Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
De qualquer forma, nada é igual.
Aqui cada dia é dia de um texto diferente.
Quer sair da rotina? Fica com o Salada!

Segundas do Rodrigo

Evidências
Por Rodrigo Amém

Quando a porta do camburão abriu, a saraivada de flashes fez Edgard se encolher. Instintivamente, tentava proteger o rosto das luzes. As mãos algemadas às costas o obrigavam a virar o rosto para dentro do carro de polícia. Um puxão forte em seu cabelo o trouxe de volta aos holofotes. Era a mão do Delegado Roger, expondo sua presa à mídia.

As perguntas gritadas dos jornalistas se sobrepunham umas às outras, num alarido ensurdecedor. Debaixo daquela surra de luz e som, era difícil para Edgard manter o corpo ereto. Mas, sempre que ele se curvava em direção ao solo, a mão disciplinadora de Roger esticava sua coluna de volta à posição ereta.

As perguntas eram um confuso misto de indagações redundantes e pedidos de pose para fotos. Roger não respondia. Ele apenas aproveitava o enxame de microfones para dizer o que achava conveniente. Agradeceu a colaboração dos policiais envolvidos, enalteceu a importância do serviço de inteligência, assegurou o público de que a cidade dormiria mais segura depois da captura do mais terrível serial killer de nossa história.

-       É verdade que o senhor usou de tortura para capturar o Açougueiro, delegado?

A pergunta, feita um decibel acima do burburinho da coletiva, calou a todos. Os olhos de Roger se inflamaram por um segundo, enquanto ele varria a multidão em busca do desagradável inquisidor.

Os olhos de Roger encontraram Lucas. Jovem, magro, cabelos castanhos grandes e desgrenhados,  uma paródia de barba despontando descuidadamente aqui e ali. De braço levantado, Lucas não se escondia.

Roger se deu conta da própria contrariedade, respirou fundo e adotou um tom professoral.

- Absolutamente. Nossa equipe está nas ruas para cumprir a lei e fazer valer os direitos dos cidadãos. Quem tortura não é a polícia. O que nós fazemos é um trabalho profundo de investigação. Tortura é outra coisa. Tortura é entrar num convento e fazer uma chacina com crianças órfãs e freiras.

- Quais são as evidências da participação deste suspeito na chacina do orfanato? – interrompeu Lucas.

- Temos fortes indícios que aquele crime foi cometido pela mesma quadrilha responsável pelo sequestro da menina Sarah. São criminosos bárbaros, capazes de decepar dedos de crianças para coagir o pagamento do resgate.

- Senhor delegado, o senhor me desculpe, mas um não vejo a conexão entre esses crimes. – insistiu Lucas.

O burburinho aumentou, os flashes ficaram mais intermitentes, a medida em que Roger titubeava catando palavras.
- Um criminoso violento foi tirado das ruas. Uma vida de uma criança inocente foi salva. A polícia cumpriu o seu papel de dar segurança aos cidadãos. Quem vai julgar o suspeito e o nosso trabalho é a justiça. E eu tenho toda a tranquilidade de que tivemos sucesso em nossa missão. Sem mais perguntas.

Algumas horas depois, Edgard caia de joelhos dentro de uma cela de cadeia e as grades pesadas se fechavam atrás dele com um eco metálico. Ao se levantar, Edgard reparou uma presença no beliche superior.

- Edgard, meu velho! – de olhos arregalados, Leo sorria amarelo para seu novo companheiro de cela.


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Luzes
Por Rodrigo Amém

Era um descampado no meio do nada. Não havia luz, só a confusão de faróis na estrada e estrelas no horizonte, atrás de quilômetros de vegetação rasteira. Em silêncio, dentro do carro de motor desligado e luzes apagadas, Edgard tentava extrair sentido do tráfego distante. Desviava o olhar para o relógio no pulso. Voltava a fitar a distância. Não havia ainda, rigorosamente, atraso. Mas a espera era incômoda. A menina, ainda de saco na cabeça, parecia dormir deitada no banco de traseiro.

Ele revisou mentalmente as instruções passadas na carta. O outro motorista deveria se aproximar e esperar seu sinal para parar, desligar o motor e sair do veículo. Sem polícia. Só o pai da menina. Qualquer sinal de outra presença e a menina rodava. Edgard não queria ter que fazer isso. Não com outra criança.

Volta e meia o dedo decepado latejava. Parecia que doía, mas não estava mais lá. Parecia que o espírito do dedinho permanecia ali, assombrando seu pé. E Edgard se perguntava se aquela tinha sido a melhor coisa a fazer. Talvez, tivesse tido tempo e calma, teria pensado numa outra saída. Mas arrependimento? Não. Edgard não era de se arrepender da dor sofrida. A causada, no entanto, assombrava seus sonhos, latejava. Tal qual o dedinho fantasma.

Um par de luzes desacelerou e deixou o fluxo da estrada.  O coração de Edgard acelerou.  As luzes cresceram na direção do descampado. Edgard virou a chave na ignição e as luzes do painel iluminaram seu semblante teso com um luz tétrica luz vermelha.

Edgard fez os faróis do seu carro piscarem duas vezes. O outro veículo parou. As luzes foram desligadas em ambos os veículos. O outro motorista abriu a porta, desceu e parou na frente do capô.

Para Edgard, era apenas uma silhueta. Não conseguiu distinguir traços da fisionomia do homem, ainda que a lua estivesse fazendo um ótimo trabalho pintando aquela cena de faroeste azul.

-       Cadê o pacote? – A voz de Edgard ecoou no vazio.

-       A menina primeiro. – respondeu o homem.

Edgard deu partida e começou a manobrar o carro de ré. Os faróis acenderam, cegando o homem. 

-       Ok! Ok! Tá no carro! Espera! – desesperou-se o homem, cobrindo os olhos.

Edgard parou o carro. O homem foi, de braços levantados, até a porta do passageiro. Retirou uma pesada sacola de viagem e, com algum esforço a colocou entre os dois veículos.

-       Agora a menina! – disse, andando de costas de volta ao seu veículo.

Alguns momentos se passaram até que a garota atravessasse o espaço entre os dois carros cambaleando e desnorteada. Enquanto acolhia a menina e a coloca segura no banco de trás de seu carro, o homem notou Edgard pegando a sacola e voltando mancando de volta para o seu lado da arena.

-       Ei, você! – gritou o homem - Você já foi à Bahia?

Edgard parou e se virou para o homem. E então ele notou um, dois, três pontos vermelhos dançando em seu próprio peito.


- Foi lá que eu aprendi a não desperdiçar oportunidades – sorriu o delegado Roger, rosto iluminado pela chama de seu isqueiro, a poeira do descampado revelando o caminho entre os pontos no peito de Edgard e a mira laser dos atiradores de elite posicionados em morros além da estrada.

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Ranger de dentes
Por Rodrigo Amém


A babá fez o melhor que pôde para suturar o pé de Edgard, um mindinho a menos. Mas faltou anestésico, faltou gaze, faltou hospital. E toda vez que ele precisava pisar no freio, a dor latejante gerava movimentos bruscos do automóvel.  A mandíbula de Edgard ardia de tanto ranger dentes. A freada acordou Sarah.

A menina tentou se sentar no banco traseiro. As mãos amarradas nas costas tornaram a tarefa ligeiramente mais difícil. O saco de estopa que cobria sua cabeça pinicava seu rosto e suas orelhas. Somente as luzes difusas dos carros penetravam sua cegueira improvisada.

Pelo retrovisor, Edgard percebeu que a sua refém estava consciente.

-       Fica deitada. – disse ele, num tom seco.

Sarah reconheceu aquela voz. Era o homem que, dois dias atrás, tinha entrado no seu cativeiro com um facão, tirado o sapato e cortado o próprio dedo fora. Sarah gritou diante daquele horror todo, aquele sangue todo. Mas depois ela entendeu que o homem tinha feito aquilo para poupá-la. Então Sarah ficou ainda mais confusa.

Por que alguém – principalmente um bandido, um homem mau – faria isso? Por que cortar o próprio dedo para não ferir uma vítima. A menos que fosse a única alternativa. A menos que ele precisasse sair daquele quarto com um dedo decepado, caso contrário alguém menos piedoso viria fazer o serviço. A menos que esse bandido não fosse um homem tão mau assim. Sarah sentiu-se ligeiramente mais segura na presença daquela voz.

- Pra onde a gente está indo?

- Seu pai pagou. Você vai pra casa. Abaixa.

- Obrigada, moço.

- Fica abaixada. Não vou dizer de novo.

Sarah deitou no banco.  Um celular tocou.

-       Fala. – Atendeu Edgard.

-       Ele chegou. – disse a voz do outro lado.

 -       Tá tudo tranquilo?

-       Tudo. Não tem truque, não. Pode vir. – respondeu Léo.

Edgard desligou e acelerou, rangendo os dentes.



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Oportunidades
Por Rodrigo Amém


Só uma mesa e duas cadeiras. Era uma sala nua iluminada por uma luz fria, oscilante. O zumbido da eletricidade só era interrompido pelo soar de telefones reverberando à distância.  A cabeça de Léo girava. Ele tentou levar as mãos ao rosto, mas o movimento foi interrompido por um puxão nos punhos.  A lembrança das mãos algemadas relembrou Léo da gravidade da situação.

Os conselhos de Seteoito para situações de enfrentamento com as autoridades começaram a emergir por entre pensamentos desconexos. Mantenha a boca fechada. Peça um advogado. Não responda nada. Não concorde com nada. Ignore as perguntas. Aguente a dor. Qual o telefone do doutor, mesmo?

A porta se abriu antes que Léo pudesse se lembrar. Não era um PM. Com certeza, não. Não parecia nem ser policial.  Talvez um defensor público, mas era cedo ainda. A menos que tivessem alguma coisa grande contra ele. Um filme começou a passar na cabeça de Léo. Os últimos delitos, os trabalhos mais recentes. Será que ele tinha pisado na bola?

O homem sentou-se no outro lado da mesa, de frente para Léo. Colocou dois copos de água sobre a mesa. Com a ponta dos dedos, empurrou suavemente um deles para o meliante atônito.

- Bebe.

Com os olhos, Léo disse algo como “você acha que eu sou Mané? Que eu vou cair nesse papinho de amiguinho? Tá achando que esse é minha primeira dura? Se liga, otário!”

- Tô com sede não, senhor – foi o que Léo disse em voz alta, numa calculada falsa humildade.

O homem sorriu.

- Você já foi à Bahia?

Léo levantou os olhos e encarou o homem, sem entender de onde diabos tinha saído aquele tópico. Seu cérebro buscou rapidamente algo na sua ficha corrida que tivesse relação com algum baiano, cantor de Axé, percussionista. Nada. Nada!

- Não, senhor... – respondeu confuso.

- Era a minha programação de férias. Todo ano, nas férias de janeiro, meu pai juntava minha mãe, eu e meus irmãos e a gente ia pra Salvador. O velho era de lá. “Meu filho, se Deus fez lugar melhor, guardou pra ele!”

Aquilo era tão fora de contexto que, por um momento, Léo esqueceu que estava na boca do lobo.

- Só que a gente era uma família humilde. Avião era caro demais. A gente ia de fusca. É. Eu sei. Quase dois dias de viagem. Era cansativo que só. Mas ninguém dentro daquele carro tinha mais pressa que o meu pai. Ele queria chegar logo. Ir pra praia. Relaxar.  E se tinha uma coisa que tirava meu velho do sério era parar pra ir ao banheiro. Então, antes de entrar na estrada, ele falava: “São seis horas da manhã. Essa charanga só para às seis da tarde. Não quero saber se estão com vontade ou não. Aproveitem a oportunidade”.

 Léo olhou para o copo em sua frente.

- Meu pai me ensinou muitas coisas na vida. Nessas viagens, eu aprendi a planejar. A ter paciência. A ter resistência. Mas o mais importante: eu aprendi a não deixar de aproveitar as oportunidades que a vida me oferece. Tá vendo esse copo? Pensa nele como uma oportunidade que eu te ofereci. Você não sabe quando é que você vai ter a chance de beber água de novo, sabe?

O homem estendeu a mão, pegou o copo de água e lentamente o entornou no chão da sala.

- É impressionante a velocidade em que a necessidade muda um comportamento. Em algumas horas, uma pessoa que não tinha sede se vê disposta a lamber água do chão para sobreviver.

Léo arregalou os olhos.

- Quando eu voltar, amanhã ou depois, eu vou lhe dar uma nova oportunidade. Mas agora ela virá com um preço.

O homem se levantou e caminhou até a porta.

- Você vai me contar o que você sabe sobre o Açougueiro do Convento.

O girar de cabeça atônito de Léo entregou que ele sabia exatamente de quem se tratava.

- Bom saber que o nome é familiar. Até breve.

Antes de sair, o homem disse mais uma coisa.

- Ah, se você mudar de ideia e quiser fazer proveito da sua oportunidade mais cedo, diga pro guarda que você quer falar comigo. Meu nome é delegado Roger.

A porta se fechou e Léo encarou a poça d’água perto dos seus pés.



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O dedo
Por Rodrigo Amém


A porta se fechou atrás de Edgard. Tudo ao redor era escuridão e soluços amedrontados. Suas pupilas revelavam detalhes na penumbra na medida em que dilatavam. Um colchão, restos de comida, barata. Uma garotinha abraçada aos próprios joelhos, chorando baixinho. Ela era magra, cabelos negros, muito lisos. Com a vista acostumada, Edgard agora percebia o reflexo das lágrimas no rosto da menina.  Edgard se curvou e aproximou-se. Ela começou a gritar.

- Não, não, por favor! – implorou a menina.

- Cala a boca, garota. – a voz de Edgard era baixa e firme.

De perto, a menina parecia um fantasma. Uma imagem do passado de Edgard, dos seus tempos de Palmira.  Ela tinha os olhos de Jandira. Jandira era a irmã mais velha do Galeto. Linda em sua brejeirice, Jandira olhava para os moleques da vila com o desprezo que três anos de diferença lhe permitia. Eram crianças.  Jandira só queria a companhia de homens mais velhos. Edgard, azarado, era garoto. Um dia, um homem mais velho quebrou o pescoço de Jandira. E os moleques da rua foram privados até mesmo do desprezo de sua musa. 

No horror dos olhos daquela garotinha, Edgard viu o horror de Jandira. O medo diante do abuso. O último olhar de Jandira para seu agressor não fora muito diferente, pensou.

- Qual é o seu nome? – perguntou para a menina que chorava baixinho.

- S...Sarah...

- Presta atenção, Sarah. Eu não quero machucar você. Mas não tem jeito.
Sarah começou a chorar mais alto, peito cheio de pavor.  Edgard cravou o facão na parede rente à cabeça da menina. Ela congelou.

- Agora, presta atenção. Se eu não fizer isso, eles vão matar minha nenê.  Acho que a gente pode chegar num acordo.  Você escolhe o dedo. Eu faço o serviço mais rápido que der. Você nem vai sentir direito. Eu levo o dedo, mando pro seu pai, ele paga o resgate, você sai daqui viva. Se você se negar e eu sair daqui sem o dedo, eles matam minha filha. Então, acho que você sabe que isso não vai acontecer. Se você me ajudar, vai ser melhor.
Sarah parecia prestes a entrar em choque, na corda-bamba entre desespero e loucura. 

 Edgard levou a mão ao pescoço dela. 

- Escolhe – ameaçou.

Sarah olhou para as mãos. Chorou. Finalmente, estendeu o dedo mindinho da mão direita.

- Tem certeza? – perguntou Edgard.

- É o único que eu não uso nas aulas de violão... – murmurou a menina.

O grito da garota reverberou por todo barraco.  Edgard saiu do quarto carregando um pano ensanguentado enrolado. 

- Ninguém entra até eu voltar com curativos. – Disse ele para o marginal de guarda. Na porta do casebre, Pereira pediu pra ver o serviço. O dedo, empapado em sangue, era indistinguível de uma salsicha, ou de um rabo de ratazana, não fosse a unha e o pedaço de osso exposto. Era pequeno, curto, inchado. Pereira desviou o olho. 

- Não sei como você consegue, mano.

Edgard não respondeu. Embrulhou o dedo no pano e seguiu seu caminho. Mancando levemente.



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O açougueiro do convento
Por Rodrigo Amém


Edgard foi levado a uma chácara, longe da cidade. Foi recebido por dois marginais de olhar vazio, sobre olheiras.

- Esse é o “açougueiro do convento”? – perguntou um deles ao motorista, diante do porte pouco intimidador do novato.

Edgard levou uns segundos até se dar conta de que o “açougueiro do convento” era ele. Sentiu vergonha.

Ninguém perdeu muito tempo com apresentações. Edgard foi encaminhado até a varanda da casa, onde um terceiro meliante aguardava, sentado numa cadeira de balanço. O vai e vem da cadeira impulsionou o gesto de “aproximem-se” que o bandido fazia com a mão esquerda. A mão direita pousava sobre uma M-16.

- Até que enfim, caralho. – Disse, aproveitando o balanço para se por de pé. – Eu sou o Pereira. Vem comigo.

Pereira e Edgard entraram na casa. Os demais capangas montaram guarita na varanda. Difícil diferenciar entre o que era tentativa de mobiliário e o que era lixo. Um sofá quebrado, colchão velho, uma mesinha ostentando uma caixa de pizza azeda. Um radinho de pilha. Armas. Várias armas. Baratas, muitas baratas.

- Você sabe qual é o serviço? – disse Pereira. Edgard balançou a cabeça negativamente.

- O serviço é esse aqui. – Pereira abriu uma porta para um pequeno quarto escuro. Acorrentada ao pé de uma cama de ferro, uma menina de uns dez anos dormia em posição fetal. O cômodo todo fedia a urina. A comadre no canto jazia meio cheia. 

- Ela é o serviço.

Edgard não entendeu.

- Essa pirralha é filha de um figurão. Cheio da grana. To negociando o resgate. O cara tá jogo duro.

Edgard lembrou de Socorro.

- Da última vez que eu falei com o pai, deu pra sacar que já tinha polícia na escuta. Ele tentou dar uma enroladinha, sabe? Pra dar tempo de localizarem a chamada. Pediu prova de que a menina tava viva, o filha da puta. Pediu, vai ter. E vai aprender a não meter a porra da polícia.

Edgard continuava confuso. O que aquilo tinha a ver com ele? Se era pra cuidar de criança, porque não usar a prostituta que agora estava com sua filha? Por que envolvê-lo nisso?

- Seteoito falou que não é pra aliviar. Se ele quer prova da filha viva, a gente vai dar. Uma por dia até ele resolver pagar. Esse é o seu trabalho. – Disse Pereira, abrindo um armário e entregando o facão na mão de Edgard.

Edgard deixou o facão cair. O barulho acordou a menina, que deu um grito ao ver dois homens no quarto com ela.

- Pega o facão. E você, garota, cala a boca.

Edgard hesitou.

- Pega...a porra... do facão. – A mão de Pereira repousou ameaçadora sobre o coldre da pistola na sua cintura.

Lentamente, Edgard abaixou-se e pegou o facão. A menina choramingava, cobrindo a boca com as mãos. Pereira agarrou o braço de Edgard e tirou ele de dentro do quarto, fechando a porta atrás de si.

- Você vai “colher” a prova. Uma por dia. Você escolhe. Dedo do pé, da mão, orelha. Só não pode matar a guria.

Tudo o que Edgard conseguiu balbuciar foi uma pergunta. Por que ele?

- Porque eu tenho família e tem coisa que eu prefiro não fazer. E eu já to na pista tem tempo, mano. Tem coisa que eu posso escolher não fazer. Seteoito me garante. E ele me disse que você não tem tempo ruim. Que você é o açougueiro do convento. Que você arranca cabeça de freira. Que você mata mulher e criança. Pra quem já vai pro inferno, um dedo a mais, a menos, que diferença faz, né?

Edgard até tentou argumentar. Explicar que não era bem assim. Mas Seteoito disse que era. E, se não fosse como Seteoito queria, quem garantia a segurança da sua filha?

Edgard se calou diante da realização de sua sina. Ele era agora o especialista em atrocidades para o chefe do morro. Esse era o preço da vida de Socorro. Edgard olhou para Pereira, olhou para o facão, entrou no quarto da refém e fechou a porta atrás de si. Do outro lado, Pereira preferiu sair da casa quando a menina começou a implorar. 


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A conta
Por Rodrigo Amém


As palavras escorriam moles da boca de Seteoito, arrastadas numa ginga de morro quase caricatural. Gírias, contrações, equívocos gramaticais e palavras de baixo calão escoavam daquela torneira de dentes de ouro como se tentassem afogar Edgard. E Edgard, submerso, registrava apenas ecos daquele discurso que já se arrastava por quase uma hora.

A verborragia só parava quando o chefão acendia um cigarro, tomava um trago de whisky, cheirava uma carreira. Mas não, o discurso não era substituído pelo silêncio. Os barulhos guturais dos vícios de Seteoito eram tão audíveis quanto sua malandragem. Goles, tragos e aspirações eram seguidos de expirações vocais, gritadas, num exaspero forçado que parecia querer avisar a todo morro que Seteoito gozava os privilégios dos Reis.

Sentado em sua cadeira intencionalmente mais baixa, Edgard só enxergava um homem se esvaindo em ruídos autoindulgentes. Se Seteoito era essa fonte transbordando de si mesma, Edgard era só aridez. Não é que ele não sentisse medo, inveja ou admiração do poder de Seteoito. Mas, ao mesmo tempo, era difícil entender para que aquela força da natureza precisaria de Edgard, ou de qualquer um. Do jeito que Edgard via o mundo, os poderosos dividiam sua atenção sobre o resto do mundo em dois grupos: utilidade e desinteresse. E, na cabeça de Edgard, as autoridades o colocaram na segunda categoria. Por que Seteoito seria diferente? E quando chegaria a conta dessa exceção? No caminho até a mansão no topo do morro, Edgard tremeu ao pensar que a hora chegara. Edgard pensou na sua filha e na puta batida que lhe fora escalada como babá. Será que o plano é me matar e entregar a bebê pra adoção? Ou pior, matá-la também? Mas o que Seteoito ganharia matando um “zelador” do seu império? Por outro lado, o que ele ganha agora, mantendo-o vivo?

A recepção foi inadequadamente calorosa. Seteoito perguntou da criança, mas não esperou resposta. Emendou um “fica tranquilo”, porque a “babá” era de confiança. Fez um comentário de mau gosto sobre a noite em que Joana morreu, mas Edgard não registrou, e Seteoito riu sozinho até virar o copo. Aí soltou um “ahhh” de prazer e começou a enfileirar o pó branco sobre a mesa com a ajuda de uma gilete. Fez que ia oferecer outra linha para Edgard, mas desistiu no meio. “Você não precisa, já nasceu teso”. E riu. Edgard esforçou um sorriso pra não parecer indelicado, submerso em confusão.

Seteoito seguiu inabalado, como um guia turístico numa excursão pelos círculos do inferno dantesco. Edgard se refugiou no seu bunker mental, onde guardava seus maiores tesouros. A lembrança de sua mãe e das canções de ninar que venciam o medo e a fome, a sensação do pé descalço na lama fria numa manha quente. O abraço de Joana, o sorriso de Socorro.

Quando finalmente emergiu, Edgard notou que o chefe finalmente adentrava na razão de sua convocação. Era um trabalho para um perfil especializado. Um trabalho que exigia um pai. Um pai que soubesse matar. Caso necessário, claro.

Alguém sequestrou o filho de um figurão. Alguém que não tinha jeito com criança. O choro do moleque podia virar problema. Edgard perguntou por que não enviar a puta batida pra cuidar dessa criança diretamente. Seteoito explicou que precisava de alguém que pudesse dar cabo do pirralho. Alguém pra confiar vida e morte. Caso necessário, claro. O sangue de Edgard ferveu. Nunquinha que ele mataria uma criança!

Seteoito abriu um sorriso e tirou um jarro de dentro do armário. Boiando num líquido amarelado, a cabeça da freira de olhos vazados.  “Mas lavaria o chão de um orfanato com sangue?”

Edgard entendeu que não era uma proposta de trabalho. Era hora de pagar a conta. 



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Velha amiga
Por Rodrigo Amém


Os dias seguintes passaram entorpecidos e viraram meses. Edgard, dividia seu tempo entre o amor a sua filha e a dor do remorso pela morte de Joana. Seteoito recebeu a cabeça da freira com estupor e respeito. Esse moleque é bom, pensou. E partiu do chefe a decisão de, pelo menos provisoriamente, lotar Edgard numa função administrativa. Até porque tinha a nenê dele. Então, pela maior parte do ano, o casebre de Edgard virou uma espécie de posto avançado dos negócios de Seteoito. De separar papelotes a hospedar figuras suspeitas “em trânsito”, o trabalho de Edgard era resolver problemas administrativos e ficar em casa, com sua nenê. Até o médico do posto de saúde fazia visitas em domicílio, cortesia de Seteoito.

Edgard fazia por merecer. Seu recém-descoberto talento administrativo já se fazia notar no balancete da “firma”. Um dom que consistia, basicamente, em dedicar uma atenção obsessiva a qualquer detalhe que lhe ocupasse a mente inquieta. Já fora um mar revolto, um pântano, um poço. Agora era um lago fundo, coberto de gelo fino.

Um dia, Seteoito mandou uma puta passar a noite na casa de Edgard. Ele abriu a porta e deu de cara com uma mulher desfigurada, vestida com uma saia de vinil e uma meia arrastão. Faltavam-lhe alguns dentes sob o lábio inchado. O nariz dobrado em L, manchado de sangue. Ela mancava. O cliente PM resolveu pagar o programa com coronhadas. Seteoito, resolveu por bem tirar o produto de circulação já que, com aquela cara, ela teria pouca serventia no bordel. Aparentemente, a casa de Edgard tinha virado um lar temporário para as vítimas das autoridades.

