A vida do duplo
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Aos caçulas
Por Rec Haddock
João Genaro Silva e Gaulês de Menezes Dantas nascem ao dia 20 de Janeiro de 1922, na mesma maternidade. Colocados em berços vizinhos se observam.
Em 3 dias, João é levado dali pelos seus pais.
Aos 8, deixa seu irmão mais novo cair de cima de um muro. Leva a maior surra da sua vida.
Aos 12, seu pai lhe paga uma profissional. É o primeiro de sua classe a entrar na vida adulta.
Aos 18, é enviado à guerra. Solicita um cargo administrativo por medo de matar alguém.
Aos 21, volta, veterano, sem puxar o gatilho em combate ao menos uma vez. Ótimo estrategista, matou milhares das mesas em que sentou.
Aos 26, se forma advogado. Sua mãe nunca ficou tão orgulhosa quanto agora.Aos 27, casa com Mariana Melo Mendonça. É o último de sua antiga classe a ser laçado.
Aos 36, tem seu quarto e último filho. Não queria que sua mulher ligasse as trompas, mas ela o fez mesmo assim.
Aos 49, vira avô. Chorou como só tinha feito no dia em que o Japão se rendeu.
Aos 53, perde seus pais. Apesar do orgulho da família que construiu, se sente só pela primeira vez na vida.
Aos 61, perde seu primogênito para a ditadura. Pior que enterrar um filho é não ter corpo para velar.
Aos 62, pega seu neto fumando. Faz com que ele coma todo o maço de cigarro para que nunca fume de novo.
Aos 69, acerta a quina na mega-sena. Volta para a Europa, com sua esposa e não consegue decidir se prefere Florença ou Barcelona.
Aos 73, vê seu neto participar da criação do site Yahoo!. Não faz idéia do que isso virá a Significar.
Aos 74, tem um AVC. Levado ao hospital, só encontra vaga em um quarto compartilhado.
João Genaro Silva e Gaulês de Menezes Dantas dividem o quarto no hospital São Francisco, vitimas do mesmo mal.
Gaulês olha para João e pergunta: "E aí? O que você achou?".
Aos 74, João responde: “Foi bom enquanto durou”.
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Aos caçulas
Por Rec Haddock
Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 2015
Irmãozinho,
Não é segredo pra você que durante viagens a gente tem oportunidade de ver coisas novas e voltar mudado, você é um cara mais viajado do que eu. Esta que acabei de fazer me deu a oportunidade de pensar bastante em mim mesmo e na minha relação com as coisas e pessoas.
Por muito tempo eu encarei a nossa relação de uma forma muito pouco saudável, e na viagem percebi isso. A nossa diferença de idade sempre foi um peso pra mim, no sentido em que eu tinha sempre que saber mais e ser melhor do que você (na minha cabeça), por ter vivido muito mais tempo.
Certamente, por isso, eu te causei muitos problemas e podei muitas potencialidades que você ainda tem aí dentro de si. É muito mais fácil acreditar que eu sei mais e ponto, e te diminuir do que engrandecer a mim mesmo para te superar, entenda.
Acho que te devo desculpas por isso.
Agora eu percebo com clareza o quanto você é um cara fantástico, que sabe muito mais do que eu de determinadas coisas e é bem melhor que seu irmão em outras tantas. Espero que a sua viagem faça você me ultrapassar em mais frentes ainda. Eu espero também poder te ajudar a me superar sempre que for necessário. Por isso sempre que você precisar de mim pra qualquer coisa, fale. Se antes não estava, agora estou aqui pra isso.
Te amo.
Boa viagem.
Vai devorar esse mundo, garoto.
Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 2015
Irmãozinho,
Não é segredo pra você que durante viagens a gente tem oportunidade de ver coisas novas e voltar mudado, você é um cara mais viajado do que eu. Esta que acabei de fazer me deu a oportunidade de pensar bastante em mim mesmo e na minha relação com as coisas e pessoas.
Por muito tempo eu encarei a nossa relação de uma forma muito pouco saudável, e na viagem percebi isso. A nossa diferença de idade sempre foi um peso pra mim, no sentido em que eu tinha sempre que saber mais e ser melhor do que você (na minha cabeça), por ter vivido muito mais tempo.
Certamente, por isso, eu te causei muitos problemas e podei muitas potencialidades que você ainda tem aí dentro de si. É muito mais fácil acreditar que eu sei mais e ponto, e te diminuir do que engrandecer a mim mesmo para te superar, entenda.
Acho que te devo desculpas por isso.
Agora eu percebo com clareza o quanto você é um cara fantástico, que sabe muito mais do que eu de determinadas coisas e é bem melhor que seu irmão em outras tantas. Espero que a sua viagem faça você me ultrapassar em mais frentes ainda. Eu espero também poder te ajudar a me superar sempre que for necessário. Por isso sempre que você precisar de mim pra qualquer coisa, fale. Se antes não estava, agora estou aqui pra isso.
Te amo.
Boa viagem.
Vai devorar esse mundo, garoto.
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O primeiro amor de um homem
Por Rec Haddock
Aos quinze anos de idade, O Rec se preparou para a escola. Era uma manhã comum de outono, no dia 12 de Outubro. O ano letivo começara uns meses antes, em Agosto, e aquele prometia ser um dia sem novidades. Cinza, frio e tedioso.
O trajeto de bicicleta foi marcado por um incidente incomum até para O Rec, acostumado a ver coisas que os outros não eram capazes de enxergar: na ciclovia, à sua frente, um homem de vinte e poucos pedalava, quando uma mulher mais bonita que a maioria passou por eles pela esquerda, na contramão, também de bicicleta. O homem à sua frente ficou hipnotizado por aquela presença, e olhou fixamente para a bunda que se afastava.
No sentido contrário, vinha outro homem de vinte e poucos que olhos atentos diriam ser igual ao que ia afrente dO Rec. Previsivelmente, também ficou hipnotizado por aquela presença e fez o que os homens fazem. Torceu seu pescoço e olhou para a bunda da qual se afastava.
O que nenhum dos iguais viu foi o seu reflexo. Bateram de frente, cada qual caindo da bicicleta com um estrondo e uma coleção de ferimentos variados. O Rec conseguiu evitar os colisores sem dificuldade, tendo previsto o acidente.
Sem mais, chegou à escola. Lá não incomodou nem foi incomodado, como de costume. Sentou-se ao fundo e dormiu boa parte do dia, com a cabeça apoiada nos braços, sobre a mesa. Se havia alguma coisa em que O Rec era bom a ponto de se tornar um prodígio, esta coisa era sonhar.
A princípio tomou aquilo justamente por um sonho. Depois achou estar alucinando. A mulher da bicicleta estava na sua sala. Acordando ele. A princípio O Rec não conseguiu associá-la ao ocorrido mais cedo, mas depois reconheceu a bunda.
- Que merda é essa, garoto? Você acha que isso é um spa? Se você queria dormir não devia andar tão rápido de bicicleta vindo pra cá – ela disse. Depois piscou um olho para O Rec e deu uma mordidinha no lábio inferior, o que só contribuía para a teoria de que ele estava sonhando ou alucinando. Além de reconhecê-lo, tentava seduzi-lo?
- Como eu ia dizendo, a dona Adélia não vai poder dar as suas aulas de química por um mês e meio, e durante este tempo, vocês vão ter que me aturar no lugar dela. O cabelo dela é suave como a lábia de um cafajeste. Vocês estão muito atrasados na matéria... Os olhos são profundos como só o corte de uma navalha... aldeído mais conhecido é o metanal... Sua boca é tão tentadora quanto a corrupção... nada a ver com qualquer trocadilho que possa estar passando na sua mente. O sorriso é fácil como roubar doce de criança... na página 37 do livro didático... O pescoço é longo como os minutos na cadeira do dentista... entender as reações que acontecem nos nossos cérebros. É por isso que os homens agem como neandertais.
- Eles acham que são mais civilizados que os outros, mas são só reflexos involuntários, muitas vezes preconceituosos, machistas e retrógrados, de reações químicas que acontecem aqui – ela bateu uma vez com o dedo indicador na testa dO Rec.
Parou de divagar. Podia ter se sentido ofendido, mas o Rec reconheceu verdade naquelas palavras e naquele dia, ele não voltou a dormir nem na escola, nem na sua cama, à noite.
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A Última Gravação de Rec PARTE 2 DE 4
Por Rec Haddock
INT. CONSULTÓRIO DO TERAPEUTA. MANHÃ.
REC, agora um homem com 50 anos de idade, está sentado em uma cadeira, de frente para uma mesa totalmente vazia, a não ser por um pequeno toca-fitas. Ele tamborila a mesa com a ponta de seus dedos e olha fixamente para o toca-fitas, através de seus óculos escuros. Do outro lado da mesa, sentado em outra cadeira, está o TERAPEUTA, que está digitando algo em seu tablet.
Vemos o terapeuta marcando uma consulta para Rec Haddock em Primeiro de Junho de 2038, na tela do Tablet. Vemos também que é dia 25 de Maio do mesmo ano.
Vemos pela janela do consultório um dia claro. O Terapeuta baixa o tablet e olha para o seu paciente, que para de tamborilar os dedos na mesa, mas não desvia o olhar do toca-fitas.
TERAPEUTA
Você não quer tirar os óculos?
REC HADDOCK
A luz machuca a minha vista.
TERAPEUTA
Eu posso baixar a persiana.
REC HADDOCK
Não é o caso. Obrigado.
TERAPEUTA
Eu preferia que você tirasse os óculos mesmo assim.
Rec olha para o terapeuta, longamente. Tira os óculos escuros lentamente e revela olhos inchados de choro. Os dois se encaram por um tempo, sem que nenhum dos dois fale.
REC HADDOCK
Quem tem um toca-fitas hoje em dia?
TERAPEUTA
Quando fico nervoso, gosto da sensação de ouvir as mesmas fitas que a minha mãe ouvia quando estava nervosa. Me acalma.
REC HADDOCK
Rá.
TERAPEUTA
O que foi?
REC HADDOCK
O senhor não me parecia um homem nostálgico.
TERAPEUTA
A gente nunca é o que parece, né?
O Terapeuta se levanta, vai até um armário atrás de sua cadeira, o abre e pega um case com várias fitas cassete. Escolhe uma.
Vemos que é uma fita com o encarte escrito em hebraico. O nome do artista está em letras latinas e é Yehoram Gaon.
O Terapeuta coloca a fita no toca-fitas e dá o play. Ouvimos “Avre tu puerta” ao fundo. Rec fica olhando para o aparelho, fixamente, enquanto o Terapeuta olha para o seu paciente.
REC HADDOCK
Bonito.
O Terapeuta sorri.
REC HADDOCK (CONT’D)
Eu não tenho isso. Não herdei nenhuma música dos meus pais. Sua mãe morreu?
TERAPEUTA
Não estamos aqui para falar de mim.
REC HADDOCK
Claro. O senhor tem razão.
Rec fecha os olhos e balança a cabeça no ritmo da música.
TERAPEUTA
Você acha que perdeu a chance de conhecer melhor os seus pais?
Rec abre os olhos e olha para o Terapeuta.
REC HADDOCK
Não. A gente não conversava muito porque falar de coisas triviais nunca me interessou. Acho enfadonho todo este protocolo social de você fala da sua vida ordinária e eu finjo que me interesso.
Rec desliga o toca-fitas.
REC HADDOCK (CONT’D)
Eles me ensinaram o que sabiam da vida. Conheci bastante bem eles nesse processo. Nunca precisei de mais do que isso para amar meus pais, se isso te interessa. Não tenho nenhum problema com isso.
O terapeuta olha com expectativa para seu paciente em silêncio.
REC HADDOCK (CONT’D)
O meu problema é comigo mesmo. Eu sempre achei que fosse um artista. Rá. Hoje eu nem sei mais o que é arte. Tentei acontecer como ator, cantor, compositor, diretor, dramaturgo, pintor e agora como escritor. Nada funciona. Eu deixei de acreditar que eu posso.
Estou escrevendo um livro infantil. É sobre a morte da minha mãe, contada de uma forma lúdica. Ela voa num balão, no fim. Uma editora entrou em contato, interessada em ler o livro, baseada na sinopse.
Rec volta a tamborilar o tampo da mesa com a ponta de seus dedos. Fica em silêncio por um tempo, olhando a janela.
TERAPEUTA
Isso não é bom?
REC HADDOCK
Não. O livro não está pronto. Tenho certeza que se eles lessem o livro agora, eu não ia conseguir vender.
TERAPEUTA
E você acha que o livro é bom?
REC HADDOCK
Acho que vai ficar ótimo com mais tempo de trabalho.
Rec tira uma banana de sua bolsa e começa a comê-la.
REC HADDOCK (CONT’D)
Desculpa, doutor. Estou morrendo de fome. Tem problema?
TERAPEUTA
Nenhum. Sabe, Rec. Eu me pergunto se você não está com medo de publicar este livro.
REC HADDOCK
Não. Eu não tenho mais medo de fracassar profissionalmente. Já perdi o bonde do sucesso há muito tempo.
TERAPEUTA
Eu digo que acho que você está com medo de publicar este livro, porque acho que você tem medo de fazer sucesso. É muito comum se acomodar com a situação em que você se encontra, mesmo que ela seja uma situação perversa para você. Em casos como este, a pessoa faz tudo para manter seu padrão de vida, inconscientemente.
