Jesus. Se também teria que enfrentar um deserto, amém, Senhor.
Três, quatro meses se passaram e a
sabatina diária de desaforos não dava trégua. E eram sempre os mesmos algozes.
Dona Ana batizou os obreiros, de forma a sedimentar em sua mente a natureza vil
daqueles homens. Ao mais alto e forte, chamou de Barrabás. O que parecia ser o
mais velho foi apelidado de Pilatos. E, é claro, o mais grosseiro deles recebeu
a alcunha de Judas. Toda vez que se dirigiam à beata, ela lembrava de como o
Mestre lidou com tais carrascos. Assim, ela procurava controlar sua vontade de
matá-los. De atirar neles como se fossem patos selvagens. Sentia o desejo de
sangrá-los por toda aquela desonra.
De noite tinha pesadelos, até. Via-se
caminhando para casa, sorridente, após a missa. O Sol radiante da manhã era
encoberto por nuvens quando ela se aproximava da construção. Então, Barrabás,
Judas e Pilatos aparecem. Em sonho, eles são mais fortes, tem olhos vermelhos
de fogo e língua de serpente. De repente eles se jogam do andaime e enormes
asas de morcego crescem de suas costas. Os demônios, voando, perseguem Dona
Ana. Gritam impropérios, riem dela. Ela corre, chora, tropeça. Judas a agarra
pela cintura e sussurra obscenidades em seu ouvido enquanto acaricia-lhe as
coxas. Seu hálito cheira a enxofre.
Logo Barrabás e Pilatos também se
aproximam e começam a lamber-lhe pescoço e nuca, com suas línguas bifurcadas,
incrivelmente compridas e viscosas. Rasgam suas vestes, acariciam seu corpo com
garras de coruja. Ana acorda apavorada, suada, em prantos. Por Deus, até
quando?
Ela chegou a conversar com o mestre
de obras, mas ele não deu muita atenção. Disse que não havia nenhum pedreiro
com nome de Barrabás, Judas ou Pilatos. Falou que ia dar uma bronca nos
funcionários. Na verdade, falou com Dona Ana por dez minutos e não passou um
segundo sequer sem fitar-lhe os seios, o porco. O chamaria de Herodes, daquele
dia em diante.
No dia em que a obra ficou pronta,
Ana considerou-se novamente uma mulher feliz. Havia vencido o desafio de Deus.
Jamais fraquejara. Tivera força em sua fé e em sua oração. Estava pronta para
continuar sua vida de devoção.
Melhor que isso, estava pronta para
ser aceita nos portões do paraíso. Aleluia.
Passada uma semana, Ana viu-se tomada
de uma inexplicável depressão. Uma angústia terrível lhe infernizava o peito.
Não tinha motivação para continuar o trabalho pastoral. Não se interessava mais
pela liturgia. Sucumbiu na fé, a coitada. Desesperada, procurou o auxílio de
uma amiga e contou do seu desânimo. A amiga, por sua vez, recomendou que ela
procurasse outra comunidade. Talvez ares novos pudessem restabelecer seu credo.
Ana procurou então uma paróquia no
bairro vizinho, cerca de 10 quadras de sua casa. Chegou à missa exaurida,
suada. Não iria dar certo. Era muito longe. Além do mais, o padre não era
aquelas coisas. Melhor voltar à antiga comunidade.
No caminho de volta, no entanto,
sentiu a terra tremer. Seu coração disparou. Não podia ser. Acelerou seus
passos e contemplou uma outra construção, com outro bate-estaca fálico surrando
a terra. Conteve a própria pressa e passou suave pelo canteiro. Do alto, logo
veio o silvo, seguido das grosserias.
- Olha lá quem veio visitar a gente!
Eita, gostosa!
- Debaixo dessa saia deve estar um
incêndio, hein? Pega na minha mangueira, dona!
No final das contas, Ana resolveu dar
mais uma chance ao padre da comunidade vizinha.
Gostou do que leu? Esse texto é de autoria de Rodrigo Amém e sua reprodução total ou parcial dependem de prévia autorização do autor. Entre em contato conosco para maiores informações.
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