Edgard ajudou a garota a se sentar lentamente. Um chorinho chamou sua atenção ao berço. O pai prontamente se apresentou, pegou no colo, trocou fraldas, ninou. Em alguns minutos, o bebê dormia novamente.

- Você tem jeito. Ela é sua? – perguntou a hóspede.

Edgard balançou a cabeça.

- Qual o nome dela?

- Maria. Maria do Socorro.

- Bonito.

- Foi a mãe dela que pôs.

- Sua mulher não vai reclamar? – perguntou a prostituta, preocupada com sua condição de visita inesperada.

- Ela morreu.

A resposta seca afundou o coração da puta.

Foi quanto Leo entrou no barraco com o jornal na mão e o estendeu para Edgard.

- O chefe quer falar com tu. Não tá sereno, não.

Edgard arregalou os olhos diante da manchete e se preparou para tirar Maria do berço.

- Deixa ela. A garota cuida. Ou não cuida? – ameaçou Leo.

A prostituta balançou a cabeça positivamente, trêmula. Edgard hesitou.

- Vamo, rapá! Ele tá esperando!

Edgard sumiu porta afora, ao encontro de sua velha amiga, a morte.


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Noite linda
Por Rodrigo Amém

Roger usou a ponta do lápis para levantar do chão o que parecia ser uma tripa. Um segundo mais tarde, ele deixou o material cair de volta ao solo, esponjoso. Com cuidado, levou as costas do braço direito à testa, tentando enxugar o suor frio sem pintar o próprio rosto com o sangue alheio.

Qualquer outra pessoa, ao se encontrar em sua posição, começaria a questionar as escolhas feitas na vida. Não Roger. No centro de um quarto pintado em sangue fresco, cercado de restos mortais de freiras e crianças órfãs, Roger tentava conter o sorriso de satisfação.

Jackson cambaleou pra fora do banheiro, tossindo e arfando. Cuspiu um resto de vômito num canto do corredor.

- Nada dos forenses, delegado. É esse trânsito – afirmou prendendo o fôlego.

- E os jornais? – disse Roger.

- Liguei assim que o senhor falou. Eu vou lá fora tomar um ar.  – disse Jackson.

- Liga de novo. Fala que é primeira página. Primeira página, porra.

Um chorinho baixo tirou Roger de seu mundo de sonho. Embaixo de uma cama, uma criancinha voltava aos poucos do choque. O tenente puxou a cama e pegou a criança ensopada, trêmula.

- Não chora, nenê. Vai dar tudo certo.

Quando o tumulto de jornalistas começou a se estabelecer em frente ao orfanato, Roger atravessou a porta de entrada com o pequeno sobrevivente em seus braços. A criança, nua e coberta de sangue. Parecia ter, literalmente, nascido de novo. Mesmo os abutres do jornalismo policial precisaram de um segundo para sair do estupor daquela imagem e começar disparar seus flashes. A criança gritou apavorada e se protegeu no colo de Roger. 

O alarido e as explosões das câmeras reavivaram os disparos que perseguiriam aquela mente pelo resto de seus dias. Roger cobriu o rosto da criança com a mão e fuzilou os fotógrafos com seu olhar de reprovação ensaiada.

Assim que os paramédicos tiraram a criança de seu colo e a levaram para a ambulância, Roger dirigiu-se à imprensa. Um alarido de perguntas cresceu quando o delegado se aproximou dos microfones. Com a palma da mão manchada de vermelho, ele pediu silêncio.

- Hoje, o terror atingiu nossa cidade. Dentro desta casa, uma casa de caridade e de espírito cristão, uma casa que dava abrigo a dezenas de crianças, monstros deram uma demonstração de crueldade e frieza. Tivemos a sorte de poder salvar algumas vidas. Tragicamente, não pudemos salvar todas. Mas a polícia civil assume nesta noite um compromisso com a sociedade. Jamais vamos nos esquecer do horror. Eu não vou esquecer. E, diante da imprensa e do povo de nossa cidade, eu prometo. Prometo a vocês e a Deus. Vamos encontrar os responsáveis e trazê-los à justiça. Obrigado.

Dentro do carro, Jackson fitou os olhos de Roger pelo retrovisor no banco de trás.

- Mandou bem no discurso, chefe. Nem se eu tivesse lendo eu falava bonito assim. Quanto mais de improviso.

Roger levantou os olhos e encarou Jackson pelo retrovisor.

- Não aconteceu nada “bonito” naquele orfanato esta noite. – desconversou.

- Claro que não, senhor. – corrigiu-se Jackson.

Encarando o movimento da noite pela janela, Roger sorriu por dentro. Sim, tinha sido um belo discurso. Mas não foi improvisado. Foi ensaiado à exaustão, durante anos. Foi sonhado. O dia em que o Delegado Roger assumiria seu posto de defensor da sociedade. O dia em que seu nome se tornaria sinônimo de justiça. Esse dia finalmente chegou, e numa dimensão muito maior que ele ousaria sonhar. Uma chacina em um orfanato de freiras. Solucionar esse caso seria o divisor de águas da sua carreira. Quiçá, de sua carreira política. Esse era o seu momento, Roger. Que noite linda.


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Sangue
Por Rodrigo Amém


Edgard sentou-se ao lado do berço. Trinta e oito na mão direita, bebê no braço esquerdo. Ela dormia, imperturbada pelas gotas de sangue que caiam sobre sua manta rosa. Sangue de freira? De bandido? De sua mãe? De seu pai? Era um sangue sem dono, sangue de todo mundo, que ensopava o corpo de Edgard e pingava de seu nariz sobre a manta de sua filha. O zumbido do ouvido diminuíra. Silêncio.

Lúcia não devia estar vestida de freira. Não fazia sentido. Edgard não sabia que ela tinha concordado em trabalhar como babá do orfanato na madrugada para ficar mais perto da filha. Edgard não sabia que Lúcia roubara a arma de um dos capangas e tentava proteger a bebê. Edgard não sabia se seria capaz de se perdoar.

Momentos antes, ele jogou-se sobre o corpo de Lúcia, que já bateu no chão sem vida. Lúcia caiu de olhos abertos, fitando Edgard. Mas não havia expressão. Uma parte dele desejava uma reação, um sinal, uma expressão de horror. A outra torcia em silêncio para que seu amor não reconhecesse seu executor. Edgard sacudia, gritava, chamava. Os olhos de Lúcia só fitavam inertes. Então o sangue que descia da testa os cobriu. E nem assim eles se fecharam. O vermelho misturou com o azul, com o branco. Edgard tentou limpar o rosto da mulher com as mãos. O sangue só espalhava. Edgard soluçava.

- Deus sabe o que faz. – Disse uma voz enrugada, ardida.

Edgard não precisou olhar. Era a voz dos seus pesadelos. A voz da caolha, acumulada de ódio, rancor e soberba. Como se Deus fosse seu cão de guarda, dilacerando desafetos, martelando sua justiça torta. “Deus sabe o que faz”, disse ela. Como quem diz “Você rouba de mim, Deus tira de você. Por suas próprias mãos. Porque você ousou contra ele. Contra mim. Vocês arderão juntos no inferno”.

Não foi preciso olhar. A fúria guiou a mão de Edgard e foi certeira. O estômago da velha explodiu em tripas e pólvora. Edgard baixou a arma e abraçou Lúcia. Alguns minutos depois, Edgard contemplava a placidez de sua filha, sentado em seu trono de sangue.

Léo entrou limpando o cenho.

- Vambora.

Edgard levou um tempo, mas finalmente notou a presença do companheiro. Balançou a cabeça num sim lento e se levantou. Léo lhe estendeu uma faca enorme, virando o cabo para Edgard.

- Não esquece da lembrança do chefe.


Edgard guardou o trinta e oito e pegou a peixeira. Tinha uma cabeça de freira pra cortar. 



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A vítima
Por Rodrigo Amém


 Descendo as trilhas da favela, Edgard sentiu-se poderoso pela primeira vez. Ao seu lado, o braço direito do dono do morro, Léo, empunhava uma doze. Ambos seguiam escoltados por dois soldados armados de metralhadoras Ak-47. Em sua mão, o peso do maior revólver que Edgard já vira. Por onde passavam, os moradores desviavam o rosto, fechavam portas, janelas, apagavam as luzes. Era como se a favela baixasse os olhos em reverência. 

Edgard jamais se esqueceria da sensação de ser reverenciado. E essa era apenas a primeira sensação inesquecível que aquela noite traria para sua vida. 

- Tá por cima, hein, guri? – Léo nem olhou para Edgard ao cuspir o comentário. – Esse berro aí é do chefe. 

- Esse morro é do chefe. – Edgard só se deu conta da insolência depois que ela saiu de sua boca. Mas não era o momento pra mostrar arrependimento ou qualquer outro tipo de fraqueza. 

- A primeira vez que Seteoito passou alguém foi com esse ferro, aí. – disse Léo.

Edgard olhou para a arma em sua mão.

- Você já usou ela?

- Você já atirou alguma vez na sua vida? – desconversou Léo. 

Edgar se lembrou das suas guerras de lama. 

- Eu sou bom de mira.

- Se tu fizer merda...

- Vai ter problema, não. Valeu a força, aí. 

Edgard parou sob a sombra do orfanato. Olhou para o lado, na distância, a sua ponte. Apertou sua cicatriz contra o coldre da arma.Lembrou-se dos bichos e sua revolução. Léo levantou o queixo como quem pede uma definição. 

- Partiu. – sussurou Edgard.

Os dois capangas usaram seus pés enchinelados num movimento sincronizado e a porta de entrada explodiu para dentro. 

- Você entra quando eu mandar. – disse Léo, apontando primeiro para o peito de Edgard e depois para o próprio peito. De dentro do casarão, as crianças e freiras começavam a gritar. Os capangas gritavam para que todos fossem ao chão.  Edgard pensou em argumentar algo, mas Léo já estava imerso na escuridão. Um tiro. Um tiro?! As metralhadoras ecoaram e os gritos de pânico encheram os corredores de ecos, pólvora e sangue. 

Edgard não esperou. De arma em punho, mergulhou no caos. As crianças choravam. A primeira freira ensanguentada desabou na frente de Edgard, saída de um dos quartos. Mesmo na penumbra, ele conseguiu reconhecer a irmã que dava aulas e que cuidava das crianças menores. Muito sangue saia de sua boca. A vida se esvaindo de seus olhos. 

Corredor a dentro, um braço puxa Edgard para dentro de um dos quartos. Nem deu tempo de levantar o 38. Felizmente, era Léo. Ou infelizmente. 

- Seu filho da puta! Essas freiras tão maquinada! Mataram o João, seu puto!

Nada daquilo fazia sentido. As freiras não tinham armas. Não que Edgard soubesse. E quem era João? 

Uma outra rajada de metralhadora. Tiro. Uma pancada surda no vão das escadarias. 

- Léo!!! Léooo!!! Eu peguei o filha da puta, Léo!!! 

Do alto da escada, o outro capanga gritava. 

- Quem é esse merda?! – gritou Léo.

- Sei lá! Tava comendo uma freirinha! A gente entrou e ele puxou o trabuco na cara do João! Mas eu peguei ele! Tá tranqui... – Tiro. 

O corpo do último capanga bateu no chão no primeiro andar e fez barulho de melancia espatifando. 

Um chorinho de mulher ecoou. Tinha uma freirinha armada. Provavelmente com a arma do amante da colega. O sangue subiu nos olhos de Léo. 

- Eu vou tacar fogo nessas piranhas. 

Léo saiu pronto pro crime. Edgard foi atrás, temendo o pior. Na primeira porta que passou o braço direito do tráfico entrou disposto a uma chacina. Descarregou sua escopeta em algumas crianças e duas freiras que usavam seus corpos para proteger os órfãos. Não era mais uma operação de resgate. 


Era um massacre. 


Edgard se adiantou em busca de sua família. No fim do corredor mal iluminado, uma freirinha apontou um 32 e disparou contra Edgard. A bala pegou de raspão no ombro esquerdo e levou o rapaz a empunhar seu canhão e disparar. Acertou a freirinha no meio dos olhos. 

E foi assim que Edgard fez sua primeira vítima, o amor de sua vida. 


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Seteoito
Por Rodrigo Amém



Dois tipos de pessoas chegam ao posto de chefe da favela: enxadristas e sobreviventes. Seteoito com certeza pertencia à primeira classe. Franzino, poucos dentes emoldurados num bigode fino, não era um tipo imponente. Mas Seteoito era um pensador. Logo que sua habilidade com número foi percebida pelos antigos chefões, foi promovido a contador do bando ainda moleque. De contador, virou conselheiro. De conselheiro, virou braço direito. De braço direito, virou chefe quando não sobrou mais ninguém vivo na cúpula da favela.  A trajetória de um sobrevivente, diriam alguns. Outros, mais bem informados, suspeitavam da conveniência de tantas mortes. Esses aplaudiam em silêncio o xeque-mate do contador magricela. 

Seteoito se orgulhava de suas mãos relativamente limpas de sangue, apesar da extensa lista de óbitos que sua ascensão proporcionou. Para ele, matar era como masturbação: melhor quando outras pessoas fazem por você. Eventualmente, no entanto, Seteoito se permitia um ou outro homicídio onanista. Dizem que o antigo chefe viu Seteoito acender o fósforo que ateou fogo a suas roupas encharcadas de gasolina. Quem “dizem”? Ninguém.

Como todo mundo que veio de baixo, Seteoito olhava a base de sua pirâmide com particular interesse. Ele procurava atentamente pessoas de potencial. Mão de obra talentosa e motivada devia ser trazido para perto do chefão. Muito de sua força vinha da gratidão daqueles que Seteoito resgatava do lixo. As crianças do lixo viravam os melhores soldados e, eventualmente, os melhores oficiais. Trazidos para perto de seus olhos, Seteoito podia avaliar aqueles que tinham futuro e eliminar os incontroláveis ou exageradamente talentosos. Ninguém gosta de neguinho exibido. 

O único barraco da favela com ar condicionado era o de Seteoito. Debaixo das cobertas, Seteoito fumava um cigarro aquecido por três de suas esposas. A cama, feita sob encomenda, comportaria sete, oito esposas.

O telefone tocou três vezes antes da esposa número dois pegar o telefone, levar ao ouvido e repassar ao marido. Era o Leo. Era importante. Seteoito atendeu desinteressado. Leo, seu sargento de plantão, explicou que um dos garotos novos da entrega estava desesperado e precisava de ajuda. Tinham levado a mulher e a criança dele. Alguma coisa sobre uma freira caolha. Seteoito cutucou a esposa três. Ela saiu debaixo das cobertas nua. O ar frio eriçou pelos e mamilos. Ela saltou nas pontas dos pés até o cabideiro e trouxe o roupão com os números sete e oito bordados em linha dourada. O marido levantou e virou-se de costas com os braços apontados para trás e para baixo. Número três vestiu o roupão no marido. 

Na sala do barraco, um transtornado Edgard esperava impaciente. A porta se abriu revelando um negro baixinho e magricela, de roupão roxo. Seteoito parou em sua frente. Edgard se levantou, ansioso. Um dos soldados que o escoltavam acertou a coronha de sua AR-15 na parte de trás do joelho de Edgard, prostrando-o de joelhos. Seteoito aprovou a nova relação de altura com um discreto sorriso. 


- Roubaram tua mulher, moleque? É isso mermo?

Edgard balançou a cabeça em prantos. 

- Para de chorar, viadinho. É homem na hora de fazer filho. Quando dá merda, vira neném. 

– O desprezo na voz de Seteoito secou as lágrimas de Edgard instantaneamente.

- É parceiro? – perguntou Seteoito para Leo, parado perto da porta. 

- Não fez merda ainda.  – respondeu Leo.

Seteoito arqueou o corpo para olhar nos olhos de Edgard.

- Tu quer que Seteoito dê jeito, é? 

Edgard balançou a cabeça.

- Não vai ser de graça. Mas pode ser barato.

Edgard parecia confuso. Seteoito gritou para dentro do quarto. Três de suas esposas apareceram nuas e posicionaram ao seu redor. Levou alguns segundos, mas Edgard desviou o olhar.

- Eu te arranjo uma esposa nova, mermão. Uma boa. Filho, tu faz mais. Vai?

Edgard olhou com um misto de horror e aversão antes de balançar a cabeça negativamente. Seteoito riu.

- O amor é lindo. Vai ser caro, então. – A expressão de Seteoito ficou subitamente sombria.

O chefe dispensou as esposas nuas de volta ao quarto. Seteoito fez um gesto com a cabeça e Leo entregou um 38 na mão de Edgard. 

- O Leo e os meninos vão com tu. Mas tu me traz a cabeça de quem roubou tua mulher. Foi uma freira, né? Melhor. Deus já fica sabendo com quem que tu tem aliança. 

Edgard se levantou lentamente, segurando o revólver como se fosse uma bomba. 

- Não vacila. Ou a cabeça da freira ou a sua. 

Seteoito fez um gesto dispensando o grupo, abraçou suas esposas e sumiu quarto adentro. 

 Edgard ficou atordoado. Os capangas e Leo começaram a conduzi-lo para fora. 

- Bem que ele falou que ia ser caro – sussurrou um dos capangas. 

- Eu pegava uma mulher nova – sussurrou o outro. 


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Em fuga
Por Rodrigo Amém


Edgard abriu a porta do barraco e voltou a ser criança. Uma sensação aterradora. O silêncio esmagou-lhe o coração, revivendo a bicicleta vermelha. Era como se ela estivesse estacionada no meio da sala, espalhando medo e promessas de violência. 

Edgard revirou os poucos cômodos e gritou por Joana. Só obteve a resposta dos ecos. Sentou-se na cama e respirou fundo, procurando ordenar as ideias. Joana sabia que não deveria sair. Não tinham certeza se alguém procurava por eles. Mas sabiam que não queriam ser encontrados por suas vidas anteriores. Não, Joana não sairia se não fosse urgente.  Tinha que ser urgente. Tinha que ser a bebê. 

Noite alta, Edgard desceu o morro apostando que Joana tivesse colocado em prática seu plano de contingência. “Se a nenê passar mal, corre para o hospital com ela. Eu acho vocês lá”, disse o rapaz alguns dias antes. E o único hospital público da região era a aposta certa. 

Edgard cruzou a porta da recepção como um raio. Mal conseguia conter as palavras na boca. Precisou parar, respirar e se concentrar para ser entendido pela recepcionista. Então ele mencionou o nome Joana e disse que ela trazia um bebê. E o sorriso da recepcionista começou a murchar. Ela limpou a garganta e gaguejou, pedindo tempo para olhar os registros. E deu uma olhada sorrateira para o segurança. Edgard notou. 

O vento frio da noite já soprava os cabelos de Edgar, três segundos mais tarde. Ele ouviu um “para”, “pega”, “volta aqui”. Não ousou olhar para trás. Sabia que era com ele. Sabia que era com a Joana. Mas primeiro as coisas primeiras. Primeiro era escapar. 

O sinal de pedestres fechou, do jeito que Edgard gostava. Carros freavam, pneus cantavam e o garoto se jogava sobre os capôs quentes, deslizando para longe do alcance do guardinha. Ou guardinhas, não sabia quantos. Barulho de colisão. O bololô dos carros ficando para trás. 

Os milhões de casebres da favela já iluminavam o horizonte como olhos de fogo quando Edgard abriu caminho por suas vielas, corredores e túneis. Os perseguidores ficaram no asfalto. Ninguém de farda sobre o morro de noite. Nem músico de fanfarra. 

Mas o passo de Edgard não relaxava. Ele já não corria para fugir. Ele corria por Joana. E a salvação de sua família estava no alto do morro. A única chance de resgatar sua filha das mãos das autoridades era recorrer a outra autoridade. Edgard precisava de um favor do seu chefe. Em outras palavras, precisava vender a alma ao diabo. 


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Socorro
Por Rodrigo Amém


Não era exagero dizer que Lúcia e Edgard eram felizes no bairro triste. Demorou, mas se entenderam parceiros, amigos, amados.  Tiveram filhos, mas só um vingou. Uma menina careca e rosada que não largava o peito bom de Lúcia. O outro só encontrava serventia na união de cicatrizes promovida pela palma queimada e ávida de Edgard com a trilha do terço.Nessas horas, eram um só. Uma só ferida do passado, coberta de pele grossa e forte.

Lúcia ficava com a careca rosa em casa. Trabalhar e trazer sustento era coisa de homem, dizia o imberbe Edgard. Ele saía de manhã e voltava de noite, trazendo pão, leite, uns trocados e histórias sobre clientes difíceis, entregas complicadas. Lúcia balançava a cabeça e sorria satisfeita de ser esposa adotiva e mãe de verdade.

Teve uma tarde que a bebê ficou febril. Lúcia sabia da gravidade. Viu muita criança chegar quente no orfanato e sair numa caixinha. Ela não pensou duas vezes. Embrulhou a menina num pano e correu pro hospital. Nem lembrou que Edgard tinha falado pra não sair. Nem pensou que o hospital era bem longe do casebre. E que ela estaria solta na cidade. Teve muita coisa que Lúcia não levou em consideração no seu desespero materno.

Que, por exemplo, o hospital público da cidade era o Pronto Socorro Nossa Senhora de Fátima.

Lúcia entro no saguão anunciada pelos urros da bebê rosada. A recepcionista perguntou o nome da criança. Lúcia não sabia. Nunca tinham definido. Ela olhou para a porta do hospital e respondeu de pronto: Fátima. O nome dela é Fátima. Ajuda minha Fátima rosa, por favor.

Uma enfermeira tomou o bebê nos braços e levou hospital adentro. A ex-noviça seguindo atrás, até ser barrada em uma das portas. Daquele ponto em diante, só quem é funcionário, mãe. Desculpe. Pode aguardar aqui.

Pelo vidro, Lúcia acompanhava uma sequência de costas brancas orbitando o choro abafado de Fátima. Desespero e alívio ao mesmo tempo. E uma sombra no canto do olho. Uma sombra negra. Virando a cabeça devagar, Lúcia foi perdendo a cor do rosto. De hábito e tapa-olho, Irmã Dalva sorria em antecipação à sonhada vingança.

- Você me deve uma criança, ladra. E um olho.  – sussurrou em alto e bom som.



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O casebre no bairro triste
Por Rodrigo Amém

A pior coisa de ser criança largada é que ninguém liga. A melhor coisa de ser criança largada é que ninguém liga. Enquanto não tinham nada, dormiram por aí, nos escombros da cidade. Edgard lavava vidraças, fazia entregas, carregava pacotes. Com o dinheiro, comprava comida, água e remédio para as feridas de Lúcia. A ex-noviça ardia de febre e medo, mas estipulou condições. Das feridas, cuidava ela. Não permitira que Edgard a visse exposta, nua, mutilada. 

O sol se punha entre as ferragens, o vento esfriava a cada segundo. Edgard preparava um fogo dentro de um vagão sem rodas. 

- Quer chegar mais perto? – o menino perguntou.

Lúcia não respondeu. Não porque não quis. A voz falhou, tremida, seca. Edgard foi até ela. 

- Toma. – A canequinha com água tocou os lábios rachados de Lúcia. 

- Você não devia ter feito aquilo – disse Edgard. 

- Me ajuda...– ela respondeu, pedindo para levantar.

Aos poucos, Edgard levantou Lúcia como quem segura um tecido frágil. Cada centímetro era saudado com grunhidos sussurrados.  Finalmente de pé, Lúcia começou a corrigir sua postura arqueada. Edgard imaginava as feridas recém fechadas se rasgando naquele exercício de orgulho despropositado. Uma lágrima correu do rosto da garota. Ela se virou, pegou alguns restos de legumes, uma lata com água e começou a fazer uma sopa. 

Os dois comeram em silêncio. Ainda repetiriam esse ritual por muitas noites. 

Lúcia virou domestica, Edgard entregava jornais. Aonde quer que a conveniência da mão de obra barata se sobrepunha a repugnância da exploração do trabalho infantil, Lúcia e Edgard prosperavam, entre um tapa e outro, um abuso e outro, uma esmola e outra. E juntos alugaram um barraco num bairro triste. 

Edgard tinha quase treze quando Lúcia quebrou sua promessa. Ele abriu a porta e a encontrou se lavando, sob a luz do lampião. Ela parou. Os olhos confusos do garoto brilharam. Lúcia respirou fundo e deixou que a chama repousasse sobre a cicatriz. Edgard observou o corpo da mulher. O beijo do terço cobria Lúcia do peito ao ventre. Ao seio mutilado faltava um mamilo. O outro pousava como a joia imponente de uma coroa. A surpresa, para Edgard, não era a cicatriz, que ele imaginara até pior. Mas as formas sinuosas esculpidas ao redor dela, como uma declaração de resistência, coragem e força. Edgard não conseguia não memorizar cada centímetro daquela escultura que iluminava a penumbra do casebre no bairro triste. Então Lúcia lhe estendeu a mão. E nada mais foi como antes.



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O Terço
Por Rodrigo Amém

A irmã abriu o armário de madeira escura. Um cheiro ocre saiu de dentro, junto com o rangido choroso das dobradiças velhas.

- Eu não nasci velha, minha filha. – Irmã Dalva projetava a voz sem se virar, encarando o fundo o armário. – Eu sei como é. O caminho é árduo. As tentações sequestram os corações mais fracos. Acho que o terço é adequado, não acha? O que o seu coração de pecadora diz?

Lúcia ofegava ajoelhada no tapete de milho. Já iam duas horas de interrogatório. Nua, a pele tremia ao toque do ar frio. As vibrações da hipotermia empurravam as sementes pontiagudas carne adentro. A vergonha já era uma memória distante face ao medo. Medo da própria fraqueza, medo de trair Edgard. Até quando aguentaria?