REC HADDOCK
O senhor está enganado, doutor. Eu sempre corri atrás do sucesso. Você sabe o que eu fiz quando tinha 27 anos?
TERAPEUTA
O quê?
REC HADDOCK
Era o meu aniversário. Eu tinha uma entrevista de emprego às dez da manhã, para uma vaga de professor de História da Arte. Me ligaram às oito, para cancelar a minha entrevista, porque a vaga já tinha sido preenchida. Eu falei que aquilo não era possível, que eles estavam abrindo mão do melhor profissional sem que soubessem e que eu ia fazer a minha entrevista mesmo que fosse para mostrar a eles que estavam errados. Eles falaram ao telefone que não adiantava, que o DP já tinha dado entrada nos papéis de contratação e que o contrato já tinha sido assinado. Falei para a secretária que não tinha problema. Ou aquela vaga seria minha, ou eu não me chamava Rec Haddock.
CORTA PARA
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A Última Gravação de Rec PARTE 1 DE 4
Por Rec Haddock
INT. ESCRITÓRIO SUJO. NOITE.
REC HADDOCK, um senhor de 80 anos, está sujo como quem não toma banho há dias, sentado em uma cadeira enferrujada, defronte a uma mesa cheia de papéis e fitas cassete espalhados além de dois gravadores antigos de fita cassete.
Vemos um ambiente sem janelas tão sujo quanto seu ocupante, mal-iluminado e extremamente silencioso. Além de sujo, tudo está bagunçado à volta do idoso.
Ele se levanta, vai até um armário de arquivo, abre uma das gavetas e tira uma banana lá de dentro, junto com uma pasta de arquivo, onde se lê o número 2015. Fecha a gaveta e volta a se sentar na cadeira enferrujada.
Descasca a banana, começa a comê-la, liga um gravador e abre o arquivo que estava sobre a mesa.
REC HADDOCK
Sou eu, novamente. Não haveria de ter mais alguém que falasse nessa coisa.
Rec dá uma mordida grande na banana.
REC HADDOCK (CONT’D)
Hoje é o dia 25 de Maio, de novo. O meu octogésimo. Estive lendo o arquivo 2038, o qüinquagésimo, e pude perceber mais uma vez o quanto era um idiota.
Rec dá mais uma mordida na banana e acaba com ela.
REC HADDOCK (CONT’D)
Você acha que pode depender dos outros. Pois não pode, pode? Se depender dos outros levasse a algum lugar, eu não estava aqui preso a um senhorio que me cobra um aluguel de oito quartos em uma sala comercial no subúrbio da civilização.
Meu filho morreu este ano. Não foi câncer, nem um acidente. Não foi nenhuma doença séria. Foi só velhice. O corpo dele parou de funcionar.
Nem com o corpo dos jovens podemos mais contar.
Rec desliga o gravador. Suspira. Levanta, vai até o lixo, tira uma banana lá de dentro e a descasca. Senta e começa a comê-la. Liga novamente o gravador.
REC HADDOCK (CONT’D)
Não foram poucas as pessoas em que confiei na minha vida. Quase todas as nossas relações são baseadas em confiança. Mulher, filhos, amigos, vereadores, policiais, terapeuta. Cada um deles, atestado da nossa demência e incapacidade de nos percebermos como seres solitários.
Liga o outro gravador, enquanto dá uma mordida na banana. Ouvimos uma gravação, enquanto vemos Rec mastigar sua banana.
GRAVAÇÃO
Consegui mais do que imaginava neste ano. O destino foi bom pra mim.
REC HADDOCK
Rá! Você não conseguiu nada!
GRAVAÇÃO
Meu primeiro livro finalmente vai ser publicado. Fechei o acordo há duas semanas.
REC HADDOCK
Se a editora não tivesse fechado.
GRAVAÇÃO
A história é linda, sobre uma menina e seu balão. Ela me veio à cabeça no funeral da minha mãe.
REC HADDOCK
Outra que me abandonou! Rá!
GRAVAÇÃO
Minha mãe não pode ver o meu livro publicado, mas sei que acreditava que eu conseguiria.
Agora eu sei que só vou conseguir por causa dela.
REC HADDOCK
Chega!
Rec enfia o que resta da banana no botão “stop” do gravador que está reproduzindo a fita.
REC HADDOCK (CONT’D)
A ingenuidade serve apenas aos analistas, que de bom grado exploram as carências de seus pacientes. Naquele ano, fazia terapia. Por um tempo parecia que ia me ajudar a superar a morte da minha mãe e a separação da Nathasha, mas só me ajudou a aliviar o peso do bolso traseiro da minha calça. Devia ter procurado outras putas. Talvez não tenha tido a grandeza deste pensamento porque a que me largou com um filho e um casamento falido me custou muito caro.
CORTA PARA
INT. SALA DO TERAPEUTA. TARDE.
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Bem depois do BIP
Por Rec Haddock
(Mulher está sentada na beira da cama, ao telefone)
Oi Pedro. Eu sei que você ta aí, atende, por favor. Ta bom. Vou falar pra secretária eletrônica mesmo.
Eu sei que quando a gente brigou, eu falei coisas que não devia, mas você também disse umas coisas horríveis ao meu respeito, e foi por isso que eu terminei contigo.
Eu estou disposta a esquecer tudo isso e voltar com você se você simplesmente pedir desculpas pelo que você disse. Só precisa disso, pê, e eu peço desculpas também, porque eu estou arrependida, e não fui sincera. Eu só queria te machucar quando falei aquelas coisas. Atende, por favor.
Enfim. Eu encontrei um carinha hoje num sebo, e ele me chamou pra sair. Ele está aqui embaixo, e se você não atender agora, eu vou entender que você não quer mesmo mais nada comigo e vou sair com ele. E só Deus sabe o que eu sou capaz de fazer.
Vou desligar, pê. Não vai atender? Beleza. Tchau, então. Foi bom.
(Ela desliga o telefone e se deixa cair na cama, desolada. O telefone toca na mão dela, e ela senta pra atender)
Pedro! Eu sabia que você ia ligar!
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Exercício anti - criativo 3
Por Rec Haddock
Cristina – Você não sabe o que aconteceu!
Martina – Sei sim.
Cristina – Como você soube?
Martina – Eu tava lá, Cris.
Cristina – E você não fez nada?
Martina – Fiz, ué. Pedi desculpas.
Cristina – Desculpas? Do que você está falando?
Martina – Hoje, no metrô. Eu estava sentada, e o metrô estava meio cheio. Daí entrou uma grávida no trem, e eu levantei e disse: “Pode sentar, madame." E ela começou a me xingar. Ela não estava grávida. Só era gorda, vê se pode?
Cristina – MARTINA! O meu namorado me traiu!
Martina – Com a gorda?
Cristina – Com a gorda? Pelo amor de Deus! Foca, Martina, foca!
Martina – Cadê?
Cristina – Cadê o que?
Martina – A foca!
Cristina grita – Sua inútil! O meu namorado me traiu e você fica aí falando de grávidas de araque e focas imaginárias! Eu preciso de uma amiga melhor do que você!
Martina – Mas você não tem. Eu sou a única.
Cristina – Você é mesmo? Você nunca me apóia, fica sempre falando das suas besteiras sem sentido. Mesmo quando é sério que nem agora. A gente lê todos aqueles livros. O Harry com a Ginna, o Ron com a Mione, A Catniss e o Peeta. E eu? Cadê o meu Percy Jackson? Cadê o meu Legolas? Isso não existe, Ma? É tudo ficção?
Martina – O amor?
Cristina – É. O amor também. Mas mais do que isso, sabe? A sinceridade, o companheirismo.
Martina – Mas como você espera ter essas coisas se não é sincera consigo mesma? Você sempre soube que ele não presta, e agora espera fidelidade?
Cristina – Espero. Eu espero porque eu acredito nas pessoas. Eu acredito em você, por exemplo.
Martina – É diferente, Cris. Eu existo mesmo.
Cristina – Que nem nos livros.
Martina – Que nem nos livros.
Cristina – Mas a vida não é um livro. O Pedro fez questão de jogar isso na minha cara com aquelazinha. O que eu tenho, no fim das contas, é medo de ficar sozinha. Sabe? De morrer sozinha.
Martina – Você não vai ficar sozinha. Eu vou estar sempre aqui.
Cristina – Você não serve. Você é imaginária. Eu vou sair pra procurar uma amiga de carne e osso.
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Note from Tijuca National Ministry Facilities Park in Rio de Janeiro
Por Rec Haddock
Devo admitir que houve uma época em que fui assessor parlamentar, ainda que num passado longínquo. Sempre tive algum talento diplomático e naquela época ainda podia utilizá-lo: eu era bastante útil em matéria de fazer arranjos para aprovar leis. Hoje - quando a comunicação entre nós é essencialmente digital e robôs falam com a voz que antes apenas seres conscientes tinham - fico perdido em meio a tantos canais, e vejo que virei inútil.
Falo apenas para leitores que não vejo, neste openjoulying melancólico. Mas esta entrada não é para tratar disto.
Hoje venho falar (quem dera que isto fosse falar) sobre as leis e costumes que nos impõe que não sejamos nós e sim quem se espera que sejamos, o que, no fim das contas, é o dever de todo político: moldar as atitudes e vontades individuais em prol do que se acredita que seja o bem maior para todos os cidadãos de uma nação.
Pois bem.
Quando eu estava no Senado Federal, passei uma lei que hoje, 60 anos depois, está sendo revogada. A tal lei garantia que todo ser humano brasileiro, ao completar 21 anos poderia escolher o seu nome. Se ele quisesse manter o seu, poderia, mas se quisesse mudá-lo também poderia. Mais do que atender a Clédstons e Jhonniestons, a lei tinha o claro propósito de facilitar a vida do jovem transexual ou crossdresser que tinha de enfrentar um desgastante processo civil toda vez que gostaria de ver no extinto RG um nome correspondente à orientação sexual que seus pais não tinham como reconhecer em um recém-nascido.
Com o tempo, a lei denotou a presciência dos seus redatores – a modéstia me obriga a salientar que foi uma presciência que previu o que aconteceria até um futuro a médio prazo, apenas – e fez parte de um movimento ainda mais amplo. Dentro de um contexto onde os jovens brasileiros se politizaram e passaram a reconhecer o seu papel de protagonistas no futuro da nação – estes mesmos que agora são os novos coronéis da política e legislam em favor dos seus próprios umbigos-centro-do-universo – a lei serviu para que os jovens adotassem nomes que bradassem o que de fato eram ou queriam ser.
Forte de Albuquerque, Águia Meniscepal, Tupã Magalhães e Fogo Fátuo Silveira são exemplos de uma cultura que se instalou entre os jovens que remete às nossas mais verdadeiras raízes indígenas. Somada à uma diversidade de outras medidas, propiciou o que hoje entendemos como Cultura de pré-Identificação Digital, ou “C PID”, como chamamos mais comumente.
A princípio, hoje, pode parecer uma lei inútil e sem propósito (ou é isso que os parlamentares que a derrubaram insistem em afirmar), afinal, qual é a diferença que faria modificar o nome civil se é possível mudar o seu avatar ao seu bel-prazer?
"Na época de sua aprovação a pertinência da lei 0056/3 de 2015 não poderia ser questionada, com todas as confusões causadas pelo movimento transgênere, conhecido pelo caráter subversivo de seus conceitos. Hoje, esta lei só contribui para o acúmulo de normas prescritas na prática que insistem em pesar o judiciário com sua teoria ultrapassada". Cito o excrementíssimo Deputado Federal Lofre Buba, senhor conhecido por sua luta contra os direitos individuais dos outros, em prol do seu individual sem escrúpulos.
Eu, claramente, discordo da visão do Deputado. A questão da escolha é fundamental. O livre-arbítrio de ser quem se é ou de ser quem se quer ser é fundamental em qualquer sociedade que preze pela constituição de seus indivíduos, na medida em que, a partir do momento em que esse direito lhe é retirado, ele passa a ser apenas o que se quer – o outro quer – que ele seja. Talvez hoje em dia, o conceito tenha caído em desuso, mas o nome das coisas devem representar quem elas são em seu âmago mais imutável. Todos devem ter o direito de se dizer o que quer que queiram e participar dos movimentos que se chamem como querem que se chamem. E nada nem ninguém deveriam se colocar no meio disto.
Estou mesmo muito ultrapassado ao acreditar que as pessoas possam querer construir uma autoimagem individualizada no âmbito carnal? Será que somente o digital – e, portanto, o que os outros veem ou sabem a nosso respeito – importa hoje em dia? Não vejo como uma sociedade pode conseguir se sustentar sem que seus integrantes se vejam olhos nos olhos? Mesmo que fossem eyescopes.
E, entrando no mérito de trocar partes saudáveis do seu corpo por partes biônicas, será que não trocamos também a nossa humanidade por um pragmatismo robótico?
Talvez a nossa ânsia de nos manter vivos e saudáveis, longe de doenças, presos em cápsulas herméticas, esteja nos fazendo simplesmente menos humanos. Nem tudo pode ser gente. Nem mesmo toda gente o pode.
