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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O milagre do carnaval

Por Amanda Leal

Deusemar, mulata, corpo escultural, 30 anos e um sonho: desfilar no carnaval. Sair na Sapucaí não era apenas um desejo, mas sim um objetivo que ela tinha certeza de que iria conquistar. Não queria sair em carro alegórico, não queria sair na diretoria, queria apenas percorrer a avenida sambando com pouca roupa e absorvendo a energia do samba.

2013 foi um ano de muito trabalho, fez faxina para complementar o orçamento de doméstica e até ajudou a cuidar dos cachorros dos patrões durante uma viagem deles. Tudo isso para bancar a tão sonhada fantasia. Economizou no presente de Natal da família, pois qualquer graninha era bem-vinda.

Deusa, como era conhecida, tinha um filho. O pequeno Sidney. O menino agitado e sapeca tinha cinco aninhos e já vivia a dois sem seu pai. Cléber morreu durante uma incursão dos policiais na comunidade onde trabalhava, era homem honesto e trabalhador e mais uma vítima de bala perdida.

O ano do objetivo foi bem complicado, cheio de impedimentos, mas no fim lá estavam: os quatro mil reais de sua fantasia. Sorte da Deusa ter um primo que trabalha no barracão. Ele até tinha conseguido que ela desfilasse de graça, mas seria sem fantasia, ao lado da galera da escola. Sem fantasia? Nada feito para ela.

Finalmente chegou o grande dia e Deusemar era só expectativa. Acordara cedo para fazer o cabelo, pegou um pouco de sol na lage, já tinha combinado com a mãe que tomaria conta de Sidney. E por falar nele, o menino acordou um pouco quietinho hoje. Com uma tossezinha chata. Deve ser gripe, afinal de contas criança gripa toda hora.

A hora do desfile foi se aproximando e Deusa estava cada vez mais linda, montada em sua fantasia cheia de plumas e paetês. As amigas da comunidade morriam de inveja. Nessa hora todas lamentaram por não ter os quatro mil reais para também poder sambar na avenida. Deusa além de linda era guerreira.

Foi até o quarto do filho e estranhou novamente a aparência do menino. Resolveu sentar ao seu lado e esperar um pouco mais, mas o tempo ia passando, passando e a preocupação com a condução e com o menino aumentava. Se saísse agora chegaria a tempo na Sapucaí, se demorasse mais corria o risco de ter que sambar dentro do ônibus.

O menino só piorava, estava com um febrão. A mãe de Deusa disse que ela poderia ir tranquila, que daria conta de cuidar do menino. Deusa fez que ia umas quatro vezes e do meio do caminho, voltou. Coração de mãe. Ela sabia que precisava estar ali.
Assistir pela tv só aumentava sua agonia e a fazia lembrar do tamanho sacrifício que foi até chegar esse dia. A febre do menino aumentava e resolveram levá-lo para a Upa mais próxima.

Chegando lá tiveram sorte, muita sorte de estar vazio. Parecia que estava todo mundo em algum outro lugar. E realmente estavam, estavam em seus mundos particulares curtindo o carnaval. Os médicos até que permaneciam de bom humor, o que era estranho, pois ninguém gosta de trabalhar quando todo mundo está se divertindo, assim julgava Deusa. E o menino foi atendido.

Doutora Suzana disse que tiveram muita sorte, pois a pneumonia estava em estágio avançado e que se o menino tivesse ido para a emergência em um dia comum, talvez não tivesse sobrevivido. A Upa dali costumava ser muito cheia. E Deusemar ainda pensou que hoje estaria insuportável, pois a quantidade de gente doida no carnaval só contribui para que os hospitais fiquem ainda mais cheios. Vai ver foi um milagre. O milagre do carnaval.

Com a situação sob controle a Dra Suzana garantiu que o menino ficaria bem. Se tudo fosse feito da maneira correta e que se fosse preciso iriam até mesmo tentar vaga em um hospital maior. A noite foi longa para Deusa, Sidney e toda a sua família. Ela ali, sentada num banco improvisado ao lado do filho, abaixou a cabeça e agradeceu a Deus baixinho por ter seguido o seu instinto de mãe e ter ficado com ele e também pela doença ter se manifestado justamente naquele dia. Pois como a médica mesmo lhe tinha dito, com a Upa vazia tudo foi mais fácil.


Em um mês o menino já estava novinho em folha, correndo e bagunçando por ai. E na sala da casa, ao lado do sofá havia um manequim que usava a fantasia daquele fatídico carnaval. Estava ali como lembrança. Para recordar não as lembranças de uma Sapucaí cheia e sim de um hospital vazio e da vida de seu filho Sidney. 



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