- Nossa Senhora é testemunha, menina. Testemunha da minha paciência. Salomão foi menos paciente e ele está sentado à direita de Deus Pai, Todo Poderoso. Imagina o que Salomão faria com uma ladrazinha como você, minha filha? – Dalva acariciava lentamente os inúmeros instrumentos cuidadosamente dispostos dentro do armário escuro.

Dalva se virou e encarou sua pecadora. Pálida, nua, trêmula. Dalva quase não sorriu. Seu pisar leve sob o longo hábito dava a impressão de que a irmã flutuava como uma sombra negra em direção à vítima. Dalva trouxe seu nariz adunco para perto do rosto de Lúcia, que desviou o olhar. Então, seus olhos azuis minúsculos escrutinaram a pele da noviça. A pelugem eriçada, os poros arrepiados. Os dedos gélidos e enrugados da irmã contornaram o mamilo ereto da noviça. Com as mãos atadas às costas, Lúcia esboçou esquivar-se em repulsa, e Dalva cravou-lhe as unhas no seio. Lúcia gritou, Dalva mostrou os dentes.

- Você percebe a dor, menina? Percebe a dor que você provoca a essa congregação? Você foi recebida em nosso seio, alimentada, educada, protegida. Mas na primeira oportunidade que teve cravou suas garras imundas no que é nosso. Roubou o que é de Deus.

- Eu não... – a mão esquelética de Dalva calou a lamúria de Lúcia com um tapa que ecoou nas vigas empoeiradas da sacristia. A noviça engoliu as palavras enquanto o rosto latejava.

- Eu sei que você tem roubado comida do orfanato. Não sei bem porque ou pra que. Não sei que tipo de doente rouba comida de órfãos. Mas sei o que Nosso Senhor tem reservado para gente como você. Garanto que você vai sentir saudade de mim quando chegar no inferno. A menos, é claro, que você confesse seus pecados. Deus perdoa quem busca perdão, minha filha. Abra seu coração e Ele te perdoará.

Lúcia acreditava no perdão de Deus. Mas tinha certeza absoluta da vingança de Dalva. E sabia que ela não toleraria a presença secreta de Edgard. O que quer que Dalva fizesse com ela, não seria melhor se também envolvesse o castigo de um menino.

- Muito bem. O terço, então. – Decidiu Dalva, flutuando de volta para o armário negro.

Finalmente a noviça se deu conta de que o “terço” em questão se tratava de um chicote de couro com três pontas de metal em sua extremidade. O instrumento de “penitência” favorito de Dalva, não só pelas marcas definitivas que permaneciam como “estigma do pecado”, mas também pelo macabro jogo de palavras em referência ao inocente colar de contas de oração. Lúcia se lembrava de Catarina, uma das meninas do orfanato. Acidentalmente, Catarina teria deixado o Ostensório cair no chão e se partir em mil estilhaços. Dalva não expressou indignação, nervosismo, contrariedade. Dalva estendeu-lhe a mão e a levou para a sacristia. Ouviram-se pedidos de misericórdia, um estalo rasgando o ar, um grito. Silêncio. Duas semanas mais tarde, Catarina voltou ao convívio das outras crianças. Ela usava um tapa-olho de veludo sobre a vista esquerda. Três cicatrizes paralelas espreitavam por debaixo do pano, vermelhas, chegando ao maxilar. Catarina jamais contou a ninguém como perdera o olho, ou o que havia acontecido na sacristia naquela tarde. “Ela me levou pra rezar o terço. Glória a Deus”, dizia.

O primeiro golpe do terço atingiu o tórax nu de Lúcia. Para um golpe desferido por uma anciã, os danos foram aterradores. Uma das pontas de metal dilacerou o mamilo direito de Lúcia como uma navalha as outras duas criaram linhas paralelas vermelhas em seu tronco, como garras de um tigre. Lúcia urrou como um animal ferido e desmoronou sobre o próprio peso, expondo as costas. Dalva admirou o novo alvo como uma tela branca à espera do artista. Então ela ouviu passos.

A porta se abriu e um garoto de mais ou menos 11 anos parou no batente. Usava roupas sujas, não o uniforme do orfanato. Cabelos pretos, olhos fundos. Uma pedra na mão esquerda. Antes que tivesse tempo de erguer o terço, a pedra já cortava o ar em direção ao olho da irmã, impulsionada com a pontaria certeira de um milhão de bolas de lama de prática. O projétil esmigalhou o globo ocular e fraturando parte dos ossos de face de Dalva, que caiu desacordada, terço ainda em mãos.

Quando voltou a si, Lúcia estava envolta num pedaço de tapeçaria. Corpo ardendo, dores lancinantes. Edgard reunia roupas, comida e o que mais conseguisse encontrar de valor em uma bolsa grande. A noviça se levantou com dificuldade, joelhos tremendo, e quase caiu ao ver Dalva jogada no canto, um olho a menos. Deus enviou um anjinho para salvá-la, pensou. Lembrou-se de Catarina. Dente por dente.  


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A cruz vermelha
Por Rodrigo Amém

Por muito tempo, Edgard viveu nos fundos do orfanato, escondido. Como apenas a noviça lidava com os porcos, o casebre ao lado do chiqueiro, uma espécie de depósito de materiais de jardinagem e limpeza, era o refúgio mais seguro. Lúcia tentaria trazer o garoto para dentro, mas conhecia a Madre Superiora. Edgard era velho demais. Estava mais perto da idade de sair do que de chegar. E era muito judiado. Aquela mão marcada poderia colocar o tratamento aos órfãos em suspeição. A Madre prontamente recomendaria Edgard a um reformatório e Lúcia já conhecia histórias daquele lugar horrível. Até mesmo por iniciativa das irmãs, como uma forma de ameaça velada. “Quem já é grande e não se comporta vai para o reformatório. Você tem sorte, Lúcia. Devia pensar bem nisso”. Ninguém é perfeito, mas irmã Dalva era de dar arrepios. 

No começo, Edgard tinha medo de tudo. Tremia com o balançar das árvores sobre o telhado quebradiço. Passaram dias, meses. O menino se acostumou. Durante a noite, a noviça vinha e trazia comida, trocava curativos, trazia roupas. Ela ofereceu livros, mas Edgard quase não lia. Não gostava. Não sabia.

A maior parte do dia era passada dormindo. No começo, os pesadelos assustavam e Edgard tinha medo de gritar sem querer, no meio da noite. O garoto forçava a vigília para evitar ser traído pelo sono. E, por uma pequena janela lateral, Edgard notou que tinha uma visão privilegiada dos seus vizinhos, os porcos. Num primeiro momento, eram todos iguais. Aos poucos, suas características e personalidades dos futuros toucinhos passaram a saltar-lhe os olhos.

O porco maior, gordo e malhado, movia-se como se o tempo, para ele, passasse mais devagar. Os leitõezinhos corriam frenéticos ao redor do malhado. Ele parecia tolerar o desperdício de energia dos menores. A leitoa toda branca, rosada, era grande, mas menor que o malhado. Quando não estava comendo e dando de mamar aos leitões, a branca estava perseguindo os pequenos, conduzindo-os para o cocho, para a água, para a sombra. O malhado observava a interação com desinteresse.

Edgard tinha seu porco favorito. Era o maior dos pequenos. Provavelmente o irmão mais velho. Todo pretinho. Sempre que havia uma briga entre os pequenos, podiam contar com o pretinho para botar ordem no chiqueiro. Umas cabeçadas para cá, outras pra lá, e pronto. A paz voltava a reinar. Sensação de dever cumprido, pretinho se remetia ao grande malhado como quem diz: “- Viu pai? Eu dei um jeito nesses bagunceiros!”. O malhado desviava o olhar, desinteressado. O desdém paterno do malhado era irritante para o observador do casebre vizinho.

Edgard acordou com um grito. Levou a mão à boca. Teria sido ele? Será que alguém ouviu? Os gritos continuaram. Eram gritos de criança pequena. Atordoado, foi até a pequena janela. A vista demorou a conformar a luz da manhã. Dentro do chiqueiro, um rebuliço. Os pequenos corriam de um lado para o outro. A mãe branca se sacudia. Até o grande malhado parecia nervoso. Do lado de fora da cerca, pretinho tinha as patas traseiras amarradas numa corda presa a um galho alto da mangueira. O pequeno se contorcia em desespero tentando se livrar daquela forca invertida. Embaixo dele, um balde de metal.

A porta dos fundos do orfanato se abriu e Lúcia apareceu com uma faca e o que parecia um lençol enrolado na outra mão. Por um momento, Edgard se permitiu a esperança de imaginar Lúcia em uma missão de resgate, usando a faca para libertar o pretinho. Foi só quando a garota abriu o pano, que se revelou um avental de açougueiro, que a realidade esbofeteou Edgard.

O garoto viu Lúcia vestir o avental. E viu a faca afiada e precisa desenhar um corte vermelho e profundo no pescoço do pretinho, afogando aos poucos o grito de criança assustadoramente humano que ele emitia. Viu o fio algumas gotas de sangue grosso respingar no avental branco a caminho do balde. E então Edgard viu o segundo corte, que se uniu ao primeiro formando uma cruz de sangue na barriga do pretinho. A faca abria o caminho pelo corpo do animal, as contorções cessavam. Ao fim dessa cruz invertida, o corte se abriu em vísceras que escorreram viscosas para dentro do balde.

Edgard sentiu vertigem e desviou o olhar de volta ao chiqueiro. Encontrou os olhos de malhado. Edgard imaginou quantos filhos malhado viu morrer. O menino deixou a janela e foi chorar num canto do depósito.

De noite, Lúcia veio trazer o jantar e não entendeu o olhar de fúria de Edgard diante das tiras de bacon no seu prato. O garoto comeu apenas pão naquela noite. Ao sair, Lúcia perguntou se havia algo mais que ela pudesse fazer por ele.

- Tem algum livro sobre porcos? – disse Edgard.

Lúcia revirou a biblioteca das irmãs procurando algo sobre suínos. Dizem que não devemos julgar um livro pela capa, mas Lúcia também não tinha o hábito da leitura ou alguém a quem recorrer. Então, foi obrigada a desobedecer à sabedoria popular e levou para Edgar um livro velho que achou no sótão e trazia a ilustração de um porco na capa. Aquele livro acabou por despertar a fome de Edgard para letras. O título: a revolução dos bichos.

E Edgard nunca mais foi o mesmo.

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A Noviça
Por Rodrigo Amém


Foi só depois de grande que Lúcia compreendeu o próprio infortúnio. Naquele tempo, tudo parecia corriqueiro, como sempre fora. Nem era uma questão de conformismo.Era só hábito.Todo fim de semana, as irmãs arrumavam Lúcia da melhor maneira possível, assim como o resto das crianças. Aí chegavam os visitantes. A cada ano, a interação entre Lúcia e os adultos diminuía. Ela se recorda de quando era menor. Eles vinham, pegavam no colo, davam beijo. E iam embora. Lúcia ficava. E a cada ano, a interação diminuía. No ano seguinte, já não a pegavam mais. Era só cafuné, quase um cascudo de tão ríspido. No ano seguinte, só olhavam e sorriam. Até quando Lúcia virou invisível.

E não é que Lúcia gostasse, ou tivesse medo. Era só o que ela conhecia. Foi um bebê ali. Foi uma criança ali. Virou mocinha ali. Quando deu por si, já era quase uma das irmãs. Já conduzia as visitas. Já arrumava as outras crianças. Já torcia para que fossem escolhidas. Já não era ela. Eram as crianças. E Lúcia não era mais criança. Catorze anos é muita coisa.
Lúcia agora tinha que trabalhar, dizia a Madre. Lavar fraldas, banheiros, lençóis, tudo era meio mecânico, meio feito à distância, cabeça lá longe. Mas tinha as sextas-feiras e o mercado. O ponto alto da semana de Lúcia. O momento em que ela pisava fora do Lar e sentia a brisa, o cheio das frutas, o som da vila. E Lúcia escolhia cada tomate como se fosse pérola. E Tobias, da banca de queijos, sempre dava uma nesga. “Bom dia, noviça!” “Deus te abençoe, Tobias!”.

A feira de sexta reabastecia de cores o mundo de Lúcia, normalmente assolado de lençóis brancos e fraldas nem tanto. Não fosse a feira, talvez Lúcia nem fosse feliz. Mas, se os adultos de domingo não vinham visitá-la, a feira de sexta era só pra ela.
Uma correria, aquele dia. Um tal de pega daqui, pega de lá. Joaquim passou por Lúcia feito um raio peludo e esbaforido. Quase derruba a dúzia de ovos caipiras que Abelardo acabara de entregar à noviça. Quando caiu em si, Lúcia já estava no encalço do velho português que havia cruzado a esquina em direção à ponte. Depois da curva, ela se deparou com Joaquim já voltando, limpando o suor da testa.

- Um pivete sujismundo me afanou um corte de churrasco! Não se pode mais ter sossego nesta vida! - E lá se foi Joaquim resmungando, rua acima. Lúcia deixou que ele seguisse seu caminho. E foi para a ponte.

Fosse menos afobado, Joaquim teria percebido o que Lúcia viu com a facilidade de quem passa a vida a brincar de esconde-esconde com os pequeninos do Lar. Pegadas na margem do rio, embaixo da ponte. Pé ante pé, a noviça – a essa hora da vida já alta e esguia – arqueou o corpo e avistou um bichinho acuado roendo um pedaço fumegante de carne.

- Boa tarde, meu filho. – disse Lúcia, pedindo licença.

O moleque se agitou, como se fosse correr.

- Não precisa. Não vou te entregar. Fica calmo. Como é o seu nome?

Edgard não respondeu. Ficou olhando a santa, atônito.

- Minha nossa senhora! Sua mão! Isso não pode ficar assim, menino!

Edgard se deu conta da queimadura. Sim, doía. Mas não tanto quanto a fome. Mas agora que a fome tinha dado um descanso, a pele queimada começava a latejar.
Lúcia prometeu voltar com curativos e, se Edgard esperasse por ela, comida. Edgard fez que sim com a cabeça, aturdido. A noviça voltou, tratou a mão dele. Deu-lhe alimento. E foi assim que Lúcia conheceu seu algoz. 


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O açude
Por Rodrigo Amém



Nos dias mais quentes, Edgar e seus amigos costumavam nadar numa represa nas vizinhanças do bairro. Ele se lembrava da sensação de estar debaixo d’água. A visão turva, embaçada. O mundo em câmera lenta, distante, o som grave ao seu redor, os membros pesados. Coração acelerando, pulmões ardendo. Até que o corpo se rende e ganha a superfície. Num instante, luz, som, ar, tudo volta. A vida volta. 

Era assim que Edgar se sentia. Mergulhado no açude. Visão turva, sons distantes, corpo pesado. A fome tinha mergulhado o garoto num universo só dele. Arrastava os pés, respiração ofegante, joelhos fracos. Engraçadas as coisas que vêm à tona na mente confusa. Edgar lembrou-se de cada migalha caída nos lanches da tarde. Nunca teve muito, mas tinha o bastante para o desperdício. Pensou em sua mãe. O abraço dela. Por onde andaria sua mãe?

O cheiro atingiu-lhe as narinas como um soco no frágil estômago. Na esquina, um homem de braços peludos jogava pedaços de carne sobre um braseiro. A fumaça subia e o cheiro hipnotizante ganhava força. Quando deu por si, Edgar estava a dois passos do churrasco. Pálido.

O homem usou em Edgar o mesmo gesto que dedicava às moscas. Andando de costas, o garoto não tirou os olhos dos bifes suculentos. A boca, seca e rachada, agora se enchia de água. Uma senhora passou, deu algumas moedas ao homem e levou a mão direita à altura do rosto, aproximando o polegar e o indicador. O homem sorriu e seus braços peludos alcançaram um facão e tiraram um pedaço de um dos bifes mais mal passados. O vermelho do interior da carne escorreu numa gota de sangue que evaporou no contato com a brasa. Com a ponta da faca, o homem jogou o pedacinho cortado para o ar, fazendo uma parábola que levava até os pés da senhora. Só então Edgar percebeu o cachorrinho da senhora, praticamente uma micro ovelha, um chumaço de algodão com patas. O cachorrinho se aproximou, cheirou a carne e a abocanhou.  A senhora agradeceu ao homem e puxou a coleira do chumaço branco, voltando de onde vieram, passando por Edgar.

Edgar estendeu a mão, envergonhado. A mulher ignorou sua presença. O cachorro também. E o senhor com o filho gordinho que comprou o próximo bife inteiro, também. E as duas mulheres espalhafatosas que levaram dois bifes ao ponto, também. E o velhinho que passou com o bife debaixo de um braço e uma bengala na outra também. E todas as pessoas. E todos os bifes. Ninguém via e ouvia os apelos de Edgar, de dentro do seu açude de fome. 

Sobrara um corte esturricado. Mais sebo que carne, no canto da grelha. Edgar cerrou os dentes. Virado bicho, aproveitou que o homem levantou os braços peludos para acenar a um conhecido que passava no outro lado da esquina. Correu. Correu meio sem sentir, pontos pretos embaralhando a vista. Meteu a mão e agarrou o sebo esturricado. Correu mais. Ouviu o homem urrando “moleque”, “ladrãozinho”, “pega”. Edgar não parou. Não sentia as pernas, não ousava olhar pra trás. Correu pelas ruelas, becos, por debaixo das pontes. Tropeçou, ralou o joelho. Do jeito que caiu, levantou e seguiu. 

Quando não conseguiu mais correr, entrou debaixo de um canto e se encolheu, prendendo o fôlego para não ser ouvido. Coração disparado, pulmões ardendo. Como no açude. 


Quando se acalmou, abriu o punho cerrado e olhou sua mão. As queimaduras do contato com a grelha fizeram bolhas e marcas. Ardiam. Na sua palma, o sebo esturricado, duro, sujo de terra e suor. Edgar comeu cada pedaço sôfrego, entre envergonhado e agradecido. Lembrou-se de sua mãe. Onde andaria sua mãe?

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Três dias
Por Rodrigo Amém

Três dias. Esse foi o tempo que a fome levou para quebrar Edgar.

Durante um tempo, Maurício e Galeto ajudaram o amigo foragido. Levavam pão, leite e biscoitos para a fábrica abandonada onde ele achou refúgio. Galeto não se sentia confortável com essa situação toda. Desde a primeira vez em que Edgar os procurou depois que sua mãe foi presa. Não é que Galeto não se importasse com seu amigo. Mas Galeto tinha medo. Quem é de Palmira tem dois caminhos pra seguir na vida. Ou segue a lei ou vira bandido. Não cabe relativismo moral num lugar onde as pessoas se ocupam de contestar ou confirmar os preconceitos de quem é de fora. E a mãe de Galeto era categórica. 



- Ou você anda na linha ou anda pra longe, guri. Filho meu não é vagabundo, não. 


No fundo, Galeto não entendia direito o que havia acontecido com a família de Edgar. E se o amigo tivesse algo a ver com a morte do pai? Isso faria de Galeto um cúmplice? Pelo menos nos filmes é assim que acontece. Mas Galeto não era cúmplice de nada. Ele não era vagabundo!

Maurício, não. Maurício era passional. Além do mais, ele conhecia de perto a experiência de perder amigos em decorrência de circunstâncias alheias ao seu controle. Maurício tinha estudado em boas escolas e tinha lá seus bons amigos. Mas aí o pai perdeu o emprego, perdeu a as economias, perdeu a casa. Em algum lugar no processo, Maurício também perdeu sua escola, seu quarto, a maior parte dos seus brinquedos. E todos os seus amigos.

Não fosse por Edgar - e por extensão por Galeto - Vila Palmira seria um exílio. Graças aos guris, foi um recomeço. Foram eles que ensinaram Maurício a andar e por onde andar, como falar e com quem falar, pra quem sorrir e de quem ter medo.



Meio pra retribuir, meio por saudosismo, Maurício contava coisas da sua antiga vida para os dois novos amigos. Contava sobre seus brinquedos, sobre sua escola. Contava as coisas que aprendia nas aulas, o que comia na hora da merenda. Galeto vibrava, vivendo vicariamente as delícias daquela vida farta. Edgar apenas ouvia. Sua expressão aturdida parecia misturar incredulidade e fascínio. Ele acompanhava cada causo do amigo com olhos fixos de quem quer roubar cada palavra. 


De noite, era comum para Edgar visitar o Instituto Educacional São Bento. As minúcias das histórias do ex-garoto rico montavam um mosaico onde Edgar vivia em sonho. Os nomes dos professores, Maurício forneceu. Os rostos, o inconsciente de Edgar esculpiu. Enrolado numa coberta velha, Edgar se escondia no galpão de fábrica. Dormindo, o garoto viva a fantasia de ser aluno, graças ao amigo.


O barulho de uma porta de carro ecoou no teto alto do galpão e acordou Edgar.  Ele fechou um olho e encostou o aberto num buraco na parede carcomida. Dois policiais usavam um alicate enorme para cortar as correntes do portão da fábrica. Edgar juntou o que deu enquanto tentava entender como tinha sido descoberto. Incapaz de definir qual dos garotos o havia traído, optou por condenar ambos.


E foi assim que Edgar deixou para trás seu primeiro refúgio e seus últimos amigos.  Três dias depois, a fome.

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Cacos
Por Rodrigo Amém

Não era por falta de estímulo que Edgar havia se tornado uma verdadeira chaga para a humanidade. Muito pelo contrário. Toda experiência que ele vivera até aquele momento tivera o firme e indelével propósito de fazê-lo odiar o planeta. Mas talvez a primeira memória seja a mais viva. O dia em que Edgar conheceu sua primeira vítima, o amor de sua vida.

Edgar nasceu pobre, mas não sabia disso. Todos ao seu redor pareciam partilhar das mesmas agruras e fugazes alegrias. Algumas coisas eram mais difíceis que outras. Ter pai, por exemplo, Edgar achava difícil. Não ficava muito claro pra ele porque as outras crianças lamentavam não conhecer os próprios pais. Edgar conhecia o seu como quem conhece um porão escuro. Nunca sabia o que podia sair de lá. Às vezes, um brinquedo velho, cheirando a lixo. Às vezes, um tapa, um soco. O não saber era a pior parte. As certezas, como o cheiro de álcool e a frieza do toque, não chegavam a ser atenuantes.

Um dia Edgar estava brincando na lama do campinho pós-chuva. Maurício e Galeto faziam 
bolinhas de barro e miravam um no outro. A essa altura, só o branco dos olhos contrastava com o tom de sujeira que cobria seus corpos.
- Toma, abestado! - gritava Galeto ao desferir seu projétil na direção de Maurício. Edgar, camuflado, observou o tiro de barro de Galeto explodir nas costas de Maurício em sua rota de fuga. Com Galeto desarmado e Maurício se recompondo do ataque, era sua chance de contar com o fator surpresa.

Uma bomba de lama em cada mão, Edgar escalou a carcaça de fusca que usava de trincheira e fez dois arremessos cruzados. Um acertou a cara de Galeto em cheio, derrubando-o de costas no chão. A segunda pegou no ombro de Maurício, que acabou derrubando a bola de barro que se preparava para arremessar.

Edgar apontava e ria, triunfante, do alto de sua montanha de Wolkswagen enferrujado. Levou só alguns segundos para ele se dar conta de que sua condição havia passado de superioridade tática a alvo fácil desarmado. Maurício e Galeto já estava de cócoras preparando suas bombas afoitas quando Edgar começou sua desabalada carreira em direção a qualquer lugar mais seguro. Não deu. A pressão de duas bombas de lama atingindo suas costas quase que simultaneamente levou Edgar de cara ao chão. Quando levantou, já de braços erguidos em trégua, os três ouviram a mãe de Maurício chamar. A noite caía e eles nem repararam. Não era mais hora de criança na rua. 
Especialmente não naquela região.

Os três se despediram e cada um correu em uma direção diferente. Edgar logo diminuiu o passo, concentrado em tentar tirar um pouco de barro das narinas e do canto dos olhos. Ele e Galeto eram amigos de berço, diziam. Muito embora nenhum deles tivesse dormido num berço desde que deixaram o hospital. O caso é que eles se conheceram pequenos. Edgar não se lembrava dos detalhes, mas Galeto costumava ter um irmão mais velho. Mas faz tempo, já. Morreu de trem. 

Agora ele e Galeto eram unha e carne. Maurício é que tinha chegado faz pouco tempo. Parece que o pai tinha quebrado e eles precisaram mudar pra Palmira. Antes de Maurício chegar, Edgar achava que precisava nascer em Palmira para morar em Palmira. Até porque, quem é que escolheria morar ali? Pelo jeito, Palmira não se escolhe. Acontece com as pessoas.

Ao entrar na sua rua, Edgar gelou. Sua casa era no final do beco, mas dali ele podia ver a porta. Dalí ele podia ver a luz acesa pela janela. Ele podia ver a bicicleta vermelha encostada na porta. 
Arrepio.

Não era corriqueiro - nem desejável - ver aquela bicicleta ali. Muito menos desejáveis eram as consequências desse avistamento. Quando estava com sorte, Edgar passava semanas, até meses, sem avistar a bicicleta. Uma vez, os pesadelos tinham até parado, quando a bicicleta regressou de surpresa numa noite quente de fevereiro. Edgar se lembra muito bem daquele verão e do seu calor atípico. Ele sentia que seu braço cozinhava dentro do gesso incômodo.

Parado na entrada da rua, Edgar fingia que decidia ficar ou correr. Fingia para si mesmo. Correr nunca foi opção. A saída - se é que havia alguma - era passar despercebido e torcer que a cachaça fosse daquelas. Edgar respirou fundo para firmar os joelhos e retomou sua caminhada com cautela.