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Manual de bolso do McGyver para usos de clipes de papel
Por Rec Haddock
1. Arrombamento de fechaduras;
2. Coloque um elástico atravessado e use-o como estilingue;
3. Paleta de violão;
4. Chave de compartimento de chip do iPhone;
5. Assistente do Word 97;
6. Prova para tribos não civilizadas que a sua sociedade sabe trabalhar em plástico e metal;
7. Juntos formam uma boa corda para fuga da prisão;
8. Sob pés de móveis impede trepidações causadas por desníveis no solo;
9. Enfiados em uma borracha, explodem tomadas (com segurança!);
10. Limpar cera dos ouvidos;
11. Design de torre futurista;
12. Abertos, no chão, servem como armadilhas para ladrões que querem invadir sua casa quando você foi esquecido nela pela sua família no Natal;
13. Preso em rabo de gato fornece uma boa diversão sádica;
14. Grampo de cabelo;
15. Abertos e unidos com chiclete são uma boa antena de TV;
16. Enfiados no buraco do parafuso seguram a haste de um óculos quebrado no lugar;
17. Cordão hippie escolar;
18. Anexado aos dois lugares onde se abre um fecho-éclair impede que ladrões abram sua bolsa sem que você perceba (e te causam dificuldades quando você mesmo quer abrir a sua bolsa);
19. Tema de pintura neocubista;
20. Presos em outros em todos os lados formam uma rede que impede que você afunde em areia movediça ou águas pantanosas;
21. Mosquetão;
22. Espigão para cabeça de Ratos (mantenha-os fora do seu reino!);
23. Palito de dentes (cuidado com a gengiva);
24. Chave de fenda;
25. Limpar sujeira debaixo das unhas;
26. Abotoaduras;
27. Esvaziador de pneus;
28. Flores de artesanato;
29. Fechar sacos de lixo;
30. Moldura de quadro pequenino;
31. Seta;
32. Anzol;
33. Alargador de cordão;
34. Chaveiro;
35. Prender fones de ouvido na camisa, para que eles não fiquem presos em outras coisas quando você se mexer e machucar o ouvido quando o filho da puta do fone sair;
36. É um instrumento de tortura, se enfiado entre a unha e o dedo;
37. Marcador de páginas;
38. Gravata de Hamster;
39. Presos uns nos outros viram uma cota de malha medieval de um guerreiro bem pobre;
40. Consertar Havaianas arrebentadas;
41. Preso em outros por todos os lados dão uma boa rede de pesca;
42. Pingente de cordão;
43. Agulha de bússola;
44. Quebrando um na metade, você ganha um grampo;
45. Usado na ponta da pulseira do relógio, substitui a presilha;
46. Aumentador de cílios;
47. Vários perfazem uma espiral de caderno;
48. Aberto, serve para furar papelão;
49. Rede de dormir;
50. Piercieng;
51. Raspador de raspadinha (já deu a sua hoje?);
52. Fazer uma cortina que não impede a luz de entrar, mas impede pessoas (ligue a cortina na tomada);
53. Coleira;
54. Use para abrir embalagens de CDs e DVDs e Blu-Rays;
55. Junte alguns e faça um garfo;
56. Prende apontamentos em quadros de cortiça;
57. Ponta de caneta tinteiro;
58. Pregador de roupas no varal;
59. Fazer um puxador de descarga de cordinha;
60. Porta chuquinha de cabelo;
61. Tirar sujeiras das reentrâncias das solas dos sapatos;
62. Quando estiver fedendo, tampe o nariz com um clipe;
63. Prenda num chumaço de grana e num barbante e pesque pessoas interesseiras;
64. Jogar o jogo de achar Clips no fundo da piscina;
65. Fazer o símbolo do infinito;
66. Prender a bainha não costurada das calças;
67. Use clipes pinicando outras pessoas e se transforme em um pentelho irritante;
68. Abridor de copo de Guaravita;
69. Se prepare para ser um pirata furando um olho com um clipe (não deixe de garantir seu tapa-olho);
70. Aplicador de cola em locais pequeninos;
71. Use-o para prender fios e cabos e impeça que vire tudo uma grande bagunça;
72. Rede de vôlei;
73. Mate piolhos esmagando-os com seu clipe;
74. Enlouqueça seu pai arrancando porções homeopáticas de tinta das paredes de casa;
75. Personalize sua borracha furando seu nome nela com o clipe;
76. Espete várias folhas de isopor umas nas outras e faça a estrutura de sua maquete de níveis do solo;
77. Cole vários abertos no topo do seu muro para impedir que bandidos invadam sua propriedade (com tétano são mais eficientes);
78. Pendure fotos (reveladas) com clipes em uma teia de cordinhas coloridas no seu quarto e mantenha suas memórias vivas na retina;
79. Faça um terço com vários entremeados e o dê para sua tia solteirona;
80. Ensine pros seus alunos pequenos o que é um clipe;
81. Cobra de artesanato;
82. Coçar dentro do gesso (!);
83. Espetinho de churrasco (certifique-se de utilizar uma luva térmica, em conjunto);
84. Segurar um laço;
85. Aplicar uma das 200 formas babacas de acordar o seu irmão;
86. Manter os olhos do Alex Legrange abertos;
87. Limpar a escova de dentes;
88. Tirar a ponta do lápis de dentro do apontador;
89. Limpar a cola das mãos;
90. Espremer uma espinha;
91. Desentupir arminhas d'água;
92. Envolva seu dente mole com um clipe e o arranque com velocidade e pressão;
93. Substituir um ponteiro quebrado de relógio de parede;
94. Usar como anilha na academia;
95. Prender flores em um lindo arranjo;
96. Escrever na terra ou na areia que o REC É LINDO (!!!);
97. Jogar cuspe de clipe à distância com seus amigos;
98. Fazer uma mini miniatura da torre Eiffel;
99. Consertar a tampa de uma caneta;
100. Fio de varal para roupas metalizadas;
101. Provar pra sua avó que você sabe o que é um clipe, quando ela duvidar;
102. Prender uma cortina no varão;
103. Fazer de brinco de pressão;
104. Fazer luminárias suspensas com vários clipes presos uns aos outros;
105. Grades do Hell in The Cell do WWE;
106. Mini régua;
107. Remoldá-los para dar suas aulas de geometria espacial para o meninos e meninas do 5º ano fundamental;
108. Portas chiques em maquetes;
109. Faça uma corda pro balde do poço dos seus inimigos;
110. Atraia imãs;
111. Pendurar uns chaveiros e fazer um móbile;
112. Prenda o cadarço dos sapatos com clipes, se não puder amarrá-los;
113. Dois desdobrados viram palitos pra comida japonesa pouquíssimo funcionais;
114. Cavar o chão da sua cela da prisão e produzir um túnel para a liberdade;
115. Âncora de barquinho de papel;
116. Prenda morcegos no cabelo e grite que fogo nenhum vai te consumir, porque a bruxaria é mais forte;
117. Enfiar no seu TIM para ver se ele pega sinal (não funciona, mas a TIM merece propaganda negativa);
118. Corda de pular;
119. Não usar como clipe de papel, e discutir o niilismo através disto no enredo de um filme ruim;
120. Tirar meleca do nariz;
121. Desentupir ralo;
122. Artefato explosivo de bolas de encher;
123. Marcador de escravos e boiadas;
124. Juntando vários em círculos, temos porta-copos;
125. Cabelos de bonecos de papelão;
126. Pinça;
127. Ganchos para segurar itens pequenos;
128. Neurônios do Homem de Lata;
129. Molde de massinha (para as crianças, só de plástico!);
130. Curral de formigas;
131. Verso de pin;
132. Desobstruir frascos de spray e tubos de cola;
133. Ejetar um CD do computador;
134. Espetinhos de queijo e azeitonas;
135. Enfeites de árvores de Natal
136. Suporte de calendário;
137. Alfinete de segurança de emergência;
138. Cortador de morangos;
139. Araminho de saco de pão;
140. Prender o biquíni com fecho ruim;
141. Grampo de gravata;
142. Se alguém morre, mas não é cremado, você pode jogar os clipes de papel do defunto em um local significativo para vocês;
143. Coce as costas com um aberto;
144. Porta-incensos;
145. Sapatos de neve para os hamsters dos esquimós;
146. Saca-rolhas;
147. Pentelhos de uma sex-machine;
148. Tala para dedos luxados;
149. Mini catapulta;
150. Peso no nariz de aviõezinhos de papel;
151. Suporte de cartão de visitas, presos num barbante;
152. Coloque um na sua série da academia e nunca mais fique 500 anos procurando-a;
153. Mini pé-de-cabra;
154. Limpador de cachimbo;
155. Fusível de emergência;
156. Segurar o escapamento do seu carro velho, amor, (porque andar a pé é lenha);
157. O fim da liberdade de um passarinho, preso por uma corrente de clipes na patinha;
158. O pesadelo dos seguranças de aeroporto;
159. Trilhos da sua maquete de ferrovia da época da política do café com leite;
160. Usar como dentes de vampiro metálicos pra atrair vampiras gatinhas;
161. Carregador do seu canhão em miniatura;
162. Usar como pistas do caminho de volta para fora do labirinto;
163. Parte integrante registrada do chocalho do maternal (dentro da lata de refrigerante lacrada);
164. Um parquinho para moscas;
165. Correntes para as latas do carro dos noivos;
166. Escovinha de limpeza de teclado de computador;
167. Pincel pontilhista;
168. Desobstrutor de saleiro e pimenteiro;
169. Porta-crachá;
170. Cartão fofo de dia dos namorados, se dobrado em forma de coração (arranje o namorado primeiro. Se tentar arranjar o namorado assim é fracasso);
171. Cabide para casa de bonecas;
172. Utensílio de decupagem;
173. Dardo de zarabatana;
174. Suporte de Smartphone;
175. Para-raios de baratas;
176. Abridor de cartas;
177. Segurar o fim do cinto quando ele está muito comprido;
178. Se unido a um barbante, e um lápis, vira um compasso;
179. Aquecido, ele derrete a manteiga congelada (que é a origem de todo o mal do mundo) impossível de se passar no pão de forma;
180. Fazer pulgas saltarem por dentro dele no seu Gran Circo de Pulgitas;
181. Se for oco, você pode usar como canudo;
182. Faça marcos nos canais com eles, para que os comandantes de navios saibam que aquelas águas são seguras (ou faça marcos falsos para encalhar seus inimigos e atacá-los);
183. Palito perigoso de picolé;
184. Golzinhos de dedobol;
185. Deixe ele aberto na sua mesa de estudo, com a ponta para cima, e sempre que você estiver cabeceando de sono, ele vai te manter acordado e estudando;
186. Misturador de Drinks
187. Um realmente grande, serve como uma destas antenas de celular gigantescas que vemos nas estradas;
188. Um consolo incapaz de consolar;
189. Um chicote com pontas de clipes afiadas;
190. Amassá-lo com raiva para se acalmar;
191. Pino de dobradiça de porta;
192. Espeto para mini marshmallow, para derreter na sua vela de aniversário;
193. Combustível de carro movido a clipes de papel;
194. Dá para fazer mágica com clipes, mas você vai ter que descobrir como sozinho;
195. Abrir algemas;
196. Moeda do Reino do Clipestão;
197. Aqueça para transformar em baby-liss;
198. Faça um piquete na sua janela para que pombos não pousem nela;
199. Colecione-os;
200. Forçar a criatividade e a imaginação e produzir uma lista com 200 usos desse troço.
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Aevum
Por Rec Haddock
minha irmã era chata mas as vezes me dava chocolate ela sempre roubava comida do meu prato quando a comida era gostosa. mas todas as coisas nojentas ela fazia eu comer pra ela.
ela quase nunca tava em casa sempre ia pra casa das amigas pro cinema ou pro shopping ou pra praia. e quando tava em casa ficava trancada no quarto dela no computador. ela me ensinou a ler “rato e roupa”. ela não ia com a gente na igreja porque dizia que o mundo é grande demais pra ser feito por um deus que tinha que ter um monte. mas quanto mais longe eu fico da tv menor fica
talvez seja só deus mesmo só que ele fica bem longe do mundo e por isso o mundo é pequenininho pra ele e ele fez tudo mesmo.
ela adorava fazer palhaçadas também. ela enfiava canudos nas orelhas e no nariz e eu achava engraçado quando eu imitava meus pais brigavam com ela. meus pais brigavam muito com ela
toda vez que ela falava uma palavra feia meus pais brigavam com ela mas falavam um monte de palavras feias pra ela.
talvez você só possa falar palavras feias quando têm filhos.
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Num quarto sem espelhos
Por Rec Haddock
O presidenciável José (que não era tão presidenciável assim, visto que as linhas que marcava as intenções de voto nele em todas as pesquisas eram retas sobre zero em todos os pontos e apitavam um “pi” deprimentemente constante toda vez que mencionadas) não esperava por aquela pergunta em um debate cortês entre os candidatos já que, afinal de contas, aquela pergunta poderia suscitar um debate.
Tinha que ser essa mulherzinha cretina. Socialista fingida, pensou ele, essa putinha acha que vai me foder com essa. Mas vai ver só.