Era engraçado. Não. Não era essa a palavra. Era assustador como os passos em silêncio era mais ruidosos. Cada pisada soava como um tapa ardendo na lembrança.

Em frente a porta, Edgar segurava o fôlego para apurar os ouvidos. O silêncio que vinha de 
dentro da casa era uma afronta. Devagar, encostou o ouvido na madeira. Nada. Não tinha jeito. 

Levou a mão na maçaneta, dedo ante dedo. girou devagar.

A porta abriu devagar, rangendo fino. O álcool invadiu suas narinas como um soco. Edgar quase caiu zonzo. No fim da pequena sala, viu cacos sobre o chão da cozinha. Cerâmica. O que sobrou do porquinho. Debaixo da mesa, uma garrafa caída, seca. E um pé. Um pé jogado, dentro de uma bota suja, ligado a uma perna arquejada. O ronco vindo da mesa da cozinha denunciava o dono daquele pé sujo.

Edgar conhecia bem aquele pé. Já o teve nas costelas, no pescoço. O garoto já tinha sido 
capacho daquele pé por vezes demais. A vontade era fugir gritando. Mas isso não funcionava. 

Pior, poderia sobrar pra mainha.

Toda vez que Edgar correu, sobrou pra mãe. A porta fechada do quarto era alivio. Quando a 
coisa desanda, a porta é a primeira a levar. Era muito importante que a porta do quarto de sua mãe permanecesse desse jeito. Edgar levitou até o aposento oposto, um quartinho de costura onde sua mãe fazia o sustento da família.

Entrou e fechou a porta devagar. Encolheu-se num canto e fechou os olhos. Ironia, foi 
exatamente quanto Walter abriu os dele.

E a primeira coisa que Walter viu ao cambalear até a sala foi o barro das pegadas pequeninas em direção ao quarto de costura. Walter sorriu e começou a tirar a cinta.

De dentro do quartinho escuro, Edgar tremia. Walter tossindo e pisando duro eram uma 
presença que não respeitava portas e paredes. Porque Walter não era apenas maior. Ele era 
mais gordo, mais forte, mais brutal do que qualquer pessoa que Edgar pudesse sonhar em pedir socorro num momento daquele. Sim, Walter saboreava cada golpe que desferia contra o menino e sua mãe. Mas os hematomas, os ossos quebrados, eram quase efeito colateral. Walter reagia com surpresa diante do seu próprio poder destruidor. Quem diria que bastava um sacolejo para deslocar o ombro de um moleque de... o que? Oito? Nove? Seis anos? Frágil, o merdinha.

A porta da sala de costura nunca fora um exemplo de solidez, mas ela abriu ao meio com o 

chute de Walter. O coração de Edgar parou. E voltou a bater com fúria em seguida.Walter encontrou Edgar encolhido num canto do quarto como um bicho acuado. Um bicho tremeliquento, coberto de barro, chorando lama.

- Olha só a sujeira que você fez, seu merda... - falou Walter entre dentes. Mas não eram dentes cerrados de ódio. Era um sorriso mórbido, emoldurando o brilho perverso dos seus olhos vermelhos. Não havia revolta no seu tom. Não havia ira. Havia o nervosismo de quem encontra o pecado favorito e sente a boca encher de água. Seu punho se fechou em torno da cinta. 

Seu braço se ergueu até o teto. Edgar fechou os olhos e prendeu a respiração. A cinta desceu rasgando braço, costela, coxa. A dor cantou aguda e Edgar achou que ia desmaiar. E começou a chover uma chuva quente sobre Edgar. Menos chuva, mais espirro longo. Como quando Maurício enche a boca no tanque e espirra água em quem passa perto. Mas uma água com cheiro de ferro. Edgar abriu os olhos e viu o pescoço cortado de Walter esguichando as últimas gotas de sangue sobre seu corpo, antes de desmoronar numa montanha de carne sem vida.

Atrás dele, uma esquálida sombra de mulher deixava uma enorme faca de churrasco firmar sua ponta tingida de vermelho no taco velho do casebre.

Edgar se levantou e correu para abraçar sua mãe. Um abraço de alívio, remorso, lágrimas, barro e sangue.

A polícia demorou demais a chegar. Edgar e mãe permaneceram abraçados, olhando para o 
corpo de Walter em silêncio. Às vezes, parecia que ela Chorava o horror de ter tirado uma vida. 

Outras, a dor de ter perdido um grande amor.

Já a paz de Edgar enterrava uma inquietude. Quantas noites de terror, quanto abuso, quanto 
sofrimento foi necessário para que aquela cinta fosse derradeira? 

A polícia chegou lenta e descompromissada. Cobriram o corpo com um saco preto, fizeram 
as perguntas padrões. Algemaram a mãe do Edgar. Levaram o morto e sua mulher no mesmo camburão. Só não levaram Edgar. Ninguém sabia dele. A mãe, em choque, não sabia dar conta do paradeiro do filho. A polícia viu o sumiço como um momentâneo inconveniente e tocou pra delegacia.

Edgar, de seu posto avançado na carcaça enferrujada do fusca, viu sua infância descer o morro banhada em luzes vermelhas e azuis. Pai sem vida, mãe presa, filho na rua.

Edgar esperou que a poeira abaixasse, voltou para casa, encheu uma mochila de trapos e uns biscoitos. Fez questão de juntar cada moedinha que Walter havia subtraído do seu porquinho de cerâmica. Cacos da infância recolhidos, ganhou o mundo.

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Avisados
Por Rodrigo Amém

Você convida alguém para um cinema e ouve: “Legal, mas é filme que tem que pensar, é?” A gente não quer mais pensar. Pelo menos não de graça. A gente quer relaxar. A gente quer curtir. Festa. Bebida. Churrasco. Música. Música alta, pra falar gritando, pra abafar angústias, pra afogar pensamentos, pra tirar o pé do chão.

Talvez seja a poluição, ou o uso indiscriminado de antibióticos durante a infância. Pode ser o excesso de hormônios na carne dos animais servidos nas redes de fast food. Talvez sejam as emissões invisíveis dos aparelhos de telefonia celular. Talvez seja um sinal do final dos tempos. O fato é que, para um crescente número de pessoas, pensar dói.  Receber uma informação, compará-la com o repertório de outros dados previamente adquiridos e extrair uma conclusão tornou-se um processo extenuante.

Pode ser que não haja nada de errado com a gente. Talvez o problema seja o mundo. Talvez o mundo tenha se tornado tão complexo que seja realmente exaustivo encontrar sentido em tudo. Ou em qualquer coisa. Mais provável, nunca foi fácil as revoluções da vida. Só que antes, ilhados em nossas bolhas de certeza, o mundo fazia sentido. Era uma mistura de ignorância, falta de contexto e tradição. As coisas faziam sentido porque não tínhamos informação suficiente, nem parâmetros de comparação e, além do mais, era assim que as coisas funcionavam desde sempre, sem precisar fazer sentido. Fazia sentido.

Agora, não. Agora tudo é complexo e fractal. Nenhuma certeza é absoluta exatamente na mesma época em que opinião virou tatuagem digital. E toda visita ao Facebook vira uma arena de teses, antíteses e sínteses. Agora que ninguém tem certeza de nada, querem que a gente mude de opinião, que a gente reveja nossos conceitos. Que a gente se desfaça de tudo que aprendemos com nossos pais, nossos amigos, nossos ídolos.  Querem que a gente pense.

Logo agora que ninguém sabe o caminho, querem que a gente mude de rumo. E tudo que a gente quer é entrar numa sala escura, olhar para uma tela e desligar por duas horas. Obrigado pelo aviso, bilheteiro. Vê duas pro novo filme do Adam Sandler, por favor.


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O problema
Por Rodrigo Amém

O problema não é que a esquerda tem um projeto de poder que sataniza os empresários e explora o povo como massa de manobra trocando o fim da meritocracia por um Estado paternalista e anti-democrático. O problema é que você não busca informação. Você busca confirmação da sua visão do mundo e rechaça qualquer argumento que não venha blindado pelas suas filosofias. O problema não é que a direita é insensível para as questões das minorias, dos excluídos e da ecologia, numa busca egocêntrica pelo lucro e pelo desmantelamento estatal, faturando em cima do bem público, atropelando os direitos civis dos cidadãos em busca da manutenção do status quo. O problema é que você pensa política como pensa futebol: quem não está com você está contra e nada de válido tem a acrescentar na busca por uma sociedade mais próspera. O problema não é que a nova geração é composta por jovens idiotas libertinos que não querem nada com a vida (pelo contrário. De acordo com o Efeito Flynn, a média de QI cresce 3 pontos a cada geração), o problema é que vivemos uma era de redefinição de conceitos. Uma possibilidade que, para você, significa a aterrorizante possibilidade de ter suas convicções e ideologias varridas à irrelevância. O problema não é que os conservadores são manipuladores, arrogantes e desprezam as liberdades individuais. O problema é que você não tolera ouvir vozes dissonantes e considera a experiência alheia irrelevante, uma vez que você sabe que é 3 pontos de QI mais “esperto”. O problema não é os outros.


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Coxinha, Caviar e Cara de Mamão
 Por Rodrigo Amém



Coisa besta é chamar o outro de “coxinha.” Não dá pra saber muito sobre o rotulado. Mas sobra informação sobre o detrator. Coxinha (a pessoa, não o salgadinho) não é real. É um arquétipo mal intencionado. Serve para demonizar a visão conservadora do mundo e desconsiderar qualquer argumento liberal.

Aí, na internet, alguém grita: “Isso é coisa dessa esquerda caviar!” Trata-se de um espantalho ideológico. Por detrás do xingamento, insinua-se que só a hipocrisia justifica um branco rico sair em defesa de negros pobres. Tem que ser pose. Tem que ser da boca pra fora. Porque se não for, meu conservadorismo soa alienado. Então, desconsidera-se a pessoa para não ter que considerar seus argumentos.

Quando eu era criança e não conseguia convencer alguém a brincar comigo, eu gritava: “Cara de Mamão!” Não que a pessoa parecesse um mamão. Ou que parecer um mamão fosse uma falha grave de caráter, personalidade ou mesmo estética. Eu só precisava desmoralizar aquele moleque que não queria brincar comigo. E o defeito mais grave que alguém poderia ter era sempre aquele que eu inventava.

Muito marmanjo ganha fama pela capacidade de destilar neologismos ofensivos contra quem não partilha das suas convicções. Xingamento no lugar de argumento, como eu fazia quando era pequeno. Foi só depois de velho que eu aprendi que é mais produtivo discutir ideias que pessoas.

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O brasileiro é, antes de tudo, esquizofrênico
Por Rodrigo Amém


Eu sou brasileiro e amo meu país, mais umas partes que outras. Aquelas paradas lá pra cima, onde tem muita miséria e mosquito, eu considero menos. Mas essas partes que aparecem nas novelas e que os turistas pagam caro pra ver, essas sim eu tenho orgulho. Ê paizão bonito! É que nós somos muito ligados na natureza. A gente desmata um monte de floresta pra criar pasto pra gado. Natural, não?

O problema do Brasil é que ninguém faz nada pelos necessitados. Esses políticos só estão interessados em dar bolsa-família pra pobre. Tem muito político vagabundo. Mas o povo é guerreiro, trabalha todo dia, de sol a sol. E se tiver um feriadozinho na quinta, todo mundo enforca a sexta e vai pra beira do rio.

Eu sou brasileiro, profissão de fé. Meu sonho é poder votar num político incorruptível, linha dura, que moralize Brasília e faça com que as leis sejam cumpridas. Um candidato honesto em quem eu confie. Alguém como o juiz Joaquim Barbosa. Eu confio nele. Mais do que no app que eu uso pra burlar a Lei Seca quando eu tomo umas e volto de carro pra casa.

É muito difícil prosperar no Brasil. A carga tributária é um absurdo! Não dá pra ser feliz pagando tanto imposto! Tudo culpa desse Estado inchado e cheio de encostados. Mas eu ainda acredito no sonho: ralar durante um ano num cursinho preparatório para garantir um emprego público de meio expediente e pegar uma praia no fim do dia. Porque eu sou brasileiro: não desisto nem mudo nunca.


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O projeto
Por Rodrigo Amém


Dia 1
Tanto tempo de solidão não pode estar me fazendo bem. Hoje eu acordei, olhei  ao redor e estava tudo escuro. Todos os dias iguais. Eu e o vazio, imerso em trevas. Eu preciso fazer algo a respeito.  Acho que vou acender uma vela.

Dia 2
É incrível como essa luz que eu criei ontem encheu o ambiente de possibilidades. Agora, posso ver mais claramente o que há ao meu redor. O vazio já não me assusta tanto, muito embora a solidão continue. Mas hoje me sinto especialmente criativo. Acho que vou trabalhar minha inventividade. Repensar esse meu universozinho. Criar meu mundo, sei lá.
Será que eu consigo pintar esse teto de azul? Gosto dessa cor. Azul me acalma. Acho que vou encher tudo com azul. Não. Talvez seja melhor jogar um verde para balancear, também. Verde é uma cor de esperança. Realmente não ficará mau. Acho que preciso de mais calor aqui no meio. Mais  luz, muito mais luz. Bem de perto. Isso.

Dia 3
Estou frustrado. Meu Projeto está lindo, mas parece muito... Não sei dizer. Estático, talvez. Esses vegetais não são muito interativos. Precisa de mais vida. Mais movimento no céu, na terra e na água. Estive pensando em organismos pluricelulares. Tecidos! Organismos vivos, feitos com tecidos vivos e animados! Por que eu não pensei nisso antes?


Dia 4
Estou pasmo. O projeto ganhou muito mais colorido através dos seres vivos animados. Ganhou animação, a coisa.  Eu olhei para eles e disse: "Sois os principais habitantes deste mundo que animais". Animais. Acho que vou chamá-los assim. O interessante é que eles aprenderam a coexistir rapidamente. Alguns deles alimentam-se dos vegetais. Outros, dos seres menores que eles, provocando uma reação em cadeia. Uma cadeia alimentar, diria eu. Noto que alguns deles começaram a evoluir e já são mais fortes, ágeis e resistentes do que eu  havia determinado. Tomei especial afeição por um grupo de seres que, até pouco tempo, moravam nas árvores e agora utilizam-se do chão como habitat. Eles tentam, insistentemente, a locomoção por meio das patas traseiras, unicamente. Nas patas dianteiras, os polegares estão se voltando contra os demais dedos. Talvez seja um reflexo de atrofia pelo desuso. Apesar de satisfeito com os resultados, tenho sentido um certo receio de que o projeto acabe saindo do controle e caindo no caos.

Dia 5
Tive uma grande ideia. Os animais devem ser vigiados mais de perto. Não quero influir diretamente, não seria científico ou ético. Ainda não absorvi bem o duro golpe de ter sido obrigado a exterminar aqueles enormes répteis. Mas foi necessário. De outra forma, meus amiguinhos peludos não teriam chance de sobrevivência na cadeia alimentar. Enfim, fiz o que fiz e pronto. Mas não quero ter que apelar para a força novamente. Então, decidi eleger uma das espécies de animais para exercer a vigilância sobre as outras.  Darei o privilégio aos meus favoritos. Andei brincando com o barro e fiz um novo e mais poderoso cérebro, que implantarei em um espécime dos favoritos. Chamá-lo-ei de Adão.

Dia 6
Finalmente, não me sinto mais só. Adão me compreende, escuta e respeita. Sinto-me pleno, enfim. Mas parecia que meu vigilante não compartilhava deste mesmo sentimento. Então, ele exigiu que lhe fizesse outro de sua espécie. Senti-me traído e me deixei levar pela Ira. Não era necessário, mas tirei-lhe uma costela sob pretexto de precisar de matéria-prima. Foi um ato infantil da minha parte, eu sei. Mas nunca havia me sentido desprezado antes. Ele teve o que mereceu. Para redimir meu sentimento de culpa, fiz-lhe a mais bela fêmea do Projeto. E Adão parece feliz novamente, ao lado de sua Eva. Merda.

Dia 7
Decidi abandonar o Projeto. Nada mais está dando certo. Os filhos de Adão são duas pestes insuportáveis que matam meus animais friamente e ainda dizem que o fazem por mim! Moleques! E essa Eva, então, consegue me irritar profundamente! Quem ela pensa que é? Dizendo a Adão o que fazer, quando fazer e como fazer! E é só eu ordenar que não se faça uma coisa e ela é a primeira a me desobedecer! Milhares de tipos de fruta em todo o Projeto e ela quis comer logo a que eu tinha proibido! Isso é uma afronta! Não há mais espaço neste projeto para minha vontade.  Então, que seja como eles quiserem. Ofereci a eles o Paraíso. Mas eles preferiram encarar a vida real. Estou me sentindo só, novamente. E desiludido. Pensei em destruir o Projeto. Mas mudei de ideia. Deu muito trabalho, a gente acaba se apegando. Vou deixá-lo de lado um pouco. Vai que um dia meu filho resolve tentar dar um jeito nisso? Até lá, eles que se danem. Eu vou descansar.


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Clichê
Por Rodrigo Amém


Por estas mal traçadas linhas, venho até você, caro leitor, dirigir-me humildemente. Quero falar-lhe de uma fantástica aventura que vivi ainda há pouco.

Estava eu cuidando da minha vida, captando inspirações para vencer o desafio do papel branco à minha frente, representado da fria luminosidade do meu computador. Oh, máquina insensível que tanto me torturas. Não percebes a angústia de insuflas no âmago do meu ser? Clamo por minha musa inspiradora, mas ela não me ouvirá. Estou só. Oh, destino cruel.

Eis que de repente, não mais que de repente, pela vidraça umedecida pelos pingos da chuva que outrora caíra, um vulto se faz presente.

Sentindo o coração pulsar como se fosse sair pela boca, lancei olhares sobre a janela, mas nada lá havia. Com um suspiro aliviado, voltei a mergulhar no fundo do meu eu à procura das belas palavras que escreveria para ti, quando uma gélida mão pousou sobre meu ombro.

Um arrepio percorreu minha espinha de tal forma que meu corpo ficou paralisado. Uma voz sepulcral ecoou pelo aposento, como se vinda de além-túmulo:

Desta vez não escaparás de mim. - Disse a maldita aparição e, ao final de sua sentença, disferiu uma risada macabra que fez meus ossos gelarem.

O-o q-que queres tu de mim? - Perguntei com minha voz trêmula de pavor. Só então atrevi-me a virar lentamente e encarar meu algoz. Era uma figura sem rosto, de manto negro como as asas da graúna. De mãos grandes e dedos delgados, seu toque era frio como a lâmina da morte. Mais uma vez estremeci.

Durante toda a sua vida fugiste de mim. Agora não há para onde correr. Quem virá lhe ajudar, escritor? Teus gritos de clêmencia não serão mais ouvidos. - Ao fim desta frase, outra risada nefasta reverberou pelo ambiente.

- Mas q-quem é você, com mil demônios?

Senti sua mão apertar com mais força meu ombro. Embora não conseguisse ver seus olhos, senti que seu olhar sobre mim lançava-se como dardos venenosos e mortais. De súbito, ele largou - me e caminhou rapidamente para a janela. Olhando para a noite negra e fria lá fora, respondeu-me lentamente.

 - Eu sou o seu maior pesadelo. Sou tudo aquilo que temes. Eu sou o seu começo e serei seu fim. Sou o seu passo em falso, seu momento de distração, o fruto de sua preguiça... Sou aquele quem você teme ser e, no final das contas, exatamente quem você é. Eu sou você amanhã, porque você já foi como eu... Estive contigo na tua primeira redação de escola... Na primeira carta de amor arrancada desesperadamente na forma de versinhos de rimas pobres... Fui seu aliado em todas as provas de interpretação de texto onde não sabias exatamente o que dizer. Eu sou a tua ausência de luz divina... Sou seu talento em trevas. Sou o padastro de tua musa inspiradora. Eu sou...

...O Clichê! - completei num sussurro rouco. - Mas, o que você quer de mim?

- Eu quero teu texto, tua redação, teu estilo. Quero viver nas tuas histórias, alimentar-me de seus contos, chafurdar nas tuas poesias. A cada linha em que me tiveres, me tornarei mais forte, irei mais longe e semearei minha chaga. E você, ao fim de meu trabalho, será medíocre e escreverá contos para revistas de adolescentes, novelas de televisão e letras de sucessos da música popular romântica. Eu vou consumir seu poder de criação mas, em troca, lhe farei milionário. Terás, fama, fortuna e poder. Venha comigo...

- Não! Como viverei em paz com minha consciência sabendo que colaborei para um mundo mais medíocre? Que me vendi ao sistema? Que tornei me um...um... Carlos Lombardi! Não! Valha-me Deus! Prefiro morrer à míngua!

- Pois você não tem escolha - bradou O Clichê, enquanto ria e caminhava ameaçadoramente até mim.

- Não! Não! Não!!!! - gritei, tentando proteger-me com meus braços. Quando abri os olhos, estava em minha cama, e o sol raiava pela janela. Respirei, aliviado. Estava a salvo afinal. Tudo não passara de um pesadelo. Minha integridade ainda estava intacta. Mas, quando levantei-me e caminhei até o computador, notei que este estava ligado e este texto havia sido digitado. Comecei a balançar a cabeça, como se não pudesse acreditar e pus-me a recuar em direção à porta, por onde saí correndo e gritando.

Zoom out partindo do close na tela do computador, passando através do vidro da janela como em Cidadão Kane.

Vista panorâmica da cidade e lentamente dá fade to black.


The end.


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Aquele lance de mudar de um lance pra outro,tá ligado?
Por Rodrigo Amém


Assim que acordou, Gregório avistou a rua pela janela. Chuviscos escorriam pelo vidro e um dia nublado se desenhava lá fora. Olhou para o relógio. Um quarto para as sete. Estava atrasado para a aula de História da Arte do Egito Antigo. Olhou para o próprio corpo e assustou-se. Uma estranha massa bronzeada de músculos bem definidos se apresentava no lugar onde, costumeiramente, encontrava sua barriga flácida e branquela. Imaginou que era, meramente, uma alucinação, fruto da noite mal-dormida. Logo recobraria plenamente os sentidos e despertaria. Pensou em retirar o lençol de cima das pernas com um movimento rápido. Qual não foi sua surpresa ao perceber que havia colocado força demais no movimento e acabara por rasgar o lençol.

Levantou-se depressa e olhou-se no espelho. O que era aquilo? No lugar do físico pequeno e cheio de alvas dobras cutâneas, enxergou um verdadeiro Apolo no espelho. Alto, queimado de sol, incorrigível. A não ser, talvez, pelas orelhas. Péssimas orelhas, aquelas. Inchadas, disformes. Lembravam aquele vegetal. Como é mesmo o nome? Agrião. Não. Agrião é verde, pensou sem muita certeza.

Que situação. E agora, como explicaria aquilo no clube de ciências? Uma ruptura no fluxo tempo-espaço. Sua massa corpórea sofrera uma mutação causada, provavelmente pelo... Como é o nome daquele fenômeno? Ah, sei lá, mano.

Subitamente olhou para o chão. Sentiu uma vontade incontrolável de atirar-se ao solo. Atirou-se, pois. E descobriu, assustado, que era capaz de fazer apoios. E gostava da sensação. Maneiro! Mas foi interrompido por um barulho. Alguém batia à porta. Era sua mãe, avisando que a galera do curso tinha chegado para buscá-lo.

Num ato quase involuntário, passou a chave na porta. Não poderia deixar que fosse visto daquele jeito. O que diriam? Fariam citações eruditas de físicos como Shakespeare. Opa. Eu disse Shakespeare? Mas ele nunca foi físico. Ele era, na verdade... Deu branco, mano.

Voltam a bater na porta. Sua mãe, de novo. Seus amigos estavam com ela e pediam que ele se apressasse. Resolveu inventar uma desculpa para o atraso.

- Pera aí, mermão. Fica de boa que a gente já vamos...

Gregório leva as mãos à boca. De onde teria saído aquela frase? Aquele modo de falar não era dele, definitivamente. E, no entanto, havia saído de seus lábios. Estaria possuído por algum espectro descarnado? Ou teria levado muito pé na orelha e estava zoado? Zoado?! Ó o cara, meu!

- Gregório, você está bem? Há algo errado? - perguntava um dos colegas, atrás da porta. Gregório não sabia o que fazer. Talvez devesse avisar que estava se sentindo mal, que não iria à aula, esperaria que todos saíssem e depois levaria seu pit bull para dar uns rolê e ficar de bobeira vendo as mina. Meu Deus, o que havia acontecido com ele? Que vírus teria mudado seu corpo e sua mente? Seja lá quem for esse tal de vírus, vai levar porrada! Qual que é, mermão? Vai levar um armiloque!


De comum acordo, mãe, família e amigos acharam melhor lacrar a porta. Definitivamente.


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O prisioneiro
Por Rodrigo Amém

É um lugar úmido, frio, silencioso. Quatro paredes altas, recobertas de limo e angústia. Uma cela escura e sem janelas, de onde o prisioneiro acorrentado vislumbra duas portas. Uma está a sua frente, dourada, com anjos em alto relevo, destoando do resto do aposento. Por suas frestas, uma luz azul engatinha, acompanhada de uma leve brisa perfumada.

Atrás de si, o prisioneiro vê uma porta rústica e desgastada, rangendo suas dobradiças enferrujadas enquanto parece ser forçada de fora para dentro. Urros, lamúrias e gargalhadas histéricas ecoam pelas falhas na madeira carcomida. Algo está prestes a colocá-la abaixo,com as piores das intenções.