- Pois bem. A senhora não fugiu da pergunta, não serei eu que (sic) vou fugir da resposta. Não vou ficar pagando de que aceito esse tipo de nojeira só para angariar votos. Mesmo porque até onde eu sei, homem e homem não fazem filhos e mulher e mulher também não. Fica até feio falar isso na televisão. Mas eu sou pai. Sou avô. Tenho que defender os valores da família. Vou acatar o que está na lei, mas não vou proteger minoria nenhuma. Não é certo eu ter que ver dois homens se agarrando em público, se não gosto disso e a maioria não gosta disso. Eles têm mais é que se esconder.
Isso encerrou a resposta de José, mas, claro, não a questão. Políticos nunca encerram questões, uma vez que suas respostas nunca respondem as questões que lhes cabem responder.
O resto do debate passou como o previsto. As pessoas não disseram nada e os políticos prometeram o mundo.
Ao fim do debate, José, muito cansado foi de carro para o hotel, acompanhado por seu motorista particular, seu assessor Jonas no banco do carona e uma estagiária muito gostosa ao seu lado, no banco de trás.
Sua família (mulher e 3 filhos, nenhum produzido por quaisquer aparelhos excretores que fossem) seguiam no carro de trás.
Chegando ao hotel, os assessores foram para o quarto modificado para virar um escritório, no intuito de acompanhar a repercussão do debate. Os meninos foram para o seu quarto, onde a babá os colocou para dormir. José e sua mulher foram para o quarto que lhes cabia, onde, conquistado o descanso merecido, o candidato colocou seu pijama e foi para a cama. Sua mulher deitou e aguardou-o nua, mas ele estava com dor de cabeça. Ela estava acostumada e logo dormiu.
É claro que a estagiária mandou uma mensagem para ele e é claro que ele saiu de fininho do quarto. Mas no fim das contas, José era um candidato coerente e a estagiária era testa de ferro, veja só. Ela estava apenas repassando a mensagem de Jonas.
José e Jonas se trancaram em um quarto e não se reproduziram, apenas, porque seus aparelhos excretores não permitiram. Mas, longe da vista de todos, tentaram. E como tentaram.
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O pior é não conseguir enxergar a melhora que há
Por Rec Haddock
Eu vim duma terra que homem não ficava sentado com mulher em pé por perto. Se a mulher chegava o homem levantava e dava lugar. O homem botava a mulher no cavalo e ia puxando. Botava as criança no cavalo e ia puxando. Não tinha essas coisa de hoje em dia não. Lá na Paraíba homem é homem de verdade. De palavra. Como meu senhor Jesus Cristo disse que tem que ser. Eu era menino levei 60 mulher pra cortar cana. Ia todas no cavalo e eu ia puxando na frente. Eu era o responsável por 60 mulheres. Um menino.
Aqui na cidade grande é mais difícil, né? Muito difícil ouvir deus com toda essa gente falando ao mesmo tempo. aí a gente não sabe o que é certo, não é mesmo? Quem vai dizer o que é certo? Não é presidente, não é o Estado. É Jesus.
Esses importante aí, todos falando besteira. Falando de aborto, que tem que abortar. Não é assim. Nosso senhor disse que toda vida humana tem que vir ao mundo. O importante que fala que tem que abortar ia querer morrer na barriga da mãe? Ia? Não ia. Como Jesus falou.
Eu por exemplo. Sou iluminado. Já tive câncer, pneumonia, tuberculose e continuo vivo. Meu bom senhor Jesus me salvou. O diabo cansou de tentar me levar embora e não conseguiu. As pessoas tem medo da morte, mas agora a morte é que tem medo de mim. Quando tive essas doença era velho, mas agora fiquei novo. Fui velho e agora sou novo. Não tenho medo mais de nada.
Pra não dizer que não tenho medo de nada, tenho medo de ter que viver pra sempre nesse mundo aqui.
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WABAC
Por Rec Haddock
EXTRA!
EXTRA!
Por um milagre científico que não temos como explicar, tivemos acesso ao último jornal impresso na história da Terra, que será datado de 13 de Setembro de 2036.
Seguem as suas manchetes:
1) PF abre inquérito sobre vazamento de informações sobre operação Pasárgada;
2)Presidente da CPI da Eletrobrás pede acesso à delação;
3)Ferunal puxa maior queda da Bovespa desde fevereiro;
4) Laura afirma que Jonas tem responsabilidade política;
5) 'Novas denúncias têm que ser apuradas', cobra Tancredílio;
6) Fogo em comunidade de MG pode ter sido criminoso;
7) Última Lettering de jovem que fez aborto: 'Pânico';
8) STDJ condena Avaí à perda de 15 pontos e Fluminense se salva do rebaixamento;
9) Asseiro diz que riu de boato sobre corte de Lucas: 'Não sou homossexual';
10) Torcedor que jogou banana sobre Brandão ainda não foi punido;
11) Candidatas ao Miss Clitóris trocam ofensas pela internet: 'Evangélica de araque'.
Tendo em vista o teor da publicação, podemos afirmar que o futuro nos ensina que somos tão iguais aos nossos filhos quanto somos aos nossos pais.
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E quem diria que namoraríamos a distância, mesmo depois de casados...
Por Rec Haddock
Amor,
Não sei como começar a expressar a falta que sinto de você, agora. Já reescrevi o início deste texto várias vezes, e nenhuma soa ao menos razoável, enquanto o leio em voz alta.
Por vários momentos no dia, pensei em você, ainda mais do que o normal. Talvez por saber que não vou vê-la tão cedo. Fico pensando que você gostaria de ver isso, ou pensando que gostaria de te dizer aquilo.
Pensar em você precisando de mim, sem que eu possa estar do seu lado é ainda mais doloroso. Do que você pode estar precisando, ou que pode não estar feliz...
Sinto saudades de você reclamando que eu não posso ficar muito tempo contigo porque trabalho muito em casa, e agora é ainda pior, porque o trabalho me levou longe dos seus olhos.
Mas se não temos o presente, temos memórias e futuro. Não quero escrever demais porque dói aqui, e tenho certeza que vai doer aí, também. Então rezo para que este bilhete surpresa seja motivo de alegria e não de (muita) melancolia.
Te amo, morzi.
Bons sonhos.
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Pragmática. No fim,até a morte é cartesiana.
Por Rec Haddock
É sabido que um ator famoso tirou a própria vida, recentemente. A família encontrou um texto que ele escrevera antes e depois de morrer, que veio parar em minhas mãos. Publico-o em respeito aos fãs, e à vontade do artista, que parece ter o escrito para que estes o lessem. O texto dizia o seguinte:
Ficam-se o tempo todo se perguntando o sentido da vida, e não o acham, no entanto. Até o fim. E quando cada um chega ao fim (a luz de plateia acende, revelando um espelho no fundo do palco, onde a plateia se vê.) vê uma multidão de pessoas às suas costas. Uma multidão que não vale nada. Todas as pessoas que você foi e já deixou pra trás. Todas as pessoas escrotas que você foi, que gostariam de ser outras pessoas. Idiotas, como você.
E então, tudo o que resta é o vazio. O não ser. De que vale viver então? Para existir procurando a razão que não há, da existência que não há, senão para acabar?
Como suportar a existência sabendo que o seu reflexo pode ressuscitar, mas você não? Que você, então, é menos que um reflexo?
Já, a minha sorte foi diferente. Provei da não-existência e voltei. Incontáveis vezes nos últimos dias. Aprendi a apagar a luz e a acendê-la. E como é dura a possibilidade da eternidade. Você será melhor do que jamais foram. Cada fim será um novo começo para você. Boa sorte.
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Equação
Por Rec Haddock
Anne- Você veio.
Alice- Vim. O que você quer?
Anne- Tudo bem? Você parece meio abatida.
Alice- Tô cansada. Enfim. Por que você me chamou aqui?
Anne- Eu queria que você me ajudasse com o papai. Ele ta muito doente, Alice. Ele esquece as coisas, confunde as pessoas.
Alice- Confunde as pessoas?
Anne- É. Ele fala comigo achando que eu sou você, ou a mamãe. Às vezes ele me chama de Vitória, também.
Alice- Vitória?
Anne- É. Você conhece?
Alice- Não. Não sei. Acho que não.
Anne- Tem certeza? Parece que ele gosta muito dessa mulher.
Alice- Ai, Anne. Eu não to com tempo pra essas suas teorias não. Vai ver que é uma cachorrinha que ele tinha quando era criança. Vamos ser práticas. O que exatamente você quer que eu faça pelo papai? Você quer que eu contrate uma enfermeira?
Anne- Como você consegue ser tão pragmática, Alice? Enfermeira? Você não visita ele há três meses. Ele sente a sua falta.
Alice- Ai, Anne. Ta bom. Semana que vem eu passo na sua casa.
Anne- Como você pode ser tão fria? Você chega aqui sem nem perguntar como eu estou. A gente não se vê faz eras e você chega me dizendo de contratar uma enfermeira pro papai sem nem olhar pra ele? O que eu te fiz pra você me tratar assim? Deixa de ser babaca, Alice.
Alice- É a sua mãe.
Anne- Quê?
Alice- Vitória. É a sua mãe. O seu pai traiu a minha mãe com essa Vitória, e nove meses depois você apareceu. Você achava que era adotada, que tinha sido escolhida. A sua mãe te largou no meio da nossa família e fugiu. Você acha o seu pai tão generoso, né? Ele é um canalha. Eu não visito ele há três meses, porque não suporto ficar perto dele.
Anne- Você sempre soube disso?
Alice- A minha mãe te acolheu como a uma filha e perdoou o meu pai. Pra todos os efeitos você é a minha irmãzinha mais nova. A geniazinha que conseguia fazer qualquer conta e queria ser matemática que nem o papai. Faz essa conta, agora. Uma enfermeira a mais e uma filha a menos. O resultado pro papai é positivo ou negativo?
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Presidente da nação - Parte dois
Por Rec Haddock
Abri a porta e vi um rato, com muitos documentos na mão, que prontamente se apresentou:
- Olá, bom dia. Meu nome é Iko Nutsamura. Pode segurar isso para mim, por favor? Ele me deu os documentos que segurava, se serviu do café dormido que eu guardava para este tipo de situação, sobre a mesa da sala, e continuou. Sou um oficial do Ministério de Prevenção de Plágios à Obras Literárias Internacionais. Você, por acaso, já sabe a linha da sua defesa? Se você...
Eu, na verdade, estava mais preocupado em me transformar em humano, novamente, mas acho que já restava muito pouca humanidade na Terra, já naquele tempo. Mas como todos nós temos a tendência a almejar o inalcançável, nenhum de vocês, leitores, podem me condenar.
- Obviamente, - a ladainha do rato continuava - eu não vim aqui para te atacar. Não ainda, pelo menos. Mas você tem que entender a posição do ministério: o governo tem a obrigação moral de impedir que você seja o que quer que você queira ser. De modo que estou aqui para me certificar do que você quer, para depois poder te atacar com propriedade. Ninguém pode afirmar que o governo não joga dinheiro fora com pesquisas o tempo todo, de qualquer modo. Alguma dúvida até ai?
Tentando entender se poderia utilizar-me do direito de ficar calado simplesmente, calei-me.
- Pois bem. Se a sua intenção é não cooperar.
A porta da minha casa foi arremessada através da sala e caiu na rua, pela janela. Um urso com um cassetete enorme nas patas estava parado, de pé, onde deveria estar a porta da minha casa. A luz do corredor estava totalmente acesa, enquanto a da minha sala estava totalmente apagada, de modo que o urso surgiu em uma contra-luz cinematograficamente: BAM!
Tudo o que eu consegui pensar naquela fração de segundo foi “fodeu”, o que expressa coisa pra caralho. No caso, queria expressar que a porta da minha casa que já tinha encontrado outra porta de outra casa na rua com a qual já passeava de mãos dadas, sempre cumpre mais a função de me deixar vulnerável do que me proteger, como deveria.
O urso se apresentou.
- Bom dia. Sou Oliver Jackson e trabalho como um oficial do Ministério de inComunicações Diárias Não Necessariamente Planejadas. Tenho aqui em minhas mãos uma ordem judicial – me entregou um papel. Se serviu da jarra de mel que eu guardava ali, para este tipo de situação, enquanto eu lia o papel que estava em minhas mãos. Era um papel higiênico recheado do que eu assumia que fosse adubo orgânico, como quase tudo que vem das mãos dos juízes brasileiros. Ele continuou. Minha função é fazer você falar, rapazinho. E a não ser que você queira começar a perder patas.
- Não seja tão grosseiro, por favor. Disse o rato, que, pelo menos, parecia educado. De qualquer forma ficou claro que os ministérios não se entendiam.
- Se você não quiser usar o consolo – o urso levantou seu cassetete – eu não preciso fazer você chorar.
Eu só conseguia imaginar a quem aquele instrumento ministerial consolaria, ao governo ou a mim, cidadão. De tanto pavor, não abri a boca, e o urso começou a andar na minha direção.
FINAL DA PARTE DOIS
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Presidente da nação - Parte um
Por Rec Haddock
Acredito que poucos de vocês saibam, mas já há muito não moro em terras canarinhas ou tupiniquins. A bem da verdade, se você quer saber, ninguém mais mora nessas terras, porque os canarinhos e tupiniquins de bom senso que prezaram por preservar as suas vidas já saíram do Brasil há mais tempo que eu, deixando a Pátria Brasileira órfã destes filhos.