Confuso, o prisioneiro teme por seu futuro. A cada vez que olha para trás, vê a porta velha maior e mais fragilizada pelas tentativas de arrombamento. Toda vez que olha pra frente, reza para que algum daqueles anjos se liberte da forma dourada e venha resgatá-lo antes que seja tarde.

Ao olhar para o teto, o prisioneiro percebe que uma escotilha se abre de tempos e tempos, através dela, pessoas o observam com cara de piedade. Outras, apenas apontam e riem, sarcásticas. Algumas atiram coisas como pão, restos de frutas e frases prontas de livros auto-ajuda. Às vezes, um beijo misericordioso vem de cima e pousa em seus lábios. Após o breve período de alívio que cada beijo proporciona, a porta de trás treme mais furiosa.

O prisioneiro daria tudo para entender porque fora jogado naquele limbo. O que fizera de errado? Que crime cometera? Ele grita,pedindo por sua liberdade. Por um segundo, ambas as portas tornam-se silenciosas. Apenas o barulho de um relógio invisível ecoa pelo aposento. De súbito, a porta dourada começa a se iluminar. Uma cantilena angelical anuncia o que está para acontecer e o prisioneiro sorri em meio a uma oração. É possível ver a maçaneta dourada girando, lentamente.

Mas a porta carcomida inicia uma trepidação febril e descontrolada, acompanhada por urros de uma fera assustadora. A porta angelical queda em silêncio, ainda fechada. Da mesma forma, a porta medonha. Apenas os risos de uma ou outra pessoa na escotilha invadem o silêncio. O prisioneiro fecha os olhos, em desespero. E sente saudades do tempo em que uma mulher não demorava para dizer sim e o não sob pena de atrasar a cerimônia.


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Nocaute
Por Rodrigo Amém

Em seu último dia, o boxeador ponderava, quieto. Narizes quebrados, costelas partidas, supercílios sangrentos. Enfim a paz, o cachimbo na varanda, a cerca branca. No balanço da cadeira, esquivar o feitiço da morte. Nocaute.

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O duelo
Por Rodrigo Amém

Têm umas palavras que a gente nem sabe que existem. Até o dia em que elas viram a coisa mais importante da sua vida. E eu nunca esqueci as palavras que mudaram a minha vida pra sempre: Esquizofrenia Hebefrênica.

Não, eu não sou esquizofrênico. Meu pai era. Mas, quando eu tinha 14 anos, eu não sabia disso. Eu achava meu pai divertido. Imprevisível. Às vezes ele era alegre demais, e minha mãe parecia que não gostava. Ficava com uma cara meio constrangida. Mas a gente adorava o pai fanfarrão, falando alto no meio da sala de estar. Às vezes, ele ficava quieto. Triste. Não falava com a gente. Se trancava no escritório. Ouvia música italiana antiga. Ópera. Às vezes, não ouvia nada. Ficava lá, sozinho. Mamãe entrava com um prato de comida, ficava um pouco. E saia com a comida do jeito que tinha entrado. Na maior parte do tempo, meu pai era um pai como tantos outros. Até o dia em que voltamos da escola e mamãe tinha ido ao mercado.

Papai nos recebeu na porta da sala, coberto de suor. Vestia um avental. Só um avental. Sorriso aberto, escancarado, numa boca marcada de batom vermelho. Cabelo em pé, sombra azul borrada nos olhos. “Crianças! Que bom que vocês chegaram!” Fabiana, minha irmã, tinha de oito anos. Laurinha, a caçula, tinha seis. Ficamos os três parados. Atônitos. A casa estava impecável. Papai devia ter trabalhado a dia inteiro em uma faxina pesada. Isso explicava porque ele tava tão suado. Porque ele estava nu e maquiado como uma drag Queen, não. Mas antes que a gente pudesse fazer qualquer pergunta, ele nos conduziu até a mesa de jantar.“Papai tem uma surpresa pra vocês”, disse sorrindo. Sobre a mesa de jantar, bem longa, estava cuidadosamente expostas todas, absolutamente todas as facas que tínhamos em casa. Todas. Alinhadas da menor para a maior. Assim, num extremo da mesa estava uma pequena faca de manteiga. No outro extremo, uma enorme faca de cozinha. Entre elas, todas as facas que meu pai conseguiu achar. Ele nos colocou sentados à mesa, ao redor daquela exposição.

Então Fabiana conseguiu verbalizar sua confusão: “Papai, o que você ta fazendo?” Ele olhou para ela sorrindo. “Foi bom o seu dia na escola, minha querida? Aprendeu muitas coisas novas? E você, meu amorzinho? Ta gostando das coleguinhas, Laurinha?” Aí ele parou a festa e olhou seco, sério, para mim. Por uns 2 segundos. E sorriu de novo: “Meu garotão vai gostar dessa surpresa que o pai preparou!” e ficou sério, sereno. “A situação não ta fácil, meu filho. A economia ta de mal a pior. A inflação tá incontrolável. A gente não têm como sustentar dois homens nessa casa. E Deus sabe que eu é que não vou sair, não é? Ahahahhaha! Mas se têm uma coisa que todo mundo diz a meu respeito é que eu sou justo! Todo mundo fala: Seu Martins é muito justo! Não é com o meu filho que eu vou deixar de ser, poxa! Então eu tive essa ideia. A gente vai ter um duelo com facas. Até a morte. Quem sobreviver, fica como chefe da família. Eu deixo você escolher sua faca primeiro. Aí a gente desce pro porão, pra não sujar nada aqui e resolve a coisa toda. Não é uma ideia genial?”

O jeito que ele olhava pra gente era tão distante do pai que a gente conhecia, que a possibilidade de ser uma brincadeira nunca nem passou pela cabeça de nenhum de nós. Era pra valer e todo mundo naquela mesa sabia disso. Fabiana começou a chorar, com medo. “Eu não quero duelar com você, pai”, parecia que eu não tinha força pra empurrar as palavras pra fora da boca. Parecia que eu não conseguia me mover. “Nananinanão. Eu disse que te daria uma chance. Não que te daria uma opção. Até porque eu já pensei bastante sobre isso. Eu penso sobre isso desde que você era pequeno. Que um dia eu teria que matar você. A natureza é assim, meu filho. É uma questão de dominância. O cão mais novo vai sempre querer tomar o lugar do cão mais velho. Olha, vamos fazer o seguinte. Escolhe qualquer uma. Só por formalidade. A gente não precisa duelar. Você pega uma faca qualquer, a gente vai pro porão. Eu corto seu pescoço. Rápido, sem dor. Quer dizer, isso se você me deixar pegar a faca maior, que é mais afiada. Fica difícil fazer corte sem dor com faca de manteiga, não acha?”

Luiza chorava baixinho, com a mão na boca. Fez xixi na roupa. Fabiana fez que ia leva-la pro quarto. Meu pai lançou um olhar ríspido e uma frase seca: “Ninguém levanta”. Eu queria argumentar que não era preciso recorrer à violência. Que eu podia simplesmente sair de casa, que eu podia trabalhar pra aumentar a renda, que eu não queria ocupar o lugar dele. Eu queria falar isso tudo, ainda que, no fundo, eu soubesse que não adiantava. O que quer que estivesse acontecendo com meu pai, ele não estava em sã consciência. Não era ele. Aquela figura maquiada, suada, nua, com o avental colado no corpo e sorrindo para mim não era meu pai. Era um demônio. Só podia ser. E eu só conseguia repetir, como se fosse um mantra: “Eu não quero duelar, pai. Eu não quero duelar...”

Então eu ouvi o barulho de vidro se quebrando. Minha mãe, que acabara de chegar, levou um choque ao ver meu pai ali, naquela situação, brandindo facas na direção dos seus filhos. A garrafa de refrigerante que ela trazia para o lanche tinha escapado de suas mãos e espatifado no chão. O barulho e a visão da minha mãe em choque deixaram meu pai atônito, congelado. Depois de alguns momentos contemplando o horror, minha mãe se refez, caminhou decidida até ele. Sem falar uma palavra, tirou-lhe a faca da mão e colocou-a sobre a mesa. Com a outra mão, agarrou o braço do meu pai e levou-o para o quarto. Lá ficaram por algum tempo. Ouvíamos murmúrios. Minha mãe sabia como falar com ele. Sempre soube. Não devia ter sido a primeira vez. Com certeza não foi a última. Alguns momentos depois, meu pai saiu de lá de paletó, cabelo arrumado, cara lavada. Uma maleta nas mãos. Quase ao mesmo tempo, o som de sirene da ambulância estacionando em frente de casa encheu a sala. Papai passou por nós de cabeça baixa, guiado por mamãe, que lhe segurava o braço. Ele murmurou algo como “Me desculpe” e saiu pela porta. Voltou algumas semanas depois, exausto, mas refeito. E mamãe me explicou o que era Esquizofrenia Hebefrênica: “É quando a pessoa se ausenta, mas o mal permanece”.

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Pijamas e peixes
Por Rodrigo Amém


Ao final do quarto dia sem comida e água, o missionário arrastava suas sandálias morro acima, fé embotada em cansaço e incerteza. Já no cume, a imagem de um imenso lago o atingiu como redenção e humildade e, trôpego, o viajante jogou-se às margens e engoliu toda a água do mundo. Ainda restava a fome de uma semana quando, carregando peixes em cacho, um pescador caminhava em direção do missionário de braços erguidos em gratidão pela graça alcançada.

- Por favor, cavalheiro. O senhor disporia de um peixe para ajudar a propagar a mensagem de Deus?

O pescador olhou-o sem emoção.

- Por que Deus precisaria do meu peixe?

- Deus precisa que todos propaguem Sua Palavra. Para isso fez de mim missionário. Para que Sua Mensagem chegasse mais longe.

- Não teria sido mais eficiente fazer de você pescador?

- Cavalheiro...

- Cavalheiro é quem tem estudo, senhor. Sou pescador. Tiro meu sustento do mar. E é só o que eu sei.

- Pois foi Deus quem criou o mar que lhe dá sustento. O senhor está obrigado a expressar sua gratidão! - exaltou-se o faminto missionário.

- Se assim o senhor diz, o criador do mar é o criador de tudo que há. - Sim! Nada passa pela terra sem o Seu conhecimento!

- Pois também deve ser obra dele a morte que te assombra. Aceita teu destino, senhor. É da vontade dele. O missionário calou-se diante da própria morte.

 - Você deixaria um irmão morrer de fome? O pecador se sentou.

- Nasci pobre. Quando eu não tinha idade nem coberta, eu e meu irmão dividíamos o pijama do meu falecido pai. Cada um vestia uma perna e um braço. E o calor do abraço embalava nosso sono. Quando eu fiquei grande demais para o meu lado do pijama, tive que escolher morrer de frio, matar de egoísmo ou virar pescador. Então o pescador alcançou o cacho de peixes e jogou um deles na direção do missionário.

- Não sei qual a mensagem do seu deus. Mas, se ele não te deu um pijama, aprenda a pescar. - disse o pescador, tomando seu rumo.


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Tekoha
Por Rodrigo Amém

       Cauré herdou o nome do avô, que nasceu sob o planar de um gavião. Do seu pai, Andirá, aprendeu a pesca, tinha tempo, já. Ele era guri, ainda tinha peixe, ainda tinha rio. Agora, só pescava lembranças entre um arado e outro. Quase não vinha nada na rede das memórias. Só secura.

      Mas foi da mãe, Jandira, trançadeira, que aprendeu a trançar e tecer o artesanato que lhe deu sustento. Sabia fazer cesto, balaio, tapete, corda. Só não aprendeu a trançar o destino, sempre emaranhado, quebradiço.

      Seu tio dizia que, no sangue do Kaiowá, não corre paz. A maldição do povo guerreiro é a vocação da guerra. Enquanto trançava, Cauré não se lembrava direito se a luta era caminho ou meta. Só a sentia presente, pesada. Cauré se sentia cansado e só.

     Esta é a última noite de Tekoha. Amanhã, sol alto, as autoridades virão reclamar a terra. De sua avó, Coaraci, Cauré aprendeu que Tekoha, como os Kaiowás batizam seu lar, é a junção de teko (modo de ser), com ha (lugar onde). A terra e o Kaiowá são trançados juntos, como a corda longa que Cauré arremata no costume de sua gente.  

     De pé, sobre o maior galho do ipê roxo que fez sombra à sua infância, Cauré ajusta o nó firme na corda virgem. Olha pela última vez o horizonte sobre Tekoha. Abre os braços feito gavião e salta, unindo-se a Andirá, Jacira e Coaraci. Pés removidos da terra, suspensos pelas próprias tradições, num suave balançar na alvorada.


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A Sogrinha, a Esposinha e o bolo de fubá.
Por Rodrigo Amém 

Ele havia procurado por ela a vida inteira. Ela nunca chegava. E ele começou a se cansar. E apareceu a esposinha. Nada de errado com a esposinha.

Prendada, leitora assídua de Sabrina e seria com certeza uma boa mãe em breve. Mas era do tipo standart. Não dava problema. Nem tampouco os benefícios de uma grande paixão. E a esposinha tinha uma mãe. Calma lá, não se apresse! "Sogra, já vi tudo!", deve ter pensado você. Mas não era o caso.

Dona Dilma, a mãe da esposinha, era uma candura de pessoa e realmente o amava como a um filho. Os amigos invejavam a sogra abençoada, que fazia tudo pra ele. Dona Dilma brigava pelo genro com até mais afinco do que pela própria filha. Afinal, era o "futuro pai dos meus netos".

E havia uma forma doce de demonstrar o apreço pelo esposo da filha-esposinha. Bolo de Fubá. Dona Dilma fazia fantásticos Bolos de Fubá. E ele adorava. Assim, como uma espécie de mesada pelos bons serviços prestados na construção de um futuro lar, todos os sábados, pela manhã, ele recebia nacos generosos do bolo de fubá da sogrinha.

E ele ia pra casa quase feliz, carregando seu prato temperado, cheio de pedaços cúbicos de bolo de fubá, cobertos por um pano de prato com desenhos de frutas tropicais feitos à mão. E ele descia a rua até sua pequena casa. Jardim, antena parabólica, forno de microondas. A geladeira jamais precisava ser descongelada. O fogão era auto-limpante e ele conseguira programar o videocassete para gravar o Globo Repórter toda semana. Sempre teve uma habilidade especial para lidar com eletrônicos. Um dom.

No meio do caminho, eles se encontraram. Ela abriu um sorriso impactante. Não havia dúvida. Sorrira para ele! Ele quis fazer de conta que não. Tentou mudar de calçada mas era tarde. Estavam parados, frente a frente.

- Pensou no que eu te disse? - Perguntou ela, esperançosa.

- Pensei.

- E então?

- Olha, eu acho que não vai dar. Sinto muito, mas eu sou casado, você sabe.

- Casado? Isso nunca foi problema pra você quando a gente está fazendo amor!

- Por favor, fala baixo...

- E quando você diz que me ama? Que quer largar tudo e ficar comigo? Você nem se lembra que é casado! Nem se lembra da sua esposinha!

- Pelo amor de Deus, tem gente olhando...

- Meu amor, olha pra mim. Esquece esse pano de prato e olha pra mim! A gente se ama! Eu sonhei com você todas as noites da minha vida! Você é o homem da minha vida! Eu adoro seu beijo, sua boca, sua voz... A maneira que a gente faz amor... Por favor, vem comigo... Vamos ser felizes... Você não ama essa mulher... Fica comigo... Você não me ama?

- ... amo...

- Você não me quer?

- ... quero...

- Então me assume, me beija, casa comigo, meu amor! Vem, quero fazer amor com você agora mesmo, embaixo dessa jabuticabeira. Vem! Te quero!

- Pára com isso! Não me pega! Tem gente olhando! Tá maluca?

Ele foi rude. Ela parou, de súbito. Olhou para ele. Seu lábio inferior começou a tremer. Uma lágrima rolou.

- Por que você tá fazendo isso comigo?

- Olha, não é que eu não te ame... Mas... Sabe... Dona Dilma, minha sogra... É ela quem faz esse bolo de fubá...
Ela levantou a mão pedindo para que ele parasse. Era demais. Não estava sendo preterida por uma mulher mais bonita, jovem, fogosa ou apaixonada. Era trocada por um bolo de fubá. Respirou fundo e o olhou nos olhos.

- Adeus, meu amor. Seja feliz. - E, soluçando, virou-se e fugiu dali andando depressa. Jamais voltaria.

Ele ficou ali parado, olhos embotados. Pensando na antena parabólica, no microondas, na geladeira, no fogão, no videocassete e no amor de sua vida indo embora aos prantos. A mulher que ele cansou de esperar veio ao seu encontro e foi embora. Ele deixara. De longe, quem o observava ali impassível, de pé, segurando o prato de vidro temperado cheio de bolo fubá, tinha a viva impressão de que, encobertas pelo pano de prato pintado à mão com motivos de frutas tropicais, suas mãos estavam algemadas...



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O Barão e o Pato

Por Rodrigo Amém

O Barão não se importava com muitas coisas na vida. Dinheiro não era problema, conforto não era problema, solidão era um favor. Uma coisa que se descobre já na esquina final da vida: companhias são superestimadas.

Só, ele garantia que todo seu tempo fosse dedicado ao que realmente importava. Porque, ainda que sobrassem dinheiro, conforto e solidão, lhe faltava saúde. E preso no seu estéril laboratório de vidro, o Barão se protegia dos germes, vírus e agouros que pudessem se aproveitar de sua imunodeficiência.

Dentro do laboratório, apenas o Barão respirava. Seus mantimentos chegavam através de um elaborado sistema de correias e portas de descontaminação. O Barão mesmo fez questão de dispensar assessoria, ajuda ou qualquer tipo de interação com outros humanos. A esteira trazia tudo que ele precisasse. O resto, o Barão já tinha.

Uma noite, acordou de sobressalto. Um quack ecoou dentro das paredes de vidro. Batendo palmas, o Barão trouxe de volta a luz fria que ilumina o ambiente. Nada. Outro quack. Parecia vindo do alto da escadaria que, outrora, conduzia à sacada. A luz da lua imprimiu na parede contrária a silhueta de um pato selvagem.


Abrindo as asas, a sombra mergulhou na noite e desapareceu. Contrariado, o Barão apagou as luzes com uma palma e voltou à cama. No dia seguinte, contrataria um caçador. Ou compraria alguma forma de artilharia antiaérea, ou construiria um robô assassino de patos. Qualquer coisa que matasse esse desejo mortal de abraçar algo vivo.


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O jantar
Por Rodrigo Amém


A sala era decorada à Luís XV. Alguns móveis - dizem - haviam pertencido ao próprio. Jantar findando em meio às pratarias, cristais e guardanapos borrados. Ele joga um olhar em direção a ela. Lembra o Neymar vendo uma brecha na defesa. Limpa a boca no guardanapo e avança em direção ao gol:
- Uma beleza, a sua casa. - comenta ele, com um sorriso obsceno.
- Obrigada. - limita-se a anfitriã. Ela é loira e tem cabelos muito presos num coque, sobre um vestido muito preto e uma pele muito branca.
Batom, ainda após a refeição, muito vermelho.
- E que belo jantar. Acho que comi mais do que podia! - continua o artilheiro.
- Nosso cozinheiro é realmente muito talentoso. Trabalhava no Palácio antes de ser contratado. Ganha mais que alguns Senadores.
- E eu devo dizer que é merecido. Que carne é essa que comemos? É sofisticado, agridoce... Uma textura incomparável. Única. Assim como a anfitriã, devo acrescentar, se me permite a ousadia... - Lá vem o sorriso de novo. E ela apenas retribui. Vai rolar, ele pensa. Novo ataque:
- Escuta, quero lhe propor algo. Estamos apenas nos conhecendo e ainda há muito sobre você que eu quero saber. Eu já sei que você é incrivelmente rica e bela. E que temos um negócio, digamos, arriscado em comum. Mas o que mais podemos falar sobre você?
- Não sei. Acho que é tudo que há para saber.
- Não, não. Vamos fazer o seguinte. Eu proponho um pacto de segredos. O que acha? É a melhor maneira de garantir nossa confiança mútua. Eu te conto um segredo meu e você me conta um segredo seu. Que tal?
- Eu não sei...
- Vamos, vai ser bom para aprofundar nossa cumplicidade, minha ... sócia. - Ao falar isso, ele pega delicadamente na mão dela sobre a mesa e a olha no fundo dos olhos. Ela sorri, envergonhada.
- Muito bem. Mas você começa - Exige ela.
- Acho justo. - diz ele, limpando a garganta. - Bem... Eu, quando era médico residente, tive este paciente, um senhor bem velho. Ele estava nos aparelhos há muitos meses. Os parentes nem iam visitá-lo mais. Era um cadáver inflando e murchando no respiradouro. Quantas pessoas eu vi morrendo nos corredores porque o velho não tinha a dignidade de morrer e ceder o lugar a quem realmente tinha chance de recuperação... Eu odiava aquilo. Um belo dia, um senhor muito rico apareceu com seu filho doente. Precisava de um transplante e o velho moribundo era o doador que ele procurava. Mas talvez o garoto não conseguisse viver tanto tempo para esperar a boa vontade do cadáver inflável. Então, quando chegou a madrugada, eu fui e desliguei tudo. Ele parou de murchar e inflar. Parecia um boneco. Mas então eu percebi que ele estava agonizando. Não era nada como eu pensava. Ele realmente estava sufocando calado e lentamente. Sabe o que é mais estranho? Eu gostei de ver. O resultado final é que o pai do garoto me pagou muito bem pelo órgão e tudo ficou certo. Desde então eu tenho estado nesse "ramo". Mas a parte que eu mais gosto, na verdade, não é da vida que eu salvo em cada transplante. Eu gosto é das eutanásias que eu tenho que fazer, vez ou outra. É isso. Acho que há, em todo mundo, um médico e um louco. Não é?
- É. Você deve ter razão. - comentou, laconicamente a loira.
- Sua vez.
- Bem, acho que tenho um segredo para contar pra você também. Sua fama, desde antes de nos conhecermos, sempre me impressionou. Por isso procurei você. Sabia que não se negaria a nos ajudar a conseguir novos órgãos. E desde que nos conhecemos, minha admiração tem aumentado. Mas há algo que eu preciso confessar, já que você foi tão honesto comigo. Eu não agencio órgãos humanos para a doação.
O médico ficou atônito e começou a olhar para todos os lados ligeira e sutilmente.
- Meu Deus, não me diga que você...
- Não, não sou da polícia. E isso não é uma armadilha. Eu realmente utilizo os órgãos que você me vende, mas para outros fins.
- Que fins?
- Bem, você sabe que há cerca de 100 pessoas no mundo que detêm mais dinheiro que os 30 países mais pobres juntos. A divisão de riquezas no planeta é muito desigual. Mas não são só os pobres que sofrem com isso. Os que estão no topo da pirâmide também. Chega um momento em que não há mais o que se fazer com tanto dinheiro. A vida fica monótona, repetitiva. Meu trabalho é arranjar novos prazeres a essas pessoas, que pagam pequenas fortunas por prazeres que seriam, no mínimo, inusitados para os reles mortais.
- O que isso tem a ver comigo?
- Bem, não há alimento que não se experimente, quando se é incontestavelmente rico. E quando já se comeu de tudo, acaba o prazer, a novidade, a emoção das reuniões gastronômicas...
- Essa não...
- Pois é, meu caro. Eu vendo os órgãos para um mercado negro de gourmets que cozinham miúdos humanos. Um fígado em bom estado pode custar 50 mil dólares a porção e render umas 4 delas. Que boi daria um lucro desses?
- Isso é inaceitável! Meu Deus, eu posso ter meus problemas éticos, mas não sou um açougueiro! Eu não posso admitir isso!
- Sabe aquele pâncreas do garoto alagoense, que iria salvar uma menina americana?
- Sim...?
- Como estava o molho?
O silêncio pairou sobre a sala e os móveis de Luís XV.


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Epaminondas
Por Rodrigo Amém

Epaminondas sonhava criança com a Harley rasgando a terra árida, gata e garupa. De começo, cascalho era empecilho, não pele de estrada. Quanto mais possante e cromado sonhava, maior a distância entre Epaminondas e seu cavalo de ferro. Mas Epaminondas foi lá. Geral brincou, ele estudou. Geral namorou, ele trabalhou. Geral foi feliz, ele poupou. Pregou a vida no sonho e vice-versa. Virou avô, careca, barrigão. Mas motoqueiro. Idade é cabeça, geral diz. Mas a dona Vilma, esposa do Epaminondas, de calça de couro de oncinha, é irrefutável. Idade também é bunda. E a do Epaminondas murchou de esperar.




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Reichokê
Por Rodrigo Amém

Algumas inovações da vida moderna realmente conseguem me impressionar. O DVD, a internet e os peitos de silicone, por exemplo. Afirmações de que o homem pode se superar a todo momento. Nos últimos dias do século XX, muitas enquetes de rua foram feitas pelos telejornais do mundo afora, enfocando exatamente esta questão: qual a invenção mais assombrosa deste século? Muitos lugares comuns como os que eu citei no início deste texto foram lembrados pelos transeuntes. Mas ninguém lembrou do meu favorito. Ou melhor, do invento que mais me assombra e assusta. O Videokê.

Filho Hi-tec do ancião Karaokê, o videokê é o motor de arranque de uma revolução silenciosa vinda do oriente, com jeito de arma da guerra fria. Começou como uma bobagem saudosista que nisseis, sanseis e nãoseis importavam para alimentar a sua saudosista fome cultural de seu país de origem, o Japão. A japonesada se divertia horrores, por horas a fio, tomando saquê e cantando aquelas musiquinhas de Japan Pop Show. Mas aquilo era apenas o começo.A febre começou a se espalhar quando surgiram as primeiras versões de músicas brasileiras adaptadas para o joguinho. Agora, a brincadeira não era mais apenas um privilégio de gente de olho puxado. E a coisa começou a degringolar.

O mais impressionante sobre o Videokê é que ele tem uma capacidade incrível de hipnotizar mentes. Até as pessoas mais tímidas, donas de vozes acanhadas e com senso rítmico de um corrimão de escada se acotovelam para cantar "Fio de Cabelo". Respeitáveis senhoras são capazes de sair no tapa pela posse do microfone. Crianças choram, já que ninguém deixa que elas cantem Xuxa. Pais bêbados entoam "Borbulhas de Amor" para esposas constrangidas e logo a seguir, aquela mocinha crente e com cara de "quero-sumir-daqui" mostrará todo o seu potencial de Celine Dion cantando o tema de "Titanic". Afinal, o pessoal lá da Assembleia sempre diz que ela tem uma voz abençoada. Aleluia, irmã. Ninguém conversa.

Mas todo mundo canta. O Videokê é, claramente, uma invenção diabólica. Coisa do capeta.
Mas é interessante como é fácil chamar a atenção das pessoas. É só falar delas mesmas. É isso que o Videokê faz. Quando a máquina distribui notas aleatórias com mensagens de incentivo, está falando para o tiozinho careca e gordo que ele realmente impressionou com "My Way". Quer dizer, mais um pouquinho e o Agnaldo Rayol que se cuide. De ego inflado, o Tiozinho volta para o fim da fila. Da próxima vez ele chega a 80! Onde está o maldito cardápio de músicas?

Outro detalhe que merece nossa atenção é o teor das ilustrações da tela do Videokê. Qual seria a relação entre aquela foto dos pinguins na Antártida e a música "Morango do Nordeste"? Seriam os pinguins os verdadeiros morangos? Estariam eles de malas prontas para enfrentarem a temperatura tropical do Piauí? E aquela orquídea servindo de cenário para "Emoções", do Roberto Carlos? Romântico, é verdade. A seguir, um motociclista cruza o deserto num trecho do rally Paris-Dakkar. "Se chorei ou se sofri, o importante é que emoções eu vivi...", narra o cantor. Com certeza, o motoqueiro vive melhores emoções no momento daquela foto do que nós, no momento de sua exibição musical.

Eu tenho uma teoria.

Acho que, por detrás daquelas imagens belas e da fascinação pelo Videokê, esconde-se um plano maquiavélico de dominação cultural pacífica. O Japão está tentando conquistar o mundo através de mensagens subliminares escondidas nas imagens do Videokê. Enquanto ouvimos Leandro e Leonardo e a imagem nos mostra um camelo passeando perto das pirâmides, uma mensagem subliminar é transmitida ao nosso córtex cerebral: "Vocês são meros camelos sul-americanos! Rendam-se ao nosso império oriental!".

Tá rolando a florzinha na tela. A tia cantando a versão da Simone da música de natal do John Lennon (estamos em março). A mensagem subliminar comendo solta. "Abram seus mercados para os nossos produtos eletrônicos! Vocês serão o adubo para nossa nova ordem mundial! Rendam-se a nós!". Terríveis, esses japoneses. Duas bombas atômicas não justificam uma vingança cruel como esta.

Dentro de poucos anos, estaremos subjugados e a América liderada pelos EUA cairá sob o julgo do Império do Sol Nascente. Embalado a Whitney Houston, Sula Miranda e Pepino de Capri, nascerá o quarto Reichokê. Mas todos nós teremos nota 80. Parabéns! Somos quase profissionais.


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Pedro e Samanta 
Por Rodrigo Amém

Não que Pedro tivesse deixado de amar Samanta, muito pelo contrário. Mas homem tem dessas coisas.

A primeira vez que conversaram, achou-a delicada, inocente. Recatada. Uma mulherzinha doce. Cabelos castanhos, escorridos e finos. Finos como seus dedos e seus braços muito brancos. Samanta parecia feita de louça, como um bibelô e dava a impressão que estava prestes a quebrar em cacos. Lindinha, ela. "Essa é pra casar", pensou.

Na cabeça de Pedro, "mulher para casar" é o antônimo de prostituta. Em outras palavras, alguém que daria só para ele. Uma virgem, nascida apenas para o seu gozo, sem trocadilhos. Samanta parecia ser essa moça. De tão branca, delicada e tímida, era difícil imaginá-la com um brutamontes peludo, suado e ofegante acolhido no meio das coxas. Aliás, as pernas de Samanta pareciam nunca terem se afastado mais do que trinta graus uma da outra. Mulher para casar.

E assim foi. A noite de núpcias, esperada e programadíssima, seria o grande momento. Até lá, por uma questão de respeito à Samanta e sua família, Pedro só praticou sexo com profissionais e uma ou outra ex-namorada, já em clima de despedida. Afinal, ele estava prestes a deixar a solteirice. A primeira vez de Samanta e Pedro, logo após o casamento, teve o lirismo e o ardor de um estupro consentido.

Com o passar do tempo, Pedro passou a olhar Samanta com outros olhos. Ela tinha seios. Firmes, bonitos, de um bom tamanho. E nádegas bem desenhadas, também. Afinal, sua mulherzinha era do tipo falsa magra. Quando a via de pé em frente ao espelho, escovando os cabelos, podia observar o corpo dela sob a camisola transparente. Mais que depressa, corria até ela, levantava-lhe a camisola e a possuía violentamente. Voltava para a cama satisfeito e dormia, deixando Samanta soluçando baixinho, apoiada nas paredes do closet.

Certo dia, Pedro acordou, olhou para Samanta e percebeu que estava entediado. Era preciso inovar. Ele queria algo diferente. Então, lembrou-se de um filme pornô que havia assistido na sua despedida de solteiro. Nele, um ator se roçava em duas americanas peitudas. Era isso.

Neguem o quanto quiserem, mas a grande fantasia sexual masculina sempre foi a "ménage à trois". E como Pedro já tinha uma mulher, só faltava à outra. Pensou bastante e lembrou-se de uma prima de Samanta que ele já havia pousado os olhos em cima. Ancas largas, peitões. Tinha cara de safada, ela. Claro que ia topar. Com aquela cara, deve gostar de uma sacanagem.

Samanta não foi consultada, foi informada. Não expressou qualquer reação. Arregalou os olhos um pouco, ao que parece. Mais tarde, naquela noite, Pedro ouviria mais soluços ecoando no banheiro, se não estivesse roncando tão alto. Não que Pedro tivesse deixado de amar Samanta, muito pelo contrário. Mas homem tem dessas coisas.

O plano era simples. Convidaram a prima - chamada Marta - para um jantar em casa. Ela, solteira, foi sozinha. Comeram, beberam uns drinks. Pedro babava no decote de Marta. Samanta ficou com a missão de fazer a abordagem inicial. Ainda na sala de estar, em frente à TV, colocou-se de pé atrás da poltrona onde Marta se sentava. Começou a massagear seus ombros, enquanto conversavam sobre amenidades. Pedro tentava ser discreto ao lamber os lábios, mas não dava. As mãos de Samanta corriam suavemente pelos ombros, nucas e lóbulos das orelhas de Marta. A conversa foi morrendo aos poucos e um silêncio profundo pairou na sala. Só a TV emitia sons.

Samanta convidou Marta, ao pé do ouvido, para ir ao quarto, conhecer o novo jogo de quarto que havia comprado. Marta disse sim antes mesmo ouvir o final da frase. Pedro foi recomendado que aguardasse um pouco, antes de segui-las.

Cinco minutos mais tarde, Pedro levantou-se decidido e, abrindo o zíper das calças, dirigiu-se ao quarto. Ao girar a maçaneta, não conseguiu abrir a porta. Forçou-a algumas vezes até se convencer que ela havia sido trancada por dentro. Pensou em gritar, chutar a porta. Mas desistiu ao ouvir os sons que se esgueiravam pelos vãos, saindo do quarto. Gemidos, gritos, sussurros, palavrões. Em grande parte, pareciam ser de Samanta. E ele jamais a ouvira falar assim. Ficou ali, de pé, olhando para a porta branca e ouvindo aquela sinfonia. E imaginando as duas se beijando, chupando, roçando e lambendo. Imóvel.


Três anos se passaram e Samanta e Marta estão felizes, juntas, e moram do outro lado do país. Pedro não se opôs ao divórcio. Como disse, numa roda de amigos, ele "sempre soube que aquela Samanta era uma vadia. Quando peguei ela dando para aquele negão, só não dei tiro nos dois porque sou cristão. Nem sei porque me casei com aquela piranha". A pior parte, para Pedro, era perder para alguém que não tinha pau.



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Quarta-feira
Por Rodrigo Amém


Ao lado da coroa de flores, a imagem de São Jorge oscilava a luz de velas. Clara tirava da bolsa o último lencinho descartável. Pelas paredes o surdo sincopado reverberava vindo das ruas, pressionando o silêncio do ambiente hermético. Um palhaço entrou e limpou a garganta, pedindo atenção.

- Dona Clara. Estamos prontos.

Clara levantou a cabeça e contemplou a figura de sapatos exageradamente grandes, peruca, nariz vermelho e maquiagem ao lado do caixão de Mauro. Algo que lembrava um sorriso se fez notar em seu rosto por um segundo. Ela se levantou.

- Mais uma vez, Dona Clara. Eu quero pedir desculpas pela correria... e pelos trajes. A senhora sabe...

- Não precisa se desculpar. Eu sei que você está abrindo uma exceção. E é pra atender o desejo dele.

- Por aqui, por favor – conduziu o palhaço.

Na sala adjacente, um homem baixo, peludo e de bigode grosso preparava o que parecia ser uma esteira de metal junto a uma enorme máquina colada à parede. A não ser pelo vestido de baiana, o turbante cheio de frutas e os enormes brincos, o homem mantinha a expressão fechada. Ao seu lado, um rapaz magricela vestido de Teletubbie anotava algo numa prancheta. Os dois pararam quando a bailarina e o palhaço entraram na sala.

- Estes são meus assistentes, Dona Clara. Rapazes, por favor. – O palhaço apontou para a sala anterior. Os dois saíram apressados para trazer o caixão.

Em alguns momentos, Mauro já estava sobre a esteira. Solenes, o palhaço, a baiana, a bailarina e o Teletubbie. Observam o esquife.

- Podemos começar, Dona Clara?

- Vocês se importam se eu disser algumas palavras antes?
Todos balançaram a cabeça em respeito.

- Eu conheci Mauro no Carnaval. Faz 20 anos. Aqui no Rio. Ele estava de padre sacana. Eu estava de Mortícia Adams. Foi no Cordão da Bola Preta. Foi a última vez que nossas fantasias de carnaval não combinaram. Mauro dizia ser um homem de duas paixões. O carnaval e eu. Não necessariamente nessa ordem. A gente se mudou do Rio, mas a gente sempre voltava para o carnaval. Ele fazia questão. Quando ele ficou doente, o médico recomendou que seria arriscado viajar. O esforço seria “irresponsável”. Mauro me olhou e disse: não tem risco que me separe dos meus dois amores. Quando ele caiu, ali, do lado da bateria, a gente já sabia. Ele só me disse: “se eu fui feliz nessa vida, foi porque um amor sempre me trouxe para visitar o outro”. Acho que é hora da gente revezar, meu amor. É hora do carnaval te levar. Mas eu juro, meu amor, eu sempre voltarei pra vocês. Fica em paz, meu amor.

Clara soluçou, olhou para o palhaço e fez que sim com a cabeça. A baiana de bigodes enxugou uma lágrima, e apertou o botão que abriu o crematório. A esteira metálica conduziu o caixão para dentro da máquina. As labaredas começaram a lamber a madeira e a porta se fechou, isolando o calor do forno. A bailarina, o palhaço, a baiana e o teletubbie se uniram numa prece silenciosa e espontânea. Pelas paredes, o surdo lá fora reverberava numa cadência que lembrava “Bandeira Branca”.


Clara despejou as cinzas de Mauro no percurso do último bloco do carnaval, para que as sandálias das passistas partilhassem com ele seu último samba. 



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O Verme
Por Rodrigo Amém

Definitivamente, não era capaz de suportá-lo. Tudo em sua maneira de portar-se sobre a Terra lhe era profundamente irritante. Não que qualquer evento do passado fosse responsável por tal emulação. Era coisa de santo, diriam alguns. Mas era mais. Era coisa de santo, de profano, de Deus e do Diabo. Com todas as suas forças, odiava-o e pronto. Nem podia evitá-lo. Trabalhavam no mesmo local, em departamentos que, ainda que diferentes, eram profundamente relacionados.

Certa vez, inadvertidamente, parou de trabalhar e começou a fitá-lo de olhos obtusos. Nada pensava, apenas fermentava sua repulsa. Notou sua barba mal feita, com pelos solitários ladeando marcas de acne, reminiscências daquilo que deve ter sido um jardim pustulento e amorfo, habitado por leucócitos polimorfonucleares vivos e mortos. Imaginou-o coberto de micro-vermes. Um grande verme e seu séquito. Sentiu um arrepio fruto da repulsa. Seus cabelos pareciam-lhe sebosos, insalubres. Seu sorriso era amarelo, sobre gengivas de cimento. Quantas bactérias caberiam em sua boca mole e malcheirosa? Sentia náusea ao imaginar o estado de suas roupas de baixo. Voltou os olhos para o trabalho e procurou esquecer as imagens que criara. Jamais pôde.

Com o tempo, percebeu que reconhecia os passos dele. Eram dissonantes, estridentes. Maldizia-os, sentia o estômago doer quando percebia sua aproximação. Tinha medo de não poder conter-se e terminar por esganá-lo sem maiores explicações. Seria demissão por justa causa, com certeza. Mas o prazer, meu deus, o prazer de acabar com aquela existência miserável... Toda vez que ele perambulava por seus domínios, tinha vontade de vazar-lhe os olhos com uma caneta Bic. Salivava apenas em pensar o quanto seria prazeroso arrancar-lhe, um a um, os cabelos da cabeça.

Muitas vezes, quis sair da sala. Não o fazia em consideração aos demais colegas. Afinal, sabe-se lá porque, gostavam do cara. Não o viam da mesma forma, pelo menos. E isso era difícil de administrar. Resolveu manter seu ódio em segredo. E se mantinha em silêncio quando ele estava presente. Com o tempo, alguns companheiros passaram a observar que havia qualquer coisa de errado no tratamento que dispensava ao pusilânime rapaz. Mas a resposta a qualquer indagação sobre o assunto era evasiva, quando não mentirosa. Os colegas preferiram, então, deixar o caso de lado. Eles, que são brancos, que se entendam.

Uma noite, ela teve um sonho. Acordou trêmula, afoita. Sentou na cama e começou a chorar. Ainda em prantos foi lavar o rosto no banheiro. Encheu as mãos d'água e levou-as ao rosto já úmido de lágrimas. Olhou-se no espelho e lembrou-se do sonho.


Lembrou-se da maneira que ele a tocava. Do jeito que aquela boca mole e mal cheirosa percorria-lhe o corpo, ladeada por pelos mal aparados que roçavam sua pele, enquanto os dentes amarelados mordiscavam cada centímetro de sua carne. Lembrou-se de segurar com força aqueles cabelos sebosos enquanto contorcia-se, em delírio. Ajoelhou-se sob a pia, chorando copiosamente. Estava perdidamente apaixonada.




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Glorinha & Clarice
Por Rodrigo Amém


Glorinha admirava-se diante do grande espelho. Mentira. Na verdade, observava de soslaio a bela Clarice e seu vestido branco ao seu lado. Linda.Tias, madrinhas, a mãe orgulhosa, todas se engalfinhavam para tocá-la, arrumar seu véu, pegar o buquê. Glorinha sorria, tímida. Sorriso breve, de educação.

As primas, vindas de longe, parabenizavam Clarice. "Bela escolha!", "Ele é muito charmoso!", "Partidão". Glorinha ouvia a tudo e balançava a cabeça, num sinal de que concordava com tudo. Tudinho.

- Ai, Glorinha! E você, hein? Até a Clarice que é caçula já tá casando! Quando é que vamos conhecer seu príncipe? - falou alto uma mulher de nariz grande, chamada Maria de Fátima. Prima distante. Uma verdadeira víbora.Glorinha ruborizou diante dos risinhos de todas e dos comentários irônicos. Mas permaneceu calada.

Depois de um momento de silêncio constrangedor, todas voltaram as atenções à bela Clarice, jovem, estrela da noite, noiva das noivas. Glorinha, não-bela, não-jovem, ofuscada, madrinha de todas as irmãs mais novas. Todas as quatro.

Glorinha aproveitou a distração de suas algozes para ir olhar a pilha de presentes. Coisas finas e caras lotavam o recinto. Numa mesinha no canto, a foto do casal apaixonado. Ele realmente era um partidão. "Clarice é uma garota de sorte", algumas diziam. Glorinha pensava: "Clarice tem sorte de ser bonita. É a única explicação. Ah, Jorge, se você soubesse..."

Mas Jorge não sabia. Nem se importava.

- Glória! Glória! Me passa o abridor de carta. Tá difícil de abrir esse envelope - dizia a bela Clarice, olhando interessada o décimo telegrama que recebia aquele dia.

Glorinha olha sobre a escrivaninha e avista o abridor de cartas, pontiagudo. Ah, Jorge...

- AHHHHHH! Ai, Glória! Minha mão! - Bela Clarice berrava de dor.

- O que está acontecendo, minha filha? - chega a mãe, assustada com o grito, vinda de outro cômodo.

- Essa sua filha maluca me espetou o abridor na mão! Olha aí, tá sangrando!

- Levanta a mão, minha filha! Cuidado tá manchando o vestido de sangue!

- Desculpa, Clarice! Ai, eu sou tão desajeitada... - disse, com um olhar cheio de candura, Glorinha, aquela velha raposa.

- Não fica aí parada! Vai buscar alguma coisa pra estancar o sangue! Glorinha, acorda menina! To falando com você! - a mãe não sabia se segurava a mão ensanguentada de Clarice ou se sacudia Glorinha, imóvel numa espécie de transe, observando as gotas de sangue caírem no vestido branco.




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Obreiros
Por Rodrigo Amém

Dona Ana suportou o máximo que pode. Logo ela, fiel opositora das iniquidades, honrosa participante das atividades pastorais e pregadora dos bons costumes. Sentia-se aviltada diante daquele acinte diário. Lembrava-se com desgosto da manhã em que tudo começara.

Acordou cedo e, como de costume, dirigiu-se à igreja para a liturgia matinal. Já na volta, comprou pães e leite e tomou o rumo de casa. Sentiu suas pernas tremerem à medida que seus passos, esguios e decididos ganhavam a calçada. Sentia a terra toda tremer, de fato. Parou e notou que os abalos surdos continuavam a desdém de seus passos cessados.

Percebeu que se tratava de um bate-estaca, ruidosamente localizado na construção na quadra vizinha à sua residência. Ao aproximar-se, percebeu as colunas de concreto tomadas de operários, como um esqueleto povoado por formigas. Viu também caminhões basculantes rodopiando suas caçambas ásperas e poeirentas. Ao fundo, como um maestro, o gigantesco bate-estaca marcava o ritmo do caos, subindo e descendo em movimentos obscenos. Lembrou-lhe um altar pagão, fálico, adorado por uma corja de bárbaros suados, carregando sacos de cimento sobre seus torsos desnudos. Dona Ana sentiu um arrepio e fez o sinal da cruz.

Prosseguiu sua caminhada de pose altiva em resposta ao prosaico cenário do canteiro de obras. Um súbito silvo agudo invadiu-lhe os tímpanos, seguido de um jocoso impropério. Ana sentiu seu sangue gelar. Parou e virou-se para a construção que jazia sobre suas costas. Voltou seus olhos para o alto e encontrou três homens muito feios e sujos sorrindo-lhe com dentes podres.

- Eita, gostosona! Ah, um rabo desses lá em casa, o que eu não fazia...

- Tá precisando de um trato, né dona? Faz tempo que não vê um desses, né? - Urrou o segundo operário, sacolejando a mão sobre a virilha.

- Vem cá que eu te lambo todinha! - completou o terceiro.

De cenho franzido sobre a raiva e o constrangimento, Dona Ana observou os três homens pendurados no andaime. Pareciam primatas, mais bichos do que gente. Seu primeiro impulso foi atirar pedras sobre aqueles porcos alpinistas.
Mas resolveu fechar os olhos, respirar fundo e retomar sua caminhada, sem tomar parte naquela barbárie.

Com passos rápidos e desconcertados, Dona Ana entrou em sua casa aos prantos. Nunca havia sido tão humilhada. A revolta no seu peito se alastrava como um câncer. Por que esta provação agora, Deus? Não era merecedora da misericórdia divina? Logo ela, um exemplo de castidade e pureza para toda a comunidade. Logo ela, líder pastoral. Uma vida inteira dedicada à busca do Caminho. Estaria Nosso Senhor buscando provar-lhe a fé como fizera com Jó?

Seria o momento de ter sua retidão testada? Por certo que sim. Se mesmo Moisés duvidou do Senhor e cravou seu cajado pela terceira vez em busca de água no solo do deserto, porque ela não deveria ser testada? Mas, ao contrário do velho judeu, não trairia o meu pacto com Jesus. Se também teria que enfrentar um deserto, amém, Senhor.

Três, quatro meses se passaram e a sabatina diária de desaforos não dava trégua. E eram sempre os mesmos algozes. Dona Ana batizou os obreiros, de forma a sedimentar em sua mente a natureza vil daqueles homens. Ao mais alto e forte, chamou de Barrabás. O que parecia ser o mais velho foi apelidado de Pilatos. E, é claro, o mais grosseiro deles recebeu a alcunha de Judas. Toda vez que se dirigiam à beata, ela lembrava de como o Mestre lidou com tais carrascos. Assim, ela procurava controlar sua vontade de matá-los. De atirar neles como se fossem patos selvagens. Sentia o desejo de sangrá-los por toda aquela desonra.

De noite tinha pesadelos, até. Via-se caminhando para casa, sorridente, após a missa. O Sol radiante da manhã era encoberto por nuvens quando ela se aproximava da construção. Então, Barrabás, Judas e Pilatos aparecem. Em sonho, eles são mais fortes, tem olhos vermelhos de fogo e língua de serpente. De repente eles se jogam do andaime e enormes asas de morcego crescem de suas costas. Os demônios, voando, perseguem Dona Ana. Gritam impropérios, riem dela. Ela corre, chora, tropeça. Judas a agarra pela cintura e sussurra obscenidades em seu ouvido enquanto acaricia-lhe as coxas. Seu hálito cheira a enxofre.

Logo Barrabás e Pilatos também se aproximam e começam a lamber-lhe pescoço e nuca, com suas línguas bifurcadas, incrivelmente compridas e viscosas. Rasgam suas vestes, acariciam seu corpo com garras de coruja. Ana acorda apavorada, suada, em prantos. Por Deus, até quando?

Ela chegou a conversar com o mestre de obras, mas ele não deu muita atenção. Disse que não havia nenhum pedreiro com nome de Barrabás, Judas ou Pilatos. Falou que ia dar uma bronca nos funcionários. Na verdade, falou com Dona Ana por dez minutos e não passou um segundo sequer sem fitar-lhe os seios, o porco. O chamaria de Herodes, daquele dia em diante.

No dia em que a obra ficou pronta, Ana considerou-se novamente uma mulher feliz. Havia vencido o desafio de Deus. Jamais fraquejara. Tivera força em sua fé e em sua oração. Estava pronta para continuar sua vida de devoção.

Melhor que isso, estava pronta para ser aceita nos portões do paraíso. Aleluia.
Passada uma semana, Ana viu-se tomada de uma inexplicável depressão. Uma angústia terrível lhe infernizava o peito. Não tinha motivação para continuar o trabalho pastoral. Não se interessava mais pela liturgia. Sucumbiu na fé, a coitada. Desesperada, procurou o auxílio de uma amiga e contou do seu desânimo. A amiga, por sua vez, recomendou que ela procurasse outra comunidade. Talvez ares novos pudessem restabelecer seu credo.

Ana procurou então uma paróquia no bairro vizinho, cerca de 10 quadras de sua casa. Chegou à missa exaurida, suada. Não iria dar certo. Era muito longe. Além do mais, o padre não era aquelas coisas. Melhor voltar à antiga comunidade.

No caminho de volta, no entanto, sentiu a terra tremer. Seu coração disparou. Não podia ser. Acelerou seus passos e contemplou uma outra construção, com outro bate-estaca fálico surrando a terra. Conteve a própria pressa e passou suave pelo canteiro. Do alto, logo veio o silvo, seguido das grosserias.

- Olha lá quem veio visitar a gente! Eita, gostosa!

- Debaixo dessa saia deve estar um incêndio, hein? Pega na minha mangueira, dona!


No final das contas, Ana resolveu dar mais uma chance ao padre da comunidade vizinha.




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O Mercador de um Olho Só
Por Rodrigo Amém

Acanhado e tosco, inacabado e pestilento, segue a pé, sob o relento, o mercador de um olho só. Manca e arfa. Quase canta, quase dança, o mercador de um olho só.
Viajantes e prostitutas, soldados e assassinos, são os clientes favoritos do mercador de um olho só. O povo que para, que pede e implora, que grita e que chora, procura e que acha o mercador de um olho só.
De sua bolsa de couro, as coisas que tira, os males que sara, as vidas que vira, as preces que ora, as peças que prega, as pragas que roga o mercador de um olho só. Quem escuta seus versos, segue seus passos, compra seus frascos, aplaude animado as profecias e mágicas do mercador de um olho só.
No caminho de casa, mulheres e homens, crianças e velhos, comentam e falam dos feitos e fatos do mercador de um olho só. E dormem tranquilos, sonham sorrindo: “Um dia, quem sabe. Serei mercador. Terei um olho. Só.”