Mas por muito tempo, antes da velhice, morei aí, nesta terra do passado. Não digo isso pelo Brasil ser um país atrasado – o é – mas porque moro a leste da antiga Ilha da Vera (mulher dita religiosa, mas que na verdade pegava toda rolinha que pudesse com sua rede), e por isso, para mim, o dia nasce antes e morre antes.
Na época de minha vida em que ainda morava no Brasil, quando Dilma ainda governava, muitas coisas esquisitas aconteciam por lá (ou aí, se você estiver lá). E essa história se passou naquela fase:
Neste momento você pode escolher ler a fábula que aconteceu de verdade, ou pode apenas pular pra moral da história se você não quiser saber de mais enrolação. Se você escolher pular para a moral, pule para a parte do texto onde está escrito: MORAL! Para fins de proteção dos indivíduos, transformarei todos em animais, sem simbologia alguma, mas manterei os nomes reais de todos porque, afinal de contas, um nome é um nome, e vários podem ter o mesmo nome, de modo que a melhor forma de proteger a identidade de alguém é dar um falso nome real, ou ainda um nome real falso. Um falso nome falso, por sua vez é o nome real e tem pouca serventia, porque são poucos os que querem ser quem – ou o que - de fato são.
FÁBULA: Certo dia acordei de um sonho maluco. O que sonhei não vem ao caso, mas se querem tanto saber, o sonho envolvia três lhamas, um vaso de petúnias e a grande barreira de corais tomando umas cervejas em um pub irlandês.
Quando acordei percebi que tinha me transformado em um inseto duro e de muitas patas. O primeiro pensamento que me veio à cabeça – já pensando como o autor que viria a me tornar – obviamente foi o de plágio. Não queria ser eu o imbecil que plagiaria Kafka. O meu segundo pensamento foi de que. O meu segundo pensamento foi interrompido pelo toque da campainha.
FINAL DA PARTE UM.
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Estava de dia e as luzes da rua ainda estavam ligadas
Por Rec Haddock
Acordei sozinho. Ela tinha dormido comigo, mas isso não era mérito. Ela só dormiu aqui porque não tinha como voltar para a casa da mãe.
Uma fresta na janela deixava um feixe fraco de luz entrar para denunciar a poeira que voava no quarto. A casa realmente estava suja demais. A poeira dançava e dançava, e me perguntei porque o meu nariz não coçava.
Não podia afirmar que a culpa era só dela, mas era principalmente. Ontem, quando cheguei em casa encontrei a cama feita só do lado dela. Apenas a louça que ela usou estava lavada, apenas as roupas dela estendidas.
Ela deve ter ido embora, pensei.
Acabou.
Mas ninguém sabe do futuro, e a esperança é a última que morre porque preferimos viver em um futuro virtual do que nos relacionarmos com o duro presente de ausência. Sei lá.
Choveu no futuro?
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Os pesadelos também se realizam
Por Rec Haddock
INT. ESTÚDIO DE UM PROGRAMA DE AUDITÓRIO. NOITE.
Vemos a gravação do programa Blah Show com David Grupanabolos, um talk show noturno. DAVID, o apresentador, está fantasiado de borboleta, e o CONVIDADO tenta pegá-lo com uma rede de caçar borboletas gigantesca.
DAVID
Normalmente é mais fácil do que isso?
CONVIDADO
Bem mais.
O convidado tropeça em um fio no estúdio e cai, deixando escapar a rede. David a pega, e ajuda o convidado a levantar, apenas para enredá-lo.
CORTA PARA
INT. QUARTO DE RODRIGO. NOITE.
Vemos o programa passando na TV. Ao lado da televisão vemos um grande pôster de um álbum do Johnnie Cash.
Na TV, vemos David arrancar as suas anteninhas de borboletas e mordê-las numa demonstração risível de força.
Vemos RODRIGO, apenas de cueca samba-canção sentado em sua cama - as costas apoiadas na cabeceira - lendo um livro. Sua cama é enorme para um homem solteiro, e ele parece pequeno nela. Em seu criado mudo vemos uma luminária feita de peças de Lego, que lança uma luz fraca demais para que ele leia qualquer coisa sem fazer esforço. Ao lado da luminária, um porta retrato com uma foto de Emma vestida de Pequena Sereia.
DAVID (O.S.)
E acharam que eu tava na pior!
Ouvimos risos da plateia.
Rodrigo fecha o livro e lança um olhar de reprovação divertida para a TV.
Vemos David jogando as anteninhas para o público.
DAVID (CONT’D)
Eu sou muito mais durão do que vocês imaginam.
Ao som de mais risadas da plateia, vemos Rodrigo pegar o controle remoto e desligar a TV.
RODRIGO
OK. Chega por hoje.
Rodrigo apoia o livro no criado mudo e desliga a luminária, deitando-se.
Enquadramos os olhos de Rodrigo se fechando.
Fade out.
RODRIGO (O.S.) (CONT’D)
Boa noite, Emma. Boa noite, pai. Boa noite, mãe. Boa noite, Laura. Amo vocês.
CORTA PARA
INT/EXT. TUBULAÇÃO ESCURA. NOITE.
RODRIGO está engatinhando lentamente por uma tubulação de paredes transparentes, envolta por água escura por todos os lados.
Vemos que o chão da tubulação está um pouco molhado.
Enquadramos Rodrigo cada vez menor, mais distante, sempre engatinhando em nossa direção.
Percebemos um som de gotejamento. A quantidade de água no chão da tubulação parece aumentar aos poucos.
Soa um click e uma luz acende, revelando o rosto nervoso de Rodrigo, já bem próximo. Ele ilumina a parede da tubulação.
Através dela, vemos grandes cardumes de peixes-gato de vidro e basslets, nadando em volta de uma figura humana, até que o foco de luz da lanterna se perde.
Um ângulo invertido nos mostra o rosto mais nervoso de Rodrigo, dentro da tubulação, com a água na altura de suas coxas.
Vemos a figura humana atrás de Rodrigo, dentro d’água, fora do tubo. Ela é uma mulher. Ela bate no tubo e Rodrigo se vira para vê-la. Ela pega um canivete e começa a cortar seu braço, o sangue se espalhando vermelho pela água.
Vemos Rodrigo segurando o próprio braço, com dor.
Desesperado, ele luta para respirar, já com a água na altura do pescoço.
Vemos que a mulher está escrevendo alguma coisa no seu braço, com os cortes de canivete: “Nunca te...
Vemos as mesmas palavras sendo cortadas no braço de Rodrigo. “Nunca te abandonei. Fi...
Vemos a tubulação já completamente cheia d’água e Rodrigo lutando para segurar o ar. A mulher termina de escrever no seu próprio braço: “Nunca te abandonei. Fique sempre alerta.”
Vemos Rodrigo olhando no seu próprio braço a mesma frase escrita, e sangrando. Ele não aguenta e abre a boca para puxar ar, mas puxa água.
CORTA PARA
INT. QUARTO DE RODRIGO. NOITE.
Rodrigo abre a boca e tosse, cuspindo água.
De um outro ângulo, vemos a cama de Rodrigo completamente molhada, com vários peixes-gato de vidro e basslets se debatendo por ar, na cama.
Rodrigo olha o braço, e vê a frase escrita nele, com batom vermelho.
Rodrigo levanta, alerta.
CORTA PARA
INT. QUARTO DE EMMA. NOITE.
RODRIGO abre a porta do quarto de Emma.
Vemos EMMA dormindo tranquilamente em sua cama.
Rodrigo fecha a porta, silenciosamente.
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Síndrome de escritor
Por Rec Haddock
Não iria sobrar nada. Quem o vê deitado de barriga pra cima, os olhos semicerrados, não pode imaginar o mar que ele acalma por dentro. Ele se levanta e escala a pedra sem dificuldades. Aquele é o melhor ponto de Santa Cruz de Cabrália para ver o pôr do sol. Com o mar quebrando intranquilo ali embaixo, sem ninguém à sua espera, ele pode decidir se fica plantado naquele lugar, ou se pula em meio às ondas. Não iria sobrar nada. Deve ser ruim morrer assim. Ele pensa que sabe alguma coisa, mas não sabe porra nenhuma. Ele está perdido, sem pistas novas, nem mesmo se diverte. Ele está brincando consigo mesmo, com essas fugas e reaparições desconexas e, ao mesmo tempo, não. Está levando tudo muito a sério. Como se a sua própria vida estivesse em jogo.
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Não iria sobrar nada. Quem o vê deitado de barriga pra cima, os olhos semicerrados, não pode imaginar o mar que ele acalma por dentro. Ele se levanta e escala a pedra sem dificuldades. Aquele é o melhor ponto de Santa Cruz de Cabrália para ver o pôr do sol. Com o mar quebrando intranquilo ali embaixo, sem ninguém à sua espera, ele pode decidir se fica plantado naquele lugar, ou se pula em meio às ondas. Não iria sobrar nada. Deve ser ruim morrer assim. Ele pensa que sabe alguma coisa, mas não sabe porra nenhuma. Ele está perdido, sem pistas novas, nem mesmo se diverte. Ele está brincando consigo mesmo, com essas fugas e reaparições desconexas e, ao mesmo tempo, não. Está levando tudo muito a sério. Como se a sua própria vida estivesse em jogo.
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Inquiry-Based Learning
Por Rec Haddock
INT.
SALA DE AULA. FIM DA TARDE.
Vemos
RODRIGO de frente para uma grande janela que ocupa toda a extensão
de uma das paredes da sala de aula em que se encontra. Ele olha
apreensivamente para um ponto fixo.
Atrás
dele, no fundo da sala, enquadramos a porta do cômodo. Ao lado dela
vemos uma cartolina pregada ao mural, com os dizeres: “ZONA LIVRE
DE BULLYING!”. A porta da sala abre e vemos LUISA, entrar
apressada.
LUISA
Rodrigo!
Achei que dessa vez ia conseguir chegar antes de você.
RODRIGO
Tava
pensando em você!
Plano
em movimento de Rodrigo indo em direção à Luisa através das
carteiras bagunçadas da sala de aula, sorrindo timidamente. Ele
esbarra em uma cadeira e perde o equilíbrio por um instante, mas não
cai.
Vemos
Luisa fazendo menção de ir até ele, mas desistindo. Rodrigo chega
perto de Luisa. Estende a mão para apertar a dela, enquanto ela
aproxima o rosto do dele, para beijar-lhe a bochecha. A confusão os
diverte, e eles riem timidamente.
RODRIGO
(CONT’D)
Oi,
Luisa. Tudo bem?
Rodrigo
beija a bochecha de Luisa, à guisa de cumprimento.
LUISA
Tudo.
Vamos sentar?
Luisa
conduz Rodrigo até a cadeira do professor e a oferece à Rodrigo,
que senta. Ela sorri.
LUISA
(CONT’D)
Essa
é a mais confortável.
Luisa
começa a mexer em alguns papéis que estão sobre a mesa, procurando
alguma coisa.
RODRIGO
Tem
algum problema com a Emma?
LUISA
É...
Luisa
encontra a folha de papel que buscava.
LUISA
(CONT’D)
Olha
isso, Rodrigo.
Ela
estende a folha de papel a ele. Rodrigo pega a folha de papel, e
olha-a com espanto.
CORTA
PARA
EXT.
CAMPO DE FUTEBOL DA ESCOLA. FIM DA TARDE
Vemos
EMMA jogando um jogo no seu iPad, do seu ponto de vista. Seu dedo
cruza a tela freneticamente.
RODRIGO
(V.O.)
Foi
ela quem desenhou isso?
LUISA
(V.O.)
Foi.
Um
plano em movimento mostra as costas de Emma, jogando no iPad, e vai
se afastando, revelando que ela está sentada, sozinha, no meio do
campo de futebol da escola.
RODRIGO
(V.O.)
É
horrível? O que que isso significa?
LUISA
(V.O.)
Eu
tentei conversar com ela, mas ela não se abre comigo. A psicóloga
da escola diz que ela sente falta da mãe, mas me parece mais do que
isso.
RODRIGO
(V.O.)
E
você acha que eu devo procurar uma psicóloga fora da escola?
LUISA
(V.O.)
Talvez.
Essas coisas são complicadas, né? Tem mais do que isso, na verdade.
Emma
deita em posição fetal, largando o iPad atrás de si. Ela arranca
algumas folhas do solo e as deixa cair, lentamente, no chão.
RODRIGO
(V.O.)
O
que?
LUISA
(V.O.)
Ela
diz pras outras crianças que vê a mãe. Que elas conversam.
RODRIGO
(V.O.)
É
mentira.
LUISA
(V.O.)
Tem
certeza?
RODRIGO
(V.O.)
Tenho.
Se eu não achei ela, a Emma também não achou. Nunca procurei
alguém com tanto afinco na vida.
Emma
arranca mais algumas folhas do chão, e as deixa cair lentamente,
sobre si.
CORTA
PARA
INT.
SALA DE AULA. FIM DA TARDE.
LUISA
está sentada na mesa do professor, e RODRIGO na cadeira do
professor. Eles ficam em silêncio por alguns segundos. Rodrigo
encara o desenho.
LUISA
Mas
talvez ela tenha procurado a Emma. Se ela não teve que procurar a
mãe...
Rodrigo
não responde. Apenas olha para Luisa, confuso.
Vemos
ela pegando uma das mãos dele entre as suas e a acariciando.
LUISA
(CONT’D)
Conversa
com ela numa boa. Talvez ela se abra com você.
RODRIGO
Tá.
‘Brigado. É melhor eu ir, então.
Luisa
solta a mão de Rodrigo.
LUISA
É.
Se
levantam. Ela o leva até a porta da sala e a abre para que ele
passe. Ele para na porta.
LUISA
(CONT’D)
Me
dá notícias, tá?
RODRIGO
A
gente vai se falando.
Se
beijam no rosto.
FADE
OUT.
INT/EXT.
PICAPE DO RODRIGO. NOITE
EMMA
está sentada no banco do carona, cansada. Ela olha a rua com a
cabeça encostada na janela. RODRIGO dirige com os olhos correndo da
estrada à sua frente para a sua filha, ao seu lado.
RODRIGO
Como
foi hoje na escola, amor?
Emma
responde sem olhar para o pai.
EMMA
Normal.
RODRIGO
Normal
bom ou normal ruim?
EMMA
Ok,
eu acho.
Emma
liga o rádio do carro. Está tocando a música “Born to be Wild”.
Rodrigo diminui o volume do rádio.
RODRIGO
Conversa
comigo, amor.
EMMA
Tá.
Você pode me dar um peixe novo?
RODRIGO
Claro.
Emma
olha para o pai, e eles cruzam o olhar. Rodrigo se empolga.
RODRIGO
(CONT’D)
Qual
você quer?
EMMA
Não
sei se eu gosto mais do peixe-gato de vidro, ou um basslet. Qual você
prefere?
Rodrigo
tira um pedaço de grama do cabelo da filha.
RODRIGO
Como
você consegue se sujar tanto, Emma? Pelo amor de deus.
Vamos
ver qual é o que combina mais com o seu aquário quando a gente
chegar em casa, tá?
EMMA
Tá.
Brigada, pai. Te amo.
Rodrigo
faz carinho na cabeça da filha.
RODRIGO
Tem
alguma coisa que você queira me contar, meu amor?
EMMA
Sim!
Eu nasci pra viver na selva! Vou fugir pra morar numa caverna!
Emma
começa a cantar com a música.
EMMA
(CONT’D)
Born
to be wild! Born to be wild!
Rodrigo
desliga a música, e para o carro bruscamente.
Vemos
o carro parado no acostamento.
Enquadramos
Rodrigo olhando fixamente para o rosto da filha, e um ângulo
invertido da filha assustada, olhando para o pai.
RODRIGO
Não
repete isso. Me jura que nunca vai fugir de mim, Emma.
EMMA
Era
só uma brincadeira com a música.
RODRIGO
Me
jura, Emma!
EMMA
Juro!
Desculpa.
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Toda a escuridão da luz ao fim do túnel do tempo
Por Rec Haddock
Rio de Janeiro, 13 de Janeiro de 1983
O João disse que me arruma um emprego na loja de discos do pai dele, mas não acho que isso vá ser o suficiente.
O pior é que como o meu pai tá na UTI, eu só posso ver ele uma hora por dia. To com saudade dele. Queria que você tivesse aqui pra me consolar.
Desculpa não ter te ligado, na semana passada. Foi bom o aniversário da sua mãe? Quantos anos ela fez, mesmo? 45?
Você conseguiu resolver o problema das notas de geografia? Espero que o professor tenha entendido.
Ontem eu fui com o João pra uma boite. A gente foi beber umas pra espairecer. Tinha uma menina linda lá, que ficou me olhando a noite toda. Quando a gente foi embora, ela saiu atrás da gente e me perguntou porque eu não tinha ido atrás dela, j
Eu te amo pra sempre.
Beijos no coração.
Rec Haddock
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Jean-Paul Sartre
Por Rec Haddock
INT. QUARTO DE GABI. NOITE.
GABI está sentada em sua escrivaninha, de costas para OLLEN. Sobre a escrivaninha vemos várias latas de Coca-Cola sem tampa, e dentro de cada uma delas vários lápis de cor muito apontados. Espalhados sobre as paredes vemos vários desenhos feitos com gestos rápidos, pôsteres de bandas de rock alternativas e bandas de jazz, além de pôsteres de filmes B. O teto está coberto de polaroids, e nenhum dos modelos das fotos é repetido. O quarto todo está meticulosamente arrumado, exceto pelo lugar no carpete onde Ollen está sentado. Com as costas apoiadas na cama e um laptop no colo, ele tem a sua volta uma série de livros com anotações em laranja néon espalhados. Ele os lê, e parece procurar algo neles, sem sucesso. Gabi pega um lápis branco e começa a desenhar uma figura invisível na folha de papel branca.
GABI
Você acredita em Deus?
Ollen para de folhear os livros e pensa.
OLLEN
Acho que não. Você acredita?
GABI
Acredito.
A ponta do lápis de Gabi quebra. Ela apóia o lápis sobre o desenho e a testa sobre a palma da mão.
OLLEN
Tudo bem?
GABI
Qual você acha que é o seu propósito? Porque você nasceu se não existe um plano pra você?
OLLEN
Nunca pensei sobre isso.
Gabi pega um apontador e começa a apontar o lápis. Ollen começa a digitar qualquer coisa no laptop.
GABI
Eu queria muito saber o que eu devo fazer pra poder começar...
A ponta do lápis quebra ainda dentro do apontador. Ollen para de digitar, novamente, e olha, curioso, para Gabi lutando com o lápis e o apontador.
GABI (CONT’D)
... merda. Começar a fazer o que eu preciso fazer.
OLLEN
Porque você não começa fazendo o que você gosta de fazer?
GABI
Porque eu não sou boa no que eu gosto de fazer...
A ponta do lápis quebra de novo dentro do apontador.
GABI (CONT’D)
... caralho! Se eu não sou boa no que gosto de fazer, não devo ter vindo pra essa vida pra fazer isso. Deus não ia me criar para fazer mal alguma coisa.
OLLEN
Deus não ia te criar pra fazer mal alguma coisa?
Gabi para de tentar apontar o lápis, e começa a olhar para os seus desenhos na parede.
GABI
É. Pensa. Se você inventa uma bateria de celular, você não pode criar um negócio enorme, que não caiba no celular. Não pode criar um negócio que não forneça energia, ou que bloqueie o sinal do celular, por exemplo. O propósito do que se cria, determina as características do que você cria, entendeu? Porque deus me criaria pra desempenhar mal uma função?
Gabi coloca o lápis branco sem ponta de volta na latinha.
Coloca as pernas dobradas sobre a cadeira e abraça-as.
OLLEN
E se não foi Deus quem criou você? Se foi um anjo que ele designou? Ou se ele te criou sem nenhum propósito? E se não há sentido profundo na sua existência?
GABI
Aí eu vou ser um nada.
OLLEN
Porquê?
GABI
Porque vou ser inútil, né Ollen? Que nem essa merda!
Gabi joga o lápis sem ponta sobre Ollen, que se esquiva.
OLLEN
Mas pra mim parece o contrário. Você fica aí se comparando com lápis e baterias de celular, sem se dar conta que você é muito mais do que isso. O fato de Deus não ter te designado um propósito não significa que você não possa ter um. Se não te foi designado um propósito, cria você mesma um propósito pra si.
Você não percebe, mas é muito boa no que faz, Gabi. Seus desenhos são lindos. Suas fotos são lindas.
GABI
Mas e se a meta que eu criar não for o plano de Deus pra mim?
OLLEN
Você vai acabar chegando nesse plano se você acredita mesmo nele. Mas enquanto isso, experimenta um pouco do livre-arbítrio que seu Deus te deu.
Ollen pega o lápis e o estende para Gabi.
GABI
Espera um pouco, assim. Não se mexe.
Gabi pega sua polaroid e tira uma foto de Ollen oferecendo o lápis. A câmera ejeta a foto, e Gabi a pega e escreve atrás da imagem:
Quem veio antes? A essência ou a existência?
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Não há melhor negócio que a vida. A gente a obtém a troco de nada.
Por Rec Haddock
Eu era feirante em 1995. Toda quarta-feira a gente caía na Constante Ramos, em Copacabana. O lugar era bom. Cheirinho de mar faz peixe vender mais. Não que eu vendesse peixes, mas o peixeiro sempre pagava uma dose pra galera quando vendia bem.
Apesar do horário escroto, é um lugar legal de se trabalhar, a feira. Se conhece bastante gente. Ouve-se muitas histórias.
Tinha um senhor que sempre vinha com o netinho, procurar uma fruta chamada physalis, em todas as barracas da feira. Ele era egípcio, tinha vindo fugido para o Brasil, pelo que me contaram. Depois eu acabei descobrindo que essa fruta é típica de lá. Mas até aquele senhor aparecer, eu nunca tinha ouvido falar dela.
Enfim. Eu já tinha perdido a conta de quantas vezes o senhor tinha aparecido, quando em uma quarta-feira, ele voltou sem o neto. Chovia canivete naquele dia, e o senhor estava vestido com uma capa de chuva cor de areia e usava o guarda-chuva de seu neto, com dois olhinhos de sapo, saindo do topo. O movimento estava ruim demais.
Ele fez seu percurso habitual, degustando o fracasso habitual, e parou, por fim, na minha barraca.
- Seu Rec. Tem physalis aí, hoje? – ele perguntou.
- Tem não, seu Salvator. Desculpa. – a tristeza nos olhos dele foi de cortar o coração.
- Peguei essa chuva pra nada. – ele estava quase chorando, e eu não pude não me compadecer.
- Eu vou achar essa fruta pro senhor, seu Salvator. Pode trazer seu neto, de volta na semana que vem, que eu trago.
Ele sorriu, duvidando, e foi embora.
Nunca trabalhei como trabalhei naquela semana. Liguei pra todos os fornecedores que conhecia, todos os amigos que tinha e acabei encontrando a tal da fruta. Era os olhos da cara, mas eu tinha prometido que ia ter na semana seguinte, então comprei 2 dúzias.
Quando o senhor chegou na quarta-feira, com o neto, eu já tinha o saco recheado com as frutas embaixo da bancada. Pronto para ele.
Quando ele me perguntou se eu tinha conseguido, eu tirei o saco debaixo da mesa e dei para ele. Nunca vi um menino tão empolgado quanto aquele neto do seu Salvator. Ele perguntou o preço, e eu disse que eram 180 reais, o preço de custo. O menino murchou. Sério. Eu vi o menino murchando de tristeza, na minha frente.
- Com esse dinheiro dá pra comprar todos os gibis que eu tenho, nonno! Dá pra comprar 180 kinder ovos. – o menino olhava pro chão, envergonhado, enquanto falava.
- Ei. – o senhor respondeu – vou te contar uma história. Quando eu era pequeno, eu queria muito um camelo. A gente passeava no deserto, meu pai e eu, e um dia vimos um vendedor de camelos. Eu pedi o camelo pro meu pai, e ele foi perguntar o preço. 50 dólares, o vendedor respondeu. E meu pai agradeceu e disse que estava muito caro.
- Um ano depois – continuou o senhor -, passeávamos pelo mesmo ponto quando avistamos novamente o vendedor de camelos. Pedi, novamente para o meu pai, e ele foi novamente perguntar o preço. 250 dólares, respondeu o vendedor. Imediatamente, meu pai sacou a carteira e comprou o animal para mim.
- Mas ele era caro quando custava 50 dólares! – o netinho disse – Porque seu pai comprou ele quando custava 250?
- Eu perguntei a mesma coisa ao meu pai. Ele disse que antes não tinha 50 dólares. Depois tinha bem mais do que 250. O preço das coisas não é absoluto. Elas valem o valor que você dá para elas e o quanto você quer pagar.
Ele me deu a pequena fortuna e deu o saco de frutas para o neto. E, de repente, eu não podia aceitar aquele dinheiro todo, mesmo que me desse prejuízo, e os chamei de volta. Devolvi o dinheiro, e disse que a história tinha pago as frutas.
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A minha luz interna está quebrada, mas ainda funciono.
Por Rec Haddock
São 3:42 da manhã em um bar da rua 23. Eu acabei de ouvir a história toda. Não era obrigado, mas ainda assim achava que era meu dever como barista. Todo mundo já foi embora daqui, até os outros funcionários – que já estavam acostumados a me deixar com esses caras. Eu fecharia o bar, quando fosse embora.
Alô? Você ainda está aí?
Ok.
To com ele desmaiado, aqui. Vou colocar ele em um táxi. Ele tinha o endereço na carteira.
Ele ia operar um cara por até 8 horas. Transplante de coração, mas o cara morreu por complicações com 20 minutos de trabalhos, e ele se vestiu de civil.
Quando chegou em casa, a mulher estava com outro. Não viu ele.
O doutor não fez cena. Simplesmente pegou as coisas que ele tinha deixado no chão quando chegou em casa e deu meia volta. Diz ele que andou pela ilha, mas ele chegou bem cedo no bar. Enfim. Tá frio aí? Aqui tá um vento gelado pra cacete. Nos ossos.
Deve ter visto vários casais felizes, o coitado.