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O Dom
Por Rodrigo Amém

Na manhã da terça-feira Aluísio teve a primeira visão. Edifício arde no coração da cidade. Achou que era Sol do futebol de domingo na moleira. Na outra semana o jornal repetiu a cena do jeitinho que ele tinha visto com seus olhos fechados. Aluísio deixou de duvidar da própria clarividência.

E se voltava a duvidar, tinha outro vislumbramento e mais outro. E o jornal depois confirmava tudo. Dos amigos e vizinhos, quem no começo desconfiava, quando acreditou, nem deu bola. Coisa mais besta, adivinhar jornal. Antes fosse o bicho do dia, ou a Mega Sena. Ninguém queria saber de Aluísio e suas adivinhações solitárias. 

Outro dia o leiteiro passou na casa dele e viu uma multidão que ladeava a porta e se acotovelava na janela. Esticou o pescoço para dentro e viu Aluísio no centro da roda de velhinhas e gordotas agarradas em trouxas de roupa, num entre caminho de lavadeiras.


Aluísio, sorriso aberto, entretendo as comadres, disponibilizava seu dom à comunidade que finalmente lhe atribuíra uma utilidade: O guru antecipava à audiência, absorta, os próximos capítulos da novela das oito.

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Os votos do seu Flávio
Por Rodrigo Amém

Meu nome é Flávio. Tenho 53 anos. Nenhum filho, nenhuma família. Trabalho no shopping, mas não me orgulho disso. Sou vigia do banheiro masculino. Minha função é ficar aqui, de braços cruzados, ao lado da pia. Só tenho que olhar.

Olhar homens urinando, defecando, espremendo espinhas em frente ao espelho. E eu lá. Não é preciso experiência. Não é preciso formação. Basta ficar ali, parado, durante oito horas por dia. Um salário. Para quem não tinha nada, um grande negócio.

Muita gente se pergunta o porquê de eu estar ali. Bem, é um banheiro público. Está sujeito a vandalismos, depredações e, é claro, depravações. Uma vez eu pequei duas bichas se chupando dentro do toillet para deficientes. Imediatamente coloquei aquelas bonecas pra correr. Também, foi uma vez só. A maior parte do tempo é apenas tédio e odores desagradáveis.

Antigamente eu ainda tinha a atribuição de entregar o papel para que os clientes secassem as mãos. Agora, instalaram essas máquinas de ar quente, que não enxugam nada. Tentaram fazer-me obsoleto. Mas eles não podem me demitir. O que seria do banheiro masculino sem mim?

Pichadores emporcalhando as paredes, crianças entupindo os vasos com papel higiênico, bichas se chupando a qualquer hora do dia ou da noite. Não. E que cliente se sentiria confortável num vaso sabendo que uma câmera vigia cada movimento seu? É preciso um profissional de sutil significância para estar ali, atento, sem causar uma prisão de ventre psicológica no cidadão.

Infelizmente, como tantas outras profissões, muitos não reconhecem minha importância. Não me valorizam. Alguns vendedores, que trabalham há anos no shopping, e que vêm aqui defecar todo santo dia, ainda têm o descaramento de não me dirigir nem um "bom dia". Logo eu, que os conheço pelo cheiro. Que os conheço melhor que seus melhores amigos. Que sei seus horários, suas manias. Conheço seus podres, literalmente.

 O Dr. Gustavo, por exemplo. Faz parte da diretoria. Gente graúda aqui. Nem sabe o meu nome. Mas eu sei o dele. Sei que ele come a feijoada do restaurante toda quarta-feira, mesmo com o desarranjo que ela lhe provoca na quinta. São sete, oito vezes. O banheiro todo fica empesteado. Ele sai suando frio, arfando... Mas na quarta seguinte ele tá na feijoada de novo.

Fui eu quem chamei a ambulância quando o Luiz teve aquela crise de pedra no rim. Ele tentou a todo custo urinar, saiu sangue e o diabo. Gritou, chorou, até que caiu desmaiado, segurando o bilau. O dele, é claro. Pergunta se ele veio me agradecer. Qual o quê!

É assim é que eu vivo. Eu sou o guardião dos incontinentes, o observador dos mictórios, o zelador das descargas, o Maitre do lado de lá, o senhor dos vasos sanitários, o anjo da guarda das fezes alheias. E, enquanto eu estiver aqui, o cliente terá paz para evacuar no recinto.

Neste réveillon, desejo a todos ótimas entradas e melhores saídas. E, apesar dos pesares, acredito que o ano novo será a mesma merda de sempre. Se Deus quiser.


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Número 3
Por Rodrigo Amém


Eu tenho 63 anos e nunca acreditei no amor. Essas coisas de alma gêmea, sabe? Esse pessoal que acha que tem uma pessoa te esperando em algum lugar. Que quando você bater o olho vai ser batata. Tá lá. Felizes para sempre. Nunca acreditei. Até o dia em que eu comprei um computador. Eu não sabia nem que eu precisava. Nem de amor, nem de computador. Mas um amigo comentou que dava pra ver o saldo na internet, sem ir no banco. 

Era tudo o que eu queria da minha vida. Poder ver meu saldo sem ter que falar do clima, do flamengo, do BBB, do preço da batata. Era tudo que eu queria. Aí eu fui nas Casas Bahia. Já foram nas Casas Bahia? Uma bosta. Mas tem computador barato, em 12 vezes. Comprei o mais barato que tinha e levei nas costas pra casa. Entrega em domicílio? Meu amigo, eu não quero nem gente da minha família enchendo o saco no meu apartamento, quanto mais uma dupla de estranhos suados xeretando na minha sala! Deixa que eu carrego, muito obrigado. 

Levei dois meses pra conseguir instalar a parafernália toda. Mas consegui. Finalmente consegui ver meu extrato na tela. Depois descobri que dava pra ler jornal sem ter que aturar o bafo do jornaleiro. Voltei até a me interessar por política! Aí eu descobri o MSN. Você já ouviu falar de MSN? É um tipo de caixinha que abre e você fica mandando uns telegramas pra um monte de gente. Pois é. Ali eu conheci a “gatinha anderlaine 20”. Um dia o quadradinho dela pipocou. "Oi, quer tc?" E eu pensei: que porra é essa? E respondi: não sei. Pra que serve tc? 
E quanto custa? Aí ela disse: KKK E eu pensei: que isso! Essa mulher é do Ku Klux Klan? Mas ela me explicou. Explicou o que era tc, kkk, rsss… 

Todo dia, por horas, eu teclava com a gatinha_20. Ela me contava as coisas que ela fazia no dia e eu lia tudo, como se fosse uma novela das boas. Tipo Janete Clair. Não essas merdas do Aguinaldo Silva. Ela: Hoje eu corri na praia. E eu: dois pontos, fecha parênteses. Ela: O clima estava bem gostoso, mas eu tive que voltar mais cedo porque começou a chover. E eu: dois pontos, barra. Ela: E quando eu cheguei em casa, percebi que uma plantinha minha caiu da janela e o vaso quebrou! Eu adorava aquela plantinha! E eu: dois pontos, fecha parênteses. Não é que eu não quisesse contar minhas coisas também. É que eu não tinha coisas pra contar. Ela tinha uma vida rica de pequenas coisas, pequenas alegrias. Eu não. 

Mas eu queria que ela se interessasse pelo que eu tinha a dizer. Eu fiquei com medo que ela cansasse de tc cmg. Dois pontos acento abre parênteses. Eu comecei a fazer Tai Chi na praia. Já fez Tai Chi? É Kung Fu de velho. Bem fácil de fazer. Não que eu gostasse. Só queria ter o que dizer pra gatinha anderlaine 20. E quando eu contei pra ela, ela disse: Na praia? Quem sabe um dia a gente não se cruza. Vc no Tai Chi, eu na corrida. Símbolo de menor, número três. 

E eu passei a acreditar no amor. Os dias se passavam e a ideia do encontro virou uma obsessão pra mim. Eu sempre falava, sugeria: Vou fazer Tai Chi hj. Pq vc não dá uma corridinha na praia? Ponto e virgula fecha parênteses. Mas ela não ia. Ela nunca ia. Então eu decidi que era hora de botar as cartas da mesa. Escrevi pra ela: meu nome é Jorge. Tenho 63 anos. Talvez eu seja muito velho pra vc. Mas sinto que nossa relação me transformou e deu um novo sentido pra minha vida. E eu preciso te ver. Por favor. E houve um silêncio. E ela respondeu: Onde vc mora? Eu tremi um pouco. Dei o endereço todo. Mais silêncio. E ela: Eu quero muito. Mas acho q vc não vai querer me ver. E eu respondi: isso é loucura! É claro que quero! E ela: Meu nome é Fábio. E eu tenho 17 anos. Eu arranquei a tomada da parede. 

No dia seguinte, Gatinha_20 não entrou. Nem no outro. Nem no outro. Levou algum tempo pra eu descobrir o que eu tinha que fazer. Numa manhã de agosto eu religuei meu computador e mandei um último e-mail para gatinha_20. "Este é o meu telefone. Para quando vc fizer 18 anos. Te espero símbolo de menor, número 3".


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Eufemismos
Por Rodrigo Amém

Ela carrega sobre os ombros um amontoado de peles de pequenos mamíferos mortos, entrelaçados por fios de algodão. Está elegante, sobre o couro de ruminantes mortos que envolvem seus pés. Ele, igualmente irrepreensível, traz seu cabelo untado com banha de origem animal, o que lhe dá um aspecto lustroso e arrumado.

Enquanto o sebo escorre nos castiçais mediante a crepitação da chama, resolvem comer lesmas. Sorriem um para o outro, à medida que seus maxilares vencem a consistência elástica dos pequenos invertebrados. Aproveitam também para beber o sumo de uvas velhas e esmagadas, que havia fermentado pela decomposição há muitos anos. Nem sequer lembrava a fruta fresca que havia sido comprimida pelos pés gordos e pesados de francesas obesas e suadas. E os dois ali, sorrindo. Um pouco depois, saboreiam moluscos crus e brincam com as ventosas gélidas dos tentáculos mortos em suas línguas. Se não fosse pela música ambiente que reverbera, seria possível ouvir a sutil sinfonia da mastigação de ambos.
Logo a seguir, o garçom lhes apresenta aparatos de metal com pedaços de bovinos mortos e em chamas, carbonizando-se lentamente. E eles se deliciam.

Mais tarde, estão sentados em peles de animais dentro de um uma estrutura metálica, sobre uma máquina à explosão que movimenta pedaços circulares de material proveniente de dejetos de répteis extintos. Ele toca o rosto dela, macio, graças à aplicação de lama e restos de vegetais em decomposição. Trocam bactérias e microscópicos restos de moluscos, lesmas e carne morta enquanto esfregam seus lábios sofregamente. A língua dele busca os orifícios auriculares dela e volta, salpicada de cera, a mergulhar na saliva da boca da fêmea, depositando tais resíduos entre as suas gengivas. Os poros dele começam a secretar a ureia que ela suga misturada ao álcool e aos aditivos químicos da essência vinda do mesmo país da moça gorda que pisa uvas.

Daquele ponto em diante, a troca de fluidos corpóreos se dá através de dedos, línguas, lábios, orifícios, reentrâncias e saliências. Um festim de micro-organismos, uma orgia de bactérias, interrompida apenas, talvez, por uma fina membrana de seiva de uma velha árvore sangrada com um facão cego e sujo de um caboclo seringueiro em meio à floresta tropical.

Gases, odores e fluidos exauridos e diluídos pelo ar, ele vai dizer, com seu hálito carregado de secreções genitais:

- Foi bom pra você?

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A cobra, o rato, o velho
Por Rodrigo Amém

Três e tantas da madrugada e o caminho de casa. Os sons dos motores adquiriram, subitamente, tons proféticos do colapso iminente. À beira da estrada, o apalermado eu, cercado de fumaça cheirando a óleo queimado e frustração.

Nem sei bem o porquê, mas a primeira coisa que me ocorreu foi olhar para o céu, culpando estrelas. E uma delas, desaforada, cuspiu-me o olho. Outras tantas a seguiram e logo banharam o mundo. Como um bicho, corri curvado em direção à coisa alguma, procurando sei lá o quê. Nem sei por que corria e por que curvado. De certo achava que dobrando minha espinha choveria menos, enquanto eu corria para um lugar onde molhasse pouco. Muito chato ser patético e todo mundo é, vez por outra. 

Achei barraco sinuoso e sem porta para esticar a coluna e maldizer a bestice, que não me deixou ficar no carro. Eu e o arrependimento, dentro do barraco: Chovia mais que fora.

E as gotas caíam leitosas na sala podre. Vi uma cobra engasgada fornicar-se no buraco de rato. Debaixo de uma mesa manca e caída, o ex-inquilino chacoalhava a chuva dos pêlos. Foi preciso que eu dissesse saúde, depois do atchim, para lembrar que não tinha espirrado e olhar em volta.

Era um velho roto e fedido, olho caído outro não, mão estendida pra esmolar, cumprimentar e ler destino. Quis saber de mim sem perguntar. E eu também nem respondi que tinha medo e queria que ele morresse agora, antes de mim, do rato e da cobra. Ficamos ali, dançando sem mexer.

Eu nem ia mesmo pegar, o velho guardou sua mão pedinte, ainda me cravando o olho bom. Quis que se virasse e fosse embora, mas tive medo de querer bater-lhe pelas costas. E se ele saísse de ré, não poderia mover-me. Vai que me vigia. Melhor não saber por onde vou. Quero sumir dele. E se a cobra vir morder? Será que o mataria? Mas a cobra engasgada não morde, só engasga e fornica no buraco dos ratos.

Demorou uma vida quando a chuva foi embora. Do mesmo modo que entrou, o velho saiu, sem que eu visse, nem sei como. Só vi que já tinha sol, sem velho, sem cobra e sem rato e o caminho era azul até a estrada.

Muito chato ser patético e todo mundo é, vez por outra. 

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Prrrrr
Por Rodrigo Amém

- Prrrrr...
- Amor!?!
- Que foi, meu bem?
- Que foi isso?
- Isso o quê?
- Ora, você sabe muito bem do que eu estou falando!
- Credo, amor! Se eu soubesse não tava perguntando.
- Eu to falando desse barulho!
- Barulho?
- Não vem que não tem! Você sabe!
- Mas, amor...
- Olha, eu sei que a gente tá junto há muito tempo. Mas isso é inadmissível!
- Ai, amor! Tudo bem, tudo bem! Eu assumo. Mas escapou! Precisa fazer esse escândalo todo?
- Precisa! Precisa porque o mínimo que você pode fazer por mim é demonstrar um pouco de consideração! Vai no banheiro, pô!
- Ora, francamente, acho que você está fazendo uma tempestade num copo d'água.
- Olha aí! Não dá nem pra entrar debaixo da coberta! Empesteou tudo!
- Ah, muito engraçado! E você come pétalas de flores no jantar, né?
- Olha, o que eu como ou deixo de comer não vem ao caso! Mas você parece que está morrendo! Deus me livre!
- Amor!!!
- Olha, acho que isso é um sinal. A gente deve dar um tempo. Não estamos preparados para uma relação tão íntima, tão aberta. Não quero ter que abrir mão dos preceitos mínimos de educação que minha mãe me ensinou só porque durmo na mesma cama que você.
- Lá vem você colocar sua mãe na conversa! Quando ela não se mete por conta própria, você põe a velha na história! Aposto que se ela estivesse aqui estaria gritando "Credo, que pum fedido!"
- Eu não admito que você fale da minha mãe nesse tom!
Ela jamais usaria esses termos!
- Por quê? Vai dizer que sua mãe não fala "Pum"?
- Pára com isso!
- Ou vai dizer que sua mãe não peida? Ela é costurada, é? O gás sai pelos ouvidos? Isso explica o fato dela ter a cabeça cheia de m...
- Já chega! Eu vou embora. Você é a pessoa mais asquerosa que eu já tive o desprazer de conhecer! Como eu pude me enganar por tanto tempo? Bem que minha mãe sempre me disse que a verdade um dia viria à tona! Adeus!
- Amor! Espere! Por favor! Não quero que você vá assim. Por favor, há algo que eu queria que você ouvisse antes de cruzar aquela porta.
- Vai me pedir desculpas...? Acho que é o mínimo que você pode fazer, se realmente tem um pingo de consideração por mim!
- Na verdade, tem uma coisa que eu quero que você diga à sua mãe. Acho que seria importante que ela ouvisse isso de mim, mas vejo que não será possível. Mas, por favor, transmita o recado a ela, meu amor...
- Que recado?

- Prrrrrrrrrrrrrrr...

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Beth
Por Rodrigo Amém

Você conhece a Beth? Tenho certeza que sim. Talvez não esteja relacionando o nome à pessoa, mas eu vou lhe ajudar.

Beth pode atender por muitos nomes, morar em muitos lugares e fazer muitas coisas diferentes. Mas ela é, sempre, Beth.
Chamo de Beth um determinado e recorrente tipo de mulher. Assim como existem os Romários, que como o jogador são baixinhos, atarracados e detentores de opiniões grandiloquentes sobre si mesmos. Da mesma forma que existem as Amélias, resignadas e fiéis. Também existem Beths.

A principal característica de Beth é a discrição. Normalmente, você não a nota à primeira vista. O comum é percebê-la com o tempo. Não é uma mulher opulenta, de decotes fundos e calças colantes. Beth geralmente usa óculos e tem mãos pequenas. Beth tem um belo sorriso, cheio de timidez e simpatia. Quando ri, ela baixa levemente a cabeça e cobre a boca com as mãos, a não ser que tenha tomado duas cervejas e esteja bêbada, permitindo-se gargalhadas mais abertas.

Dentro de sua bolsa desproporcional, normalmente haverá um livro. Beth tem o hábito da leitura e descobriu nas palavras um jeito de fugir da vida quando ela fica chata. E numa festa, numa roda de amigos, toda vez que o papo se tornar entediante, ela vai lançar um olhar por cima das cabeças dos membros da roda e sai voando, longe.

Beth não é do gênero humorista, mas sabe duas ou três boas piadas e faz uma única excelente imitação de qualquer coisa. Ganso, foca, Viúva Porcina, qualquer coisa. Sempre que alguém novo for introduzido na roda, os amigos antigos pedirão insistentemente para que Beth mostre sua imitação ao novo membro. Ela vai se recusar, de início. Mas diante de tantos pedidos, ela faz uma versão breve, reduzida mesmo, do show que só os amigos mais íntimos terão direito de ver. Afinal, ela é tímida.

Beth pode ser formada em engenharia, mas sempre trará consigo um espírito de artista e demonstrará sua sensibilidade de um jeito ou de outro. Às vezes, isso parecerá estranho, como meias com estampas de bichinhos do alto dos seus vinte e tantos anos. Seu inconformismo com a situação de inércia do mundo fará poucas vítimas, além dela mesma. Seu cabelo, por exemplo, em sua ânsia por mudanças, já conheceu melhores cortes, melhores dias. De vez em quando, ela usa chapéus engraçados, até por isso.

Beth não tem namorado. Se tem, geralmente é o cara errado. O tipo fanfarrão, que fala alto e bate no braço dos outros caras. Mas Beth sabe que é um equívoco, esse namoro. Antes dela tomar coragem de terminar, o cara vai ficar com outra garota na frente de todo mundo. E todos terão pena de Beth, a corna.

Ela sempre terá uma ou duas amigas estonteantemente belas, que chamarão a atenção dos homens. Beth sempre ficará com o amigo intelectual do marombeiro que ficará com sua amiga gostosona. Ela sabe que o intelectual é necessariamente mais feio, mas prefere assim. Beth não tolera superficialidades. A não se, é claro, bichinhos de pelúcia, uma superficialidade amplamente permitida e estimulada. E talvez meias estampadas.

Não seria correto dizer que há, dentro de cada mulher, uma Beth. Mais certo seria o contrário. Beth é o tipo de mulher que compreende em si as mais variadas nuances de forma contida, discreta. Beth espera por um despertar, por detrás de óculos e bolsas desproporcionais, dentro de livros, logo ali, do lado daquela gostosona. É só olhar.

Você conhece a Beth? Pois é.


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Três erros
Por Rodrigo Amém

Loydberg sabia que precisava ser cauteloso. Mais cedo ou mais tarde, toda a comunidade científica levantaria questões sobre seus métodos. A mera sugestão da corja de ignóbeis chafurdando em suas pesquisas lhe dava calafrios. "A Academia odeia os gênios como a Igreja odeia os santos", lembrou-se. E, naquela birosca, ninguém tinha condições intelectuais de questionar a maior autoridade em cultura Inca da atualidade. Fechou a porta atrás de si e presumiu-se só. Primeiro erro. As linhas no quadro negro se entrelaçavam num cuidadoso desenho inconfundível. Era o hieróglifo inca para a palavra vingança. Loydberg derrubou os livros que carregava. Correu até seu armário. Vazio. Nem um osso sobrara de sua recente visita ao sítio. Depois de tanto trabalho para transportar os artefatos em segredo, agora ele estava de volta à estaca zero. Segundo erro. Um sem-número de rostos de prováveis usurpadores corria em sua mente, acumulando raiva e rancor. Loydberg nem percebeu a nevoa que dançava silenciosa ao redor dos seus calcanhares. Terceiro erro.

O jornal do dia seguinte dava primeira página para a misteriosa morte do Dr. Loydberg. A manchete falava em mistério e ausência de suspeitos. As tarjas pretas tentavam, sem sucesso, cobrir a expressão de horror no rosto do cadáver que estampava a foto de capa.

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O sorriso de Marilza
Por Rodrigo Amém

Marilza acreditava em muitas coisas. Acreditava no Senhor do Bonfim, Iemanjá, dedos cruzados e horóscopo. Mas acreditava ainda mais no poder transformador do próprio sorriso. Mais forte inclusive que o preconceito contra sua pele negra, o sorriso de Marilza arrebatava transeuntes. Desceu o morro e foi ganhar o mundo pela boca.
Moça nova, não sabia muito de trabalho, mas queria “lidar com o público” e conquistar seus clientes usando sua arma secreta. Foi distribuir panfletos em frente a um supermercado. Via o desânimo dos colegas nos semáforos e lamentava com suave condescendência. Não era culpa deles, tão rendidos. Só que a vida não lhes emprestara o sorriso certo. O sorriso de Marilza.
Em seu primeiro dia, Marilza pôs-se à calçada como quem entra num palco. Como uma porta bandeira, agitava por sobre a cabeça as ofertas de costela, sabão em pó e detergente enquanto rodopiava sobre os calcanhares. No giratório de seus movimentos, metralhava os passantes com o brilho dos seus caninos enquanto os olhos dardejantes, emoldurados em sobrancelhas esquálidas, escrutinavam a vítima ao som de um sibilante “bom dia, freguesa!”.
Em pouco tempo, a porta-estandarte-de-ofertas do supermercado do bairro virou atração entre os moradores. Mesmos os que, em mau humor, recusavam-se a entrar no breve samba no caminho de casa ou do trabalho, evitavam endereçar à Marilza a rispidez reservada aos pivetes de sinal. Era diferente. Tinha aquele sorriso da negra linda.
E Marilza girava, sorria, sonhava. Era questão de tempo e um repórter apareceria para contar a história para o mundo. A TV se enamoraria dela. Logo os novelistas a convidariam para interpretar mocinhas de época e ela desceria do morro. Toda vez que o gerente vinha em sua direção, Marilza arrepiava-se. Será que era telefonema da Globo pra ela? Será que era uma bonificação por sua participação no aumento das vendas? Por anos a fio e sol, Marilza alimentou seu samba de asfalto com o angu do sonho de seu reconhecimento público. Montada no próprio impávido sorriso, estava a um rodopio de ser alguém.
Hoje, Marilza é puta.

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Waltinho 
Por Rodrigo Amém


Quando Waltinho, magricela e frágil, chegou na roda, a turma já sabia da novidade. Havia um misto de constrangimento e curiosidade no ar. Os homens se entreolhavam e seguravam o riso. As mulheres, compadecidas. 

E o próprio Waltinho também não estava à vontade. Sentia-se observado, vigiado. Queria sair correndo e a coragem lhe faltava. Dado o primeiro passo, pior seria a meia-volta. Sentou-se com toda a possível altivez. Por dentro, em pânico. 

A turma entoou um coro enjoado para recepcioná-lo. Involuntariamente, o uníssono de "Oi, Waltinho!" assemelhou-se a uma chacota, ladainha infantil. Soou como um punhal. 

Uma das moças ofereceu-lhe uma bebida com a delicadeza de quem serve à velha tia, sorriso frouxo e simpático lábios afora. Waltinho agradeceu e todos os olhos acompanharam sua mão acomodar-se, delicadamente, ao redor do copo. Rapidamente, Waltinho recolheu o braço. 

Por mais ansiosos que estivessem, ninguém ousava tocar no assunto. Por mais amigos que fossem, não se sentiam no direito, faltava-lhes a liberdade. Outra moça, mais atirada, soltou um "Tudo bem?" que soou como um escrutínio. Ora, o "tudo" era obviamente específico, direto, mordaz.Não se tratava do trabalho, da missa de ontem, da prestação do carro. Queriam saber do sórdido, chafurdar. Waltinho não tinha o direito de não dividir aquilo com a turma, que sempre soube, ou melhor, desconfiou de tudo.

Quem ele pensa que é para tomar uma decisão dessas e não comunicar aos amigos? Audácia típica daqueles que não tem coragem. Dos que não têm certeza do que são. Dos que não confiam. E seriam eles que não mereciam mais confiança? Afinal, quem havia mudado era ele. Os amigos, pelo contrário, eram as mesmas pessoas de sempre.  O sentimento de traição crescia. 