Já mandei. To andando pra casa. Por quê?
Puta merda. Tem razão. Bom. Se ela desconfiar que ele sabe, talvez pare de chifrar ele. Ou talvez ele tome uma atitude, quem sabe?
Quando cansou de andar, ele entrou na Grand Central e sentou num banco lá. Ficou uma meia hora e um policial perguntou o que ele estava fazendo, que aquilo era vagabundagem. O cara é um médico.
Pois é. Mas se eu me visto de civil, eu pareço fazer o que faço. Tem essas pessoas que não são o que fazem, ou não fazem o que são. Não sei bem. De qualquer forma, elas meio que não são ninguém.
Esse cara não. Esse cara é médico.
De qualquer forma, quando ele foi expulso de lá, percebeu que tava com fome, e entrou numa CVS. Achou uma máquina de salgadinhos. Tinha um papel colado no painel. Sabe o que dizia?
É. Acho que esse é um bom título pra história do cara. Mas só dá pra usar se ele superar, acredito. Não é o tipo de título que funciona postumamente.
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O chinelo, o cabo de vassoura e a régua
Por Rec Haddock
Janaína – Chegou o boletim, filho?
Fábio – Não, mãe. Teve um problema com a impressora da escola. Vão consertar e talvez fique pronto amanhã.
Janaína – A sua mochila ainda está com aquele rasgadinho?
Fábio – tá sim.
Janaína – Então me empresta ela, rapidinho, pra eu costurar.
Fábio – Claro. Deixa só eu ir ao banheiro.
Janaína – Com a mochila? Deixa a mochila aqui e vai ao banheiro.
Fábio – Ih, mãe. Que saco isso, hein! Tem que ser tudo do seu jeito, agora?
Janaína – Se eu não tivesse achado estranho o boletim ainda não ter vindo, neste momento, eu teria achado.
Fábio – Mãe. Não veio o boletim. Eu to te falando.
Janaína – Então abre a mochila aqui na minha frente.
Fábio Abre a mochila e a fecha rapidamente.
Janaína - Abre e deixa aberta, que eu vou achar esse maldito boletim. Agora senta.
Fábio senta e sua mãe começa a mexer na mochila do filho, jogando pastas, cadernos e livros pra todos os lados, sem sucesso. Enquanto isso, fala.
Janaína - Eu estava achando muito estranha essa atitude de não trazer mais as provas pra casa, pra eu ver. Estava ficando preocupada, achando que você estava tirando notas ruins. Depois comecei a me acostumar, sabe, filho? Achei que você simplesmente tinha esquecido que eu queria ver as suas notas. E eu fui procurar as provas no seu quarto hoje de manhã, quando você estava na escola, porque eu me preocupo com você.
Fábio – Eu esqueci mesmo.
Janaína – Só que é muito cômodo esquecer quando as notas estão a tragédia que estão, né?
Fábio – Tragédia, mãe? Eu só tirei uma nota abaixo de sete.
Janaína – E nenhuma acima de nove! Nenhuma! É assim que você se esforça, filho?
Ela acha o boletim na mochila.
Janaína - É assim que você recompensa o esforço dos seus pais pra te dar uma boa educação?
Fábio – Mas eu estudo, mãe.
Janaína – Não o suficiente.
Fábio – Deixa eu falar? Tá? Deixa eu falar? Mas eu me esforço pra caramba. Eu saí do futebol, tá, pra estudar mais. Eu não vou à casa dos meus amigos pra estudar mais tá? Eu não entro no computador durante a semana pra estudar mais. O que mais você quer de mim?
Janaína – Ô, meu filhinho querido, presta atenção no que mamãe vai te dizer, tá? Em primeiro lugar eu quero que você pare de mentir pra mim, que nem eu nem seu pai te damos esse exemplo. Tá? Em segundo lugar, eu quero que você abaixe a sua bola, porque a mãe aqui sou eu. E por último, eu quero que você coloque na sua cabeça, que na hora do vestibular, o que importa não é quem estudou mais, nem quem se esforçou mais, nem quem abriu mão de mais coisa que passa. Quem passa é quem tem a nota mais alta.
Fábio – E quem disse que eu quero fazer vestibular?
Janaína – O quê? Que ideia é essa agora?
Fábio – Eu quero ser artista. Vou virar ator!
Janaína – Ai, meu Deus do céu! É agora que eu vou pro seu lado, mortinha de Jesus!
Fábio – Ah mãe, para de drama.
Janaína – Que drama o quê? Drama é o que você vai ver quando o seu pai chegar. Ele vai colocar juízo na sua cabeça à base de chinelada.
Fábio – Tudo bem! Eu uso como memória sensorial!
Janaína – Então eu vou te dar uns bons sentimentos pra você lembrar depois, moleque!
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Afogada
Por Rec Haddock
O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. Nós, homens, sabemos bem que somos nós o sexo frágil. Por todo o choro que contivemos não ficamos mais fortes, nem mais duros. Apenas mais ressabiados.
O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. Não pretendia chorar. Se questionou se havia alguém ali, ou se podia chorar abertamente. Eu estava ali, e podia ver a sua dor, mas ninguém nunca vê o Rec.
O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. As flores que trouxera, percebera, não eram mais jovens, como ela. Algumas estavam murchas, e todas pareciam mortas, mesmo as mais vivas delas.
O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. E por perto, percebeu, as pedras eram lisas e cinzas, como o tempo. Mais eternas do que flores, e mais bonitas do que nós. As pedras só machucam se atiradas por homens.
O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. Apenas para finalmente perceber que ela estava presa e que não havia nada que se pudesse fazer por ela. Colocou pedras sobre ela, e, sem que se notasse, o ajudei.
O espaço de perdê-la novamente o fez seguir em frente. Girou a chave do carro, e abandonou o que havia passado. Sem remorsos, lembrou o que ela havia lhe dito: “Sofrimento se paga com sofrimento, meu amor. Pagá-lo com amor é sadismo”.
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Audifax Bailaonéia Graciosa Rodela
Por Rec Haddock
O nome dele era uma dessas hipérboles fonéticas que se veem por aí. Eu não sei bem o que ele pretendia com aquele nome tão agressivo aos sentidos dos outros, mas o homem ostentava aquele nome como Musashi sustentou a sua espada.
O rosto dele era lindo. Ele era todo muito bonito, na verdade, e as outras mulheres babavam por ele, mas ele era meu. Não que eu não sentisse ciúmes. Não que eu não chorasse no chão do box uma vez ou outra, mas ele era meu.
A gente foi pescar num domingo. A gente pescava às vezes, era melhor que ver TV. Não fazer nada era melhor que ver TV, principalmente aos domingos, então a gente ia pescar que é mais ou menos a mesma coisa que ir não fazer nada, enfim.
Eu já tinha ido pescar, mas nunca tinha pescado, de fato, peixe nenhum. A gente tava no meio de um lago gigantesco, cheinho de tilápias. De repente, gente, o tempo virou que virou e começou um temporal. Ele tirou a camisa e eu fiquei com vontade de largar a vara e agarrar aquele macho, mas não larguei, porque na hora que começou a relampejar e trovejar a vara começou a tremer, e têm coisas que são importantes e, naquele instante, tudo o que importava eram a vara, a linha, o anzol, a isca e o peixe.
Eu preciso abrir um parêntese pra falar do barco que a gente tava. Não era um iate nem coisa do tipo. Tava mais pra bote. Era pequeno, feio, velho e a madeira parecia meio podre em alguns lugares, mas era dele, e ele amava o barco. Tinha o nome da mãe dele, vê se pode. Se um filho, meu, me homenageasse nomeando um barco daquele com o meu nome eu deserdava o desgraçado, mas a velha gostava, então estava tudo certo.
De volta à história, ele tava sem camisa, desesperado, e eu focada na vara. Ele pegou os remos, os remos, e começou a remar pra longe, e eu falei pra ele parar. Eu precisava daquele peixe. Nunca tinha pescado nada. Enfim.
Confesso que talvez tenha ficado envolta demais com a minha situação para perceber o perigo em que a gente se encontrava. Ele estava tentando salvar a minha vida. A vida dele também, e a vida de Marla, o barco, e eu ficava pensando no quanto o homem é um ser egoísta, que não pensa nas necessidades femininas de deixar a gente atingir os nossos próprios objetivos. É claro que a gente brigou pra caralho na hora.
Não vou dizer que eu tinha toda a razão, mas também não estava totalmente desprovida de uma partezinha que fosse dela. Enfim.
Eu pesquei o peixe, afinal. O peixe se debatia, lindo, no barco, eu estava satisfeita, meu garanhão estava satisfeito. Ele remava super rápido, a gente estava quase na beira do lago quando o peixe caiu no lago, de volta.
Eu chorei, gente. Tenho que admitir. Chorei bastante.
E ele foi um herói. Fez a coisa mais estúpida e mais romântica que já vi alguém fazer. Se jogou na água pra pegar o peixe de volta. Voltou com um peixe entre os dentes.
Mas não era o meu peixe. Mas você sabe que foi até poético? Aquele peixe nunca ia ser feliz comigo...
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Diário de bordo ou moeda debaixo da língua
Por Rec Haddock
24/11
Chegamos hoje em Salvador. o voo foi tranquilo. as nuvens são tão diferentes vistas de cima! Parecem um TAPETE DE ALGODÃO DOCE! retinhas retinhas super branquinhas! mamãe falou que a gente ia alugar um carro quando chegar aqui. mas a gente pegou um tx, quando chegou no aeroporto pro hotel. O taxista era engraçado. falava super devagar e rápido ao mesmo tempo. Sei que é estranho mas ñ sei explicar de outro jeito. a aeromoça também era legal. ela ensinou a colocar o cinto, mas eu ñ prestei atenção, pq é claro que eu sei colocar um cinto mas cinto de avião é diferente e eu não sabia botar e mamãe teve q me ajudar. fiquei com vergonha até. mas não deixei niguém perceber. amanhã a gente vai visitar o vô Pilius. tá difícil de aguentar pra ver ele. Quero conhecer ele logo.
25/11
Alugamos o carro hoje finaumente. é bem pequenininho mas cabe nós 3. o joão fica chorando o tempo todo. UM SACO. ele não para nem quando a mamãe manda. nem quando a mamãe dá bala p/ ele!!! o pior é q o carro alugado ñ tem ar condicionado nem cadeirinha de bebe pro joão então eu tenho que ficar segurando ele no meu colo e é MUITO QUENTE!! mamãe disse que a gente tá na estrada faz 2 oras mas parece cem. e ela disse que vai ficar mas umas 5 ORAS!!!! MUITO TEMPO!!! vai parecer tipo 50! a gente tá almoçando agora. a comida é mt estranha. lapeoca é o nome do negócio, axo. mt estranho.
26/11
A gente viu o vovô ontem. ele tava muito lindo de terno! tinha uma coroa em cima dele e ele não parava de sorrir. a mamãe ficava chorando e falando o omem pra sorri. o omem pra sorri. o omem pra sorri. ele tava dormindo e ñ podia falar com a gente. a barba dele é tão branca. joão perguntou se ele era o papai noel muito burro. sério. papai noel sempre se veste de vermelho. o terno do vô Pilius era preto. o que eu achei mas legal era os algodãos dentros dos narises do vovô, e dentros das orelhas. muito estilo. tentei fazer igual com papel ijienico mas mamãe me chamou e eu ñ ouvi e ela percebeu e me deu MAIOR BRONCA! Ela quase me bateu até. Achei orrível. a gente vai voltar pra casa amanhã. perguntei pra mamãe se a gente ia ver o vô Pilius de novo. Ela respondeu que um dia.
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Imparcialidade jornalística
Por Rec Haddock
INT. ESTUDIO DE TV. NOITE.
GENI, a âncora de um telejornal, está sentada sozinha na bancada. Ela veste um tailleur risca de giz. Sobre a bancada, uma série de papéis organizados, e uma caneta tinteiro vermelha. Em primeiro plano, os bastidores do estúdio. Dois câmera mans operando suas câmeras, e dois produtores, um homem e uma mulher, acompanham o que acontece no programa.
GENI
Sobre essa curiosa corrida de pinguins.
Geni leva a mão ao ouvido rapidamente, e passa de imediato da atitude descontraída em que estava, para uma atitude de alerta, lendo no teleprompter.
GENI (CONT’D)
Temos informações de uma notícia de última hora. Houve uma explosão em um prédio comercial na Gávea. Uma nuvem de fumaça tóxica envolveu dois quarteirões da Rua Marquês de São Vicente, criando pânico entre os pedestres que estavam no local, no momento da explosão. Pede-se à população que, por favor, evite a área.
Devido às condições do local, ainda não há informações de mortos ou feridos, nem de qual, exatamente, foi o prédio onde ocorreu a explosão.
A explosão assustou os moradores da região. Eles reclamam da demora dos bombeiros, que levaram cerca de 20 minutos para chegar à área.
A produtora começa a servir um copo com água e açúcar.
GENI (CONT’D)
O Delegado da 15 DP nos informou por telefone que nenhuma linha de investigação será descartada, a princípio, e que atentado é uma das hipóteses a serem avaliadas.
Nosso repórter, Wandrei Júnior, está sobrevoando a área com mais informações. Wandrei.