 Waltinho, em meio aos lobos, não se sentia seguro ou preparado. Mas sabia que era preciso uma manifestação. Havia se tornado o amigo dos sonhos das mulheres da turma. Mas sentia-se ameaçado pela incompreensão do outro segmento. Respirou fundo. Empinou o nariz, juntou as mãos ao tronco e disse, mastigando as palavras por detrás de uma máscara carmim.

- A-do-rei! - e calou-se, triunfante.

A densa nuvem dissipou-se na roda. Todos sorriram e aplaudiram contidamente.  A conversa voltou a fluir sem que o assunto voltasse a ser mencionado.  Pelo menos não na presença de Waltinho.

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Trilhas 
Por Rodrigo Amém


- Procurando alguma coisa em especial?

- Não, obrigado. Só estou olhando.

- Fique à vontade. Qualquer coisa é só me chamar, está bem?

- Certo.  Ei, mocinha! 

- Pois não?

- Mudei de idéia. Acho que você pode me ajudar sim. Preciso comprar um presente.

- É para amigo, namorada, família?

- Digamos que seja para um conhecido meu.
- Você conhece a preferência dele? Que tipo de música ele ouve?

- Olha, não sei dizer ao certo. É que, na verdade, eu o conheço muito pouco.

- Bom, você não prefere levar um Vale-CD, então? Ele vem e troca por algo que goste. É mais seguro.

- Não, não vai dar. Deixa eu te explicar direito. É que eu estou procurando uma música para servir de trilha sonora para esse meu amigo numa ocasião específica. Sabe, eu sou fã de trilha sonora. 

- Bem, a gente tem algumas trilhas bem bonitas...

- Você já imaginou um filme de aventura sem trilha sonora? Não funciona. Não é emocionante. Ou mesmo uma cena de amor. As trilhas dos filmes permanecem pra sempre na nossa memória.  Acabam fazendo parte da trilha sonora da nossa vida.  Tem filmes dos quais eu nem me lembro mais, mas ainda sou capaz de cantar a música-tema. Isso não acontece contigo?

- Bem, acontece.  Aquela do Titanic, por exemplo.

- Ah, a senhorita me desculpe. Essa trilha do Titanic não serve de exemplo. Ela não consegue se perpetuar além do filme. Ficou muito colada, entende? Não conheço ninguém de bom gosto que tenha eleito "My Heart Will Go On" como música-tema de um namoro.  Talvez só a Gisele Bundchen. Mas aí é diferente...

- Ah, mas é uma música tão bonita... a minha favorita, na verdade.

- Certo, senhorita. Mas voltemos para a trilha do meu conhecido.

- Sim, sim. Que tipo de música o senhor quer usar para ser música-tema dele?

- Bem, tem que ser algo forte. 

- Um rock? A gente tem Guns’N’Roses...

- Não, senhorita. Eu quis dizer algo denso...

- Puxa, ajuda se o senhor falar mais sobre esse evento. É uma formatura, algo assim?

- É a morte dele.

- Cruz-credo! Quer dizer, perdão, senhor. Meus pêsames. Puxa, não sei bem o que tocar num funeral!

- Não, senhorita. Não é o funeral dele. É a morte dele. 

- Não estou entendendo...

- Vou matá-lo, minha filha. Vou amarrá-lo numa cadeira, cortar-lhe a carótida e assisti-lo sangrar até morrer. Preciso de uma trilha sonora para compor o ambiente. Entendeu agora?

Silêncio. 

- Não me leve a mal, senhorita. Não sou um assassino frio e desprezível. Este homem de quem tirarei a vida é o crápula desonesto que desonrou minha existência. Roubou-me minha esposa. Não ficará impune. Vou sentar e assistir sua morte. Estava pensando em algo como "Vesti La Juba", da ópera "Il Pagliacci". É a área em que o palhaço descobre que a sua esposa, a colombina, está tendo um caso com o Pierrot.

- I-isso está mais para Marilyn Mason ou Type O’Negative.

- Não gosto de clichês modernosos, mocinha. 

- Tá... Deixa eu ver se encontro, isso... Meu Deus, tem que estar aqui... Óperas... Trovattore, Aida, Barbeiro de Sevilha, Pagliacci.  Aqui seu CD.  Pode ir agora.

- Não fique nervosa, mocinha. Eu ainda nem paguei por eles...

- Olha, escuta aqui! Você acha que vai se dar bem com isso? Acha que sua esposa não vai desconfiar de você? Ela vai colocar a polícia na sua cola e você vai mofar na cadeia! É melhor desistir enquanto suas mãos ainda estão limpas! Moço, não faça isso, pelo amor de Deus!

- Minha esposa? Não, ela não vai me denunciar. Sabe, nós tínhamos uma música-tema durante toda a nossa história. "Smoke Gets in Your Eyes". Ontem, eu a tranquei na garagem de nossa casa, amarrada dentro do carro, liguei o motor e coloquei a fita para tocar no painel. Ela foi sufocando com a fumaça ao som de "Smoke Gets in Your Eyes"! Não é uma ironia incrível? "Smoke Gets in Your Eyes"! Engraçado, não? Porque você está tão nervosa, senhorita? 

- Meu Deus...

- Tome seu dinheiro. Não se preocupe. Provavelmente não me verá de novo. Não precisa chorar.  Mas, me responda uma coisa: Sua trilha favorita é mesmo "My Heart Will Go On"?

- Acho que é, sim...P... Por quê?

- Por nada.  Só pra saber. No caso da polícia vir atrás de mim. 


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De perto e de longe
Por Rodrigo Amém

O velho, sentado à soleira, balançando suave no alpendre da noite, vigia o horizonte de cabelos vermelhos. O velho cofia e pensa, pensa e cofia. E o rapaz aparece, saído de antes, cheirando a mofado perfume de flores. E sorri sépia para a garota cinzenta em seu mundo de cobre. O velho mareja. 

Pela janela aberta, os jovens se beijam em movimentos fractais que o velho acompanha de perto e de longe. De perto e de longe. E assim ele viu tudo e de tudo lembrou-se. Viu de perto os seus olhos crispados de sonhos, mergulhados em contas de promessas de sim. Viu de longe as pessoas, cochichando matreiras, quebrando o pescoço de cumplicidade e de inveja.

Viu de perto aquelas mãos serpenteando em si mesmas, se enroscando em palavras, sob carinhosos dedões. Viu de longe a igreja, a praça e a morada, cada vez mais longe, cada vez mais ontem. 

De perto, os cheiros que só tem quem se gosta. De longe o vazio do inverno da escolha. De perto o abraço que se abraça e que cola. De longe a estrada que só tem uma mão. 

O velho, sentado à soleira, balançando suave no vestíbulo da noite, vigia o horizonte de cabelos negros cintilantes.

Cofiando e pensando, cofiando e pensando. O vento frio carrega a fumaça do pito e da alma, morna de histórias que a janela soltou. 

Enfim se levanta e estica os braços para alcançar o não-sei-o-que que os bocejos buscam no céu. O velho dá adeus pro firmamento e vai para a cama.  De perto a janela fechada. De longe as escolhas da gente.


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Sujos e malcheirosos
Por Rodrigo Amém


Era uma vez um mendigo roto, sujo e malcheiroso. Pois este mendigo tinha um cão sarnento, sujo e malcheiroso. Eles moravam num beco, úmido, sujo e malcheiroso, no final de uma rua escura, suja e malcheirosa. 

Por essa rua escura, suja e malcheirosa, passavam muitas pessoas assustadas, sujas e malcheirosas. Todas tinham medo de passar pelo beco úmido, sujo e malcheiroso, porque sabiam que ali morava um assassino sanguinário, sujo e malcheiroso. Pois todas as manhãs, os garis magricelas, sujos e malcheirosos retiravam do latão de lixo enferrujado, sujo e malcheiroso do beco úmido, sujo e malcheiroso, pedaços de cadáveres retalhados, sujos e malcheirosos. Com certeza, tratavam-se de vítimas do assassino sanguinário, sujo e malcheiroso que habitava naquele beco úmido, sujo e malcheiroso. Ele as roubava e esquartejava, sem piedade. Deixava os restos decompostos, sujos e malcheirosos dentro do lixão enferrujado, sujo e malcheiroso. 

Mas num dia ensolarado, sujo e malcheiroso, vários policiais obesos, sujos e malcheirosos invadiram o beco úmido, sujo e malcheiroso a procura do assassino sanguinário, sujo e malcheiroso. Encontrara o mendigo roto, sujo e malcheiroso e seu cão, sarnento, sujo e malcheiroso. Com seus cacetetes compridos, sujos e malcheirosos, açoitaram o mendigo roto, sujo e malcheiroso e seu cão sarnento, sujo e malcheiroso para dentro de um camburão apertado, sujo e malcheiroso. Então os policiais obesos, sujos e malcheirosos saíram dali rindo. Vitoriosos, sujos e malcheirosos. 

Nem viram quando uma limusine bela, suja e malcheirosa estacionou no beco úmido, sujo e malcheiroso e um motorista forte, sujo e malcheiroso desceu carregando um saco plástico, sujo e malcheiroso e atirou o seu conteúdo dentro do latão enferrujado, sujo e malcheiroso. Pedaços de cadáveres decompostos, sujos e malcheirosos. 

Na parte de trás da limusine bela, suja e malcheirosa, o assassino sanguinário, sujo e malcheiroso sorria enquanto falava em seu celular digital, sujo e malcheiroso com patrões que, provavelmente, jamais conhecerá nem pelo cheiro.

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A incrível fábula do literalmente
Por Rodrigo Amém

Dois maços por dia. Todo prazer tem lá seu preço. Dois maços por dia e uma gripe mal curada. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, ia acabar se lascando. Dois maços por dia, uma gripe mal curada e noites de boemia on the rocks. No começo, um pigarrinho chato. Depois uma tosse comprida e ruidosa. A garganta ardia como o diabo e ele acendia outro cigarro. Mas naquela noite ele não estava bem. Não dava para parar de tossir. As pessoas da mesa já estavam incomodadas. Não dava nem para conversar com ele ali, latindo sua tosse de cachorro velho.

Uma crise mais forte e ele foi obrigado a se levantar, trôpego, com as mãos no rosto, tentando abafar o som gutural que incomodava a todos. Um pouco de sangue começou a escorrer desta máscara de dedos que levava à face. A dor era lancinante. Derrubou algumas cadeiras e fechou-se no banheiro. Não era mais tosse. Eram urros. Mal conseguia respirar. Pensou que agora era a hora. Tossir até morrer. Um fim patético e coerente.

A crise se intensificava e ele, prostrado. Sentiu que vomitaria. Trêmulo e suando, aguardou o inevitável. Qual não foi sua surpresa quando, no momento do derradeiro tossido, sentiu uma golfada de sangue sair-lhe pela boca, junto um material que, de início, não conseguiria identificar. Parecia uma grande bexiga cinzenta de aniversário. Mas pulsava. Demorou para compreender que tinha um de seus pulmões expulso pela boca.

Com algum receio, passou a tatear o pulmão exposto. Seu conhecimento de anatomia não permitia uma análise cuidadosa, mas podia jurar pela textura do tecido que o órgão estava virado do avesso. Era possível observar as manchas de nicotina. Dois maços por dia e uma viscosidade lodosa por toda a extensão do tecido.

A questão agora exigia uma atitude. Ou saía do banheiro com o pulmão balançando por entre os dentes e provocava o repúdio e o horror de amigos e estranhos ou tentava enfiar o bicho goela a dentro com as próprias mãos. 

Optou pela segunda. Mas sabia que seu frágil órgão podia não resistir aos empurrões e acabar rompendo-se. Podia ainda acabar dirigindo o pulmão rumo ao estômago, ao invés do caminho certo. Será que nenhum médico estaria no bar e prestes a usar os mictórios?

Como numa resposta vinda dos céus, a porta se abre e, por ela, adentra um homem de branco. O outro sorri aliviado, com cuidado para não acabar mordendo o pulmão de alegria. Mas, numa segunda olhada, ele percebe algo estranho. O homem de branco está sujo de sangue. Imundo. Caminha curvado, chorando, levando as mãos juntas, perto do peito. E ele pára de chorar ao se deparar com um homem que parecia trazer um pulmão na boca.

Por alguns segundos os dois se encaram atônitos. E então o homem de branco abre as mãos. Segura o próprio coração, ainda pulsando e espirrando sangue para todos os lados. O outro balbucia algo inintelegível e pastoso que deveria significar algo como "O que aconteceu com você?". O homem de branco, como se compreendesse a pergunta, responde em voz chorosa.

- Eu dei meu coração para aquela vagabunda... Como ela pode me desprezar assim...? - E caiu em prantos.

Diante do tocante quadro, o outro emitiu um enternecido suspiro. E o pulmão em sua boca encheu-se como um balão.


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MARCELO
Por Rodrigo Amém


 Moleque levado era Marcelo. Saltava de banda, pulava e gritava. Era quase bailado, o sujeito magrelo correndo no vento dos sorrisos vãos.
 Nas casas vizinhas, abalroadas janelas sustentam o escárnio, jocosos bocejos ao garoto que passa. Comentam seus olhos, alaridos e pernas. Será que algum dia pára a carreira? Será que se cansa, será que se aquieta? Para quê tanto riso, suor e seresta? O que é que ele pensa? Que é brinquedo essa vida? Que é um jogo, esta terra? Que amanhã recomeça e termina hoje ainda?
Mas o Marcelo nem liga, nem pára, nem cansa.  Há quem diga que é lombriga. Ou que lhe falta uma surra. A energia do Magrelo não acaba, não muda. Não começa um só dia sem que a risada perdida de criança correndo se entrelace no vento e abrace as cortinas secando ao relento.
Marcelo não fala, nem pra mãe nem pro pai, a razão da corrida, brincadeira infinita que sua vida se fez.  Mas o magrela, quando se cala e se aquieta, se senta num canto de pernas cruzadas, como quem reza. Respira bem fundo e pede pra santa que lhe salve o silêncio.
Mas é nessa hora que a brisa que sopra sussurra bem fundo no ouvido do crente. O menino se assusta, treme e gela. É uma voz de criança, suave e tranquila, que fala baixinho: “Marcelo morreu... Marcelo morreu...”. O magrela levanta, tropeça e se senta, levanta de novo e desanda a correr. Gritando, cantando, sorrido e pulando, o moleque abafava a cantilena da morte. 


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TCHAUM
Por Rodrigo Amém



Fim de noite. Interior do carro. Papo de despedida. Ele ao volante, ela ao lado. O carro pára em frente de uma casa. Ele fala.

- Bem, chegamos.

- É, chegamos, né?

Silêncio.

- Olha, essa noite foi super legal. Gostei muito do filme.

- Eu adorei a pizza.

- Ótima pizza!

- Bem, acho que é isso...

- É... Qualquer coisa, me liga...

- Ah, ligo sim. Você também, tá?

Ela se aproxima para um gentil beijo de agradecimento, na face do rapaz.

- Tchaum... - diz ele. Ela pára. Olha no fundo dos olhos dele.

- Otávio... - Sua voz sai como um suspiro. Ela é toda sorriso.

- Luíza...?  

Ele retribui o sorriso, mas... que diabo, do que estavam  rindo?

- Eu também!  

Luíza se aproxima e tasca um beijo apaixonado nos lábios de Otávio. É um beijo demorado, que já estava sendo esperado há algum tempo. A este, segue-se outro e mais um e talvez muitos mais viriam. Mas Otávio estava confuso.

- Você também, o quê?

- Como assim, Otávio?

- Você disse: "Eu também". Não entendi.

- Ora, meu amor. Eu também te amo. - respondeu ela, sorrindo.

- Mas... mas...

- O que foi, meu amor?

- Na verdade, eu... bem...

- O que está acontecendo, Otávio? Foi algo que eu disse?

- Na verdade, Luíza... Bem... Você é uma garota legal, mas... Eu não te amo, não.

- Como é que é???

- Eu não te amo. Me desculpe. Acho que é muito cedo para isso.

- Mas, foi você que veio com essa história idiota! "Eu te amo". Foi você que disse isso primeiro!

- Eu?? Tá maluca? Não falo eu te amo nem pra minha mãe! Ia falar logo pra você?

- Eu fui me despedir de você e você disse bem aqui na minha orelha, "eu te amo". Eu ouvi!

- Eu disse "Tchaum", quer dizer, "Tchau", entende? Estava só me despedindo também!

- Essa foi a coisa mais patética que eu já ouvi! Você é grosso, insensível, beija mal e ainda tem um péssimo problema de dicção!

- Pelo menos eu não saio beijando todo mundo que me diz tchau!

- Você não disse "Tchau", disse "Tchaum"!

- E você entendeu "Te amo". Que recalque, hein, minha filha?

Um estrondoso tapa ecoou dentro do carro. Luíza provavelmente havia deslocado o pulso.

- Adeus, Otávio! - Rosnou enquanto descia do carro.

- Tchaum, Luíza... - disse, Otávio, meio atordoado.

- E vê se aprende a falar igual homem! - gritou Luíza enquanto batia a porta da casa.


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Saúde, Ricardo
Por Rodrigo Amém


Momentos intermináveis se sucederam antes que alguém tomasse coragem para pegar a derradeira empada. Uma gorda acabou metendo a mão no salgadinho. E foi mesmo aquela gorda de vestido colante de cetim, tia não sei de quem, a esfomeada. É por isso que aquele vestido brega de mangas bufantes fica parecendo um balão junino inflado pelas formas adiposas, como se fosse apenas ar quente. Deve ser difícil se controlar, pobre mulher. Dizem que alguns procuram afeto na comida. Dava para ver o quanto ela era carente.

Tentando desviar seu olhar da barriga da tal tia, Ricardo sorriu amarelo e desejou ir pra casa. Sentia-se cansado, com dores no corpo. Provável que gripasse. Foi quando um arrepio correu-lhe a espinha, seguido de um espirro repentino. Aqui e ali as vozes xexelentas desejaram-lhe saúde enquanto ele erguia a cabeça. Abriu um olho e depois o outro. E viu que era gay. 

Ricardo foi tomado por um medo desavergonhado. Tremeu, até. Como assim, gay? Ele tinha namorada e até fama de comedor, cuidadosamente cultivada com boatos e fanfarronices. Não era gay, tinha certeza disso. Olhou para os lados, aflito. Será que alguém percebeu que ele tinha virado homossexual? Ficou ali, quieto, tentando não dar bandeira. Meu Deus! A perna cruzada! Coisa de boiola! E descruzou rápido para ninguém ver. Mas será que foi rápido demais e alguém percebeu que ele tentava esconder algo? Ele precisava de uma cerveja. Levantou rápido. Péssima levantada. Parecia uma gazelinha aloprada. Fez cara de mau e sentiu que as pessoas o olhavam como se estranhassem suas atitudes. Estava dando na cara! Melhor sair rápido. Teve a impressão de estar correndo uma marcha atlética. 

No bar, o irmão mais novo do aniversariante servia a todos. Um jovem dos seus 18 anos. Ricardo havia ouvido sobre ele. Jogava vôlei na faculdade. Um metro e oitenta. Moreno, olhos verdes. Bem atlético. Mas quando Ricardo deu por si, estava ali, sorrindo para o cara, levando uma eternidade para terminar de servir sua cerveja. O mais novo gay do universo tentou se conter, mordendo as bochechas por dentro para segurar o sorriso. Aí sim, ficou com cara de veado. Derrubou a cerveja e saiu correndo para o jardim. Precisava tomar ar. E ficou admirando as estátuas na fonte, as flores, os arbustos e sentiu vontade de cantar uma antiga canção do ABBA. 

Ricardo começou a se desesperar. E agora, o que diria para a namorada? A simples lembrança de beijá-la já lhe causava náuseas. Agora ele só pensava no bofe jogador de vôlei. Ricardo pensou em gritar, mas não tinha certeza do próprio timbre de voz. Preferiu engolir o desespero, levando delicadamente a mão nos lábios. Depois baixou-a bruscamente, de sopetão. 

Pensando cada passo, cada movimento, olhando para todos os lados, como se olhos pousassem sobre seus ombros a todo momento, Ricardo voltou para o seu lugar, ao lado da gorda de cetim. Olhou ao redor e viu seu novo mundo rosado, com a serenidade de quem observa a bomba H desabrochando, sabendo que nem adianta correr. Percebeu, ao lado da gorda da empadinha, uma linda loira conversando alegremente. Sentiu o coração palpitar. Um bom sinal, até que enfim! Possivelmente o efeito estaria passando e ele logo voltaria a ser o comedor de sempre. 

Observando com mais atenção seu objeto de desejo, pôde fixar sua atenção a um detalhe em especial. O par de brincos ma-ra-vi-lho-sos que a mona estava usando. Sem falar nos sapatos que eram um luxo! Ricardo sentiu vontade de chorar. Mas ficou ali, imóvel, olhando para o nada, rezando para que o vento trouxesse um novo espirro repentino. 


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A terra original
Por Rodrigo Amém


Demorou, mas cheguei a uma dolorosa conclusão. Aliás, demorou demais, uma vez que tal conclusão era, pelo menos, óbvia. Mas tem essas coisas que a gente teima em fingir que não sabe, que não vê. Tipo marido traído, entende? O Monstro do Lago Ness, por exemplo, obviamente não existe. Mas a gente torce para que exista. Eldorados, meu velho, Eldorados.

Coisas que, por mais que a gente queira, não passam de auto-sugestão. Forçamos a barra para crer no que não existe. Torcedores do Fluminense, homens casados e drag queens sabem do que eu estou falando. Ruminação de mentiras. Aqueles que têm o vício da escrita trazem, dentro de si, uma busca quixotesca: o texto original.

Haveria, em algum lugar dentro da mente, além de mares nunca dantes navegados, uma ilha distante de todo e qualquer clichê? Jamais pisada por autor algum? Uma ideia verdadeiramente nova? Para obter a resposta, navegar é preciso. Homens ao mar, corações ao alto, velas ao vento. A procura pela originalidade leva muitos homens à frustração, à loucura. Alguns usam álcool, nicotina, chocolate e outros entorpecentes. Teve até quem ateasse fogo em uma cidade inteira só para receber a visita da musa, da inspiração.

Aliás, grossa mentira. Não existe, nem nunca existiu essa bela mulher, formosa como Vênus, vinda do nada, soprando a genialidade no ouvido do artista. Uma mulher que se disponha a passar sua vida cochichando ao ouvido de um artista, falaria coisas como: "Isso são horas, seu vagabundo?" ou "Bêbado de novo? Vai dormir no sofá da sala!" e ainda "Quando é que você vai arranjar um emprego decente? Bem que mamãe me avisou que você nunca ia dar em nada!". Não, nada de musas inspiradoras.

De qualquer forma, descobri o ovo de Colombo recentemente. Estava, como sempre, revirando memórias e entranhas, navegando rumo ao novo mundo, neste universo retilíneo e plano chamado imaginação. Sem brisa, sol a pino, não me movera um centímetro. Minha mente já ardia com a febre-da-cabine e meu hálito cheirava a escorbuto.  Não desistiria, mas sabia que minhas tentativas eram inúteis e meu navio fazia água.

Será que todos os bons textos do mundo já foram escritos? Nada mais sobrou para ser explorado? Num mundo onde informação dá em árvores, teria o homem dito tudo o que havia para dizer? Talvez tenha chegado a hora de parar. Fim da linha.  Ponto final. E eu resolvi, como todo bom capitão, afundar com o navio.

Quando o mar da mediocridade já me ladeava pelo pescoço, um rato passou por mim, à altura de meus olhos, remando um pequeno barquinho salva-vidas. Ele me olhou como quem lê Maiakovsky. Balançando a cabeça negativamente, cofiou seu cavanhaque grisalho e suspirou. Agarrou novamente os remos e colocou-se a remar.

Não sei bem porque, gritei um "espere" para o rato. Ele parou e me olhou desinteressado.

- Bem... Quero dizer... Não sabia que ratos remavam... - falei, desconcertado.

- Se você naufraga sem sequer descobrir para onde ia, não entender de ratos não me surpreende. - Disse o rato. - Vou escrever sobre isso um dia.

- Você é escritor? - Espantei-me.

- Assim como você, a não ser pelo fato de fazer sucesso, ganhar dinheiro e estar na 80ª edição de minha biografia. - Respondeu o roedor.

- Como é possível? Você sabe onde fica a terra prometida? Onde fica o Nirvana que eu tanto procuro?

- Sim, sei.

- Então diga-me, por favor!

- Você não gostaria de ir até lá. É inóspito, povoado por pensamentos hostis e agressivos. Dizem que a Solidão e a Inveja moram nesta terra, e os poucos que a conheceram jamais foram os mesmos. Seus leitores os abandonaram. Suas famílias e amigos também. A Terra Original é maldita.

- Você está blefando! - Irritei-me, esforçando-me para manter minha boca acima do nível da água.

- O leitor não quer o Original. O homem teme o novo à aversão. Quer conquistá-los? Fale sobre o que eles conhecem, converse sobre a dor que eles sentem, faça-os sonhar com as mesmas belas e desbotadas frases de amor.  Quer parecer original? Mude a ambientação.  Futuro, passado, presente. Ficção ou romance. Tanto faz. O importante é você contar sempre a mesma história. A biografia do leitor, com o final que ele gostaria de viver.


Ao dizer isso, o rato sorriu um sorriso sacana, agarrou mais uma vez os remos e piscou para mim. Foi se afastando lentamente com seu barquinho. E eu pensei que, talvez, ele estivesse coberto de razão. Talvez, o porto do qual saí fosse o mais seguro. Talvez eu devesse recomeçar, mas aquela água turva me invadia as narinas e eu não sabia nadar.


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