Cadê meu celular? Cadê? Traz meu celular agora, Fernando! Agora! Meu marido trabalha lá, no Trade Center.
O Produtor começa a mexer em uma bolsa, pendurada em um tripé de refletor. A PRODUTORA entra no quadro com um copo de água com açúcar, oferecendo-o a Geni.
GENI (CONT’D)
Tira essa merda da minha frente! Não preciso disso pra ficar calma.
Um PRODUTOR acha o celular na bolsa e o leva para Geni. A Produtora deixa o copo d’água sobre a bancada. Geni digita o telefone de seu marido, e leva-o ao seu ouvido.
GENI (CONT’D)
Porque essa merda não liga? O celular não pega aqui? Ai. Pegou.
Silêncio. Ela desliga e liga de novo.
GENI (CONT’D)
Porque ele não atende? Será que ele tá sem o celular?
Segura o link! Manda o Wandrei enrolar, pelo amor de Deus! Meu marido está lá, eu não vou conseguir me controlar.
Obrigada pelas informações, Wandrei. Me diz, por favor, se é possível identificar daí qual foi o prédio que explodiu.
Tempo
GENI (CONT’D)
Mas ninguém tem essa informação? Nem os bombeiros? E ainda nenhuma informação sobre vítimas, deste que pode ter sido um atentado a um prédio na Gávea?
E o comandante não tem vergonha de gerir uma equipe ineficiente deste jeito? Isso é um absurdo! É preciso ser apurado porque se levou vinte minutos para atender a um chamado destas proporções.
Estamos às beiras da Copa do Mundo e o Corpo de Bombeiros não está a postos para este tipo de emergência?
Já fazem vinte e cinco minutos desde o momento da explosão, Wandrei. Alguma informação nova?
Geni pega o celular e começa a ligar para o marido, novamente.
GENI (CONT’D)
Fernando. Pega meu celular. Fica ligando até ele atender.
Geni entrega o celular ao Produtor, que fica tentando ligar.
GENI (CONT’D)
Então é imperativo que as pessoas não busquem ir ao local. A fumaça é realmente tóxica. Todos nos lembramos dos atentados de onze de Setembro. Muitos que não morreram nas explosões, nas torres gêmeas, morreram por inalar toda aquela fumaça.
Nossa equipe está tentando colocar o comandante dos bombeiros no ar por telefone, para explicar porque já se passou tanto tempo desde o incidente e ainda não temos nenhuma informação oficial das autoridades.
Como ele espera que fiquem os familiares das pessoas que trabalham na área? Esse homem não tem mãe?
O Produtor consegue completar a ligação e faz sinais com as mãos indicando para Geni que o seu marido está bem, ao telefone.
GENI (CONT’D)
Bom. Infelizmente o nosso tempo acabou. Obrigada, Wandrei. Durante o resto de nossa programação, exibiremos flashes com as atualizações sobre o caso. Fiquem agora com a novela “Escolhas Trocadas”. Boa Noite.
Bom. Infelizmente o nosso tempo acabou. Obrigada, Wandrei. Durante o resto de nossa programação, exibiremos flashes com as atualizações sobre o caso. Fiquem agora com a novela “Escolhas Trocadas”. Boa Noite.
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A linha horizontal ao fim da vertical
Por Rec Haddock
Não tinha nada pra fazer. Na verdade, até tinha, mas tudo o que tinha pra fazer não era legal de fazer, então não tinha nada pra fazer.
Eu podia jogar alguma coisa no PS4, de novo, supunha, mas já tinha jogado tudo tantas vezes, que já tinha perdido a graça. Não tinha desafio nenhum em jogo nenhum.
Livros estavam fora de questão. Boas histórias eram as histórias que eu fazia acontecer, não as que os outros tinham inventado. Não tinha filmes nacionais que prestassem em lugar nenhum e eu não tava a fim de ler legendas, hoje. TV, sempre está fora de questão.
Eu sabia do que precisava. Precisava de ação.
Estava frio, mas saí de casa sem casaco. Subi no telhado do meu prédio e umas telhas quebraram debaixo dos meus pés, e eu sabia que ia ouvir do meu pai pra caralho por causa daquilo, mas não me importava. Quando meu pai usava sua autoridade de síndico e sua autoridade de pai ao mesmo tempo, era ridículo. Perdia toda a autoridade – não que tivesse alguma quando usasse só uma das duas. Meu pai é fraco.
Pisei na calha do telhado. 15 andares abaixo, as pessoas eram formigas. Cada uma cumprindo sua função no imenso formigueiro que a gente chama de São Paulo.
Às vezes fico pensando como chegamos a esse ponto. Todas as coisas grandiosas que a humanidade construiu, todas as coisas impossíveis realizadas, e uma massa gigantesca de pessoas pronta pra viver sua vida do início ao fim sem fazer nada pelo que valha a pena viver. Imagino que nem todos possam construir monumentos pra si. Não há espaço. Mas alguns monumentos têm que ser construídos.
Minhas articulações doíam de frio e tensão.
Precisava fazer alguma coisa nova, então decidi descer. E quando desci, as pessoas pareciam maiores e maiores, e eu menor e menor, até que ao chegar embaixo, subi.
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E qual é a razão, então?
Por Rec Haddock
Aquela maldita pergunta ficava martelando na minha cabeça. Ela não estava anotada no meu caderno, e eu não tinha uma resposta imediata pra ela. Eu normalmente tenho uma resposta imediata pra tudo.
É fato que o armazenamento da memória e das conquistas da humanidade se tornou muito mais difícil com tanta tecnologia à disposição. O armazenamento virtual não é nada além de desinformação, com tanto conteúdo armazenado simultaneamente.
Com o tempo absolutamente qualquer coisa se perde. Se a causa mortis não for um vírus de computador, pode ser uma bomba atômica, mas pode-se ter certeza de que a memória é a mais perecível das formas de imortalidade, e ela é a única que a gente verdadeiramente tem.
Tendo em vista que não há legado a salvo, eu realmente não faço ideia de qual possa ser a resposta. Acho que me mantenho de pé e sigo em frente, exclusivamente por inércia. Se realmente se quer, se dá um jeito de continuar. Se não se quer, realmente, dá-se uma desculpa.
Ou, talvez, eu seja, simplesmente, covarde demais para aceitar a inexorabilidade do meu destino vazio, e parar para encará-lo. Então eu sigo.
Talvez não haja razão.
Mas nem tudo precisa ser racional.
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Crença e destino
Por Rec Haddock
Tudo estava armado: incontáveis velas espalhadas pela sala, pétalas de rosas jogadas sobre todo lugar, um lindo jantar disposto sobre a mesa da frente. Reconhece a cena, leitor? É claro que sim. Não é difícil reconhecer. Ashara também reconheceu-a - e perdeu o fôlego - quando entrou no recinto, todos nós percebemos.
Não foi um momento íntimo, o deste pedido. Não mesmo. A sala em que nos encontrávamos era um daqueles auditórios gigantescos nos formatos de um teatro grego, com andares e andares de carteiras para os alunos – onde normalmente tínhamos aula de Álgebra II - e, diferente de um dia de aula normal, ela estava lotada de alunos.
Eles já moravam juntos, é importante frisar. E Will odiava a palavra casamento. Não compreendia como as pessoas podiam recitar palavras escritas por outras pessoas nas cerimônias de casamento e acreditar que isso faria deles um casal mais sério, ou mais maduro.
Para a sociedade eram casados, de toda forma. Mas não para Ashara. Ela ansiava por um pedido de casamento desde os seus seis anos de idade. Se ressentia profundamente de nunca ter sido pedida em casamento e se ressentia mais ainda de nunca ter sido pedida em casamento por Will.
Mas Will amava Ashara e não podia permitir que ela carregasse um ressentimento tão grande por sua culpa. E Will amava poder reafirmar suas convicções em voz alta e vivê-las na medida em que se gabava delas. E Will queria Ashara e suas convicções, e todos esperavam pelo dia em que Will iria (ter que) escolher.
Will anunciou a surpresa a todos, menos à Ashara, e o impensável ocorreu: Ashara não ficou sabendo com antecedência. Na verdade nenhum de nós ficou sabendo ao certo o que iria acontecer, pois tudo o que Will disse foi que fôssemos à sala 3 no dia 27 de Setembro com uma vela cada um. Quando chegamos, a sala já estava cheia de pétalas, e o jantar já estava na mesa, e Will já estava de terno e suando feito um porco.
Acendemos nossas velas e apagamos a luz, e, de repente, o auditório era o universo, e nós, os amigos do casal, éramos as estrelas que iam iluminar o momento.
Ashara entrou, perdeu o fôlego, e inspirou profundamente. Começou a rir e a chorar, ao mesmo tempo, e muitos de nós fazíamos a mesma coisa. Eu, particularmente, não fazia nem uma, nem outra. Mas devo admitir que chorei um pouquinho, e ri baixinho. E quando Ashara alcançou Will, ele começou seu discurso:
“Asha, meu amor. Eu estou aqui ajoelhado, na frente dessa multidão para te decepcionar um pouquinho. Eu sei o quanto você preza demonstrações públicas de afeto, e o quanto você quer ser pedida em casamento, mas eu só posso fazer uma das duas coisas.”
Asha parou de rir.
“Existem muitas formas de se demonstrar amor, mas só uma delas realmente é sincera. Tudo o que perdemos nessa vida pode ser reconquistado, à exceção de uma coisa: o Tempo. Não posso gastar com outra coisa o tempo que já dispus a você.”
Asha parou de chorar também.
“E o tempo vem e vai com o tempo. O que tenho agora, por exemplo, estou escolhendo gastar com você. E pretendo oferecer mais tempo da minha vida, ainda, a você. Muito mais. Tempo para esgotar o meu tempo, desde que você escolha fazer o mesmo por mim.”
Ela abriu a boca para falar. Mas não falou. Will esperou e esperou. Todos paramos de respirar por um momento, e quando Will recomeçou, parecia um pedido de desculpas.
“Outros diriam apenas: ‘você quer casar comigo?’, mas eu não quero casar com você. Existem muitas pessoas que casam e não se doam umas às outras. Eu não quero isso pra gente. Existem muitas pessoas que moram juntas, mas nunca estão presentes no mesmo cômodo, mesmo que por vezes se encontrem juntas fisicamente. Eu não quero isso pra gente. Eu quero te dar o meu tempo, você entende? E quero que você me dê o seu. Você também quer isso?”
Nada. De repente, parecia que Asha iria embora sem dizer ao menos uma palavra.
“Asha. Se você quer casar comigo, você precisa entender que eu não posso abrir mão de quem eu sou. Ou você aceita esse pedido ou me faz virar alguém que não sou para casar com você.”
E Asha finalmente falou.
“OK. Mas você vai ter que me dar muito tempo.”
Quem ainda não chorara, chorou.
“Então, amor. Você aceita casar comigo?”
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Impostos
Por Rec Haddock
Um Batedor de carteiras virou deputado federal. Passou a bater em alunos, doentes, idosos, professores, médicos e aposentados. Sem critério, acabou condenado. Não sabia que quem rouba não pode ser um pouco ganancioso.
Uma Vidente virou oficial de justiça. Passou a notificar marginal, marido, mãe, neto e deputado federal. Sem abrir os olhos virou instrumento de outros. Não sabia que não foram os deuses que nos deram as leis, mas meros mortais.
A cega oficial de justiça foi atrás do quase honesto deputado. Quando chegou perto o suficiente dele para lhe estender a ordem de prisão, as ruas se viraram contra ela, mudaram de ares e sentidos. Tudo parecia distante, e o deputado no horizonte da impunidade que só se compra com corrupção.
A cega andou, andou e chegou até o deputado novamente, e novamente as avenidas foram barradas, e as ruas mudaram de sentido. A oficial andava na contramão do destino, atrás da sua justiça, quando um deputado federal que ainda não tinha se elegido bateu sua carteira.
Surpreendentemente, policiais e órgãos da mídia descomprometida surgiram de pronto. O sujeito fichado e autuado em cadeia nacional de transmissão e enclausuramento. Surpresa, a cega agradeceu ao governo pela pronta ação. Sua carteira não foi devolvida no entanto.
O que a vidente não viu, é que o governo não aceita concorrência.
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Sabe Quando Só se Percebe a Si Mesmo de Vinte
em Vinte Anos?
Por Rec Haddock
Tenho um amigo que é artista. Ele é mais velho que qualquer pessoa que você conheça. Ele costuma dizer que viu a luz antes de existir horizonte, e que quando atravessou o horizonte pela primeira vez, a luz ainda não existia. “Vi a Criação”, ele diz “e vi o que ainda está por ser criado”.
Eu, Rec Haddock, vi que ele é um filho da puta pretensioso e, ainda assim, não consigo resistir a ele. Sempre que tomamos uma limonada rosa juntos, eu fecho os olhos e ouço.
“O problema é que acham que Arte é expressão. Os Egípcios sabiam melhor. Existiam padrões que deviam ser respeitados e ponto. O bom artista era o que copiava a tradição com perfeição. Não havia escolha, e se não há escolha, não há expressão. Os egípcios eram menos artistas?”
Não acredito que fossem...
“Agora. Caravaggio, Gainsborough. Esses loucos que abdicaram por completo da tradição pavimentaram o caminho da individualidade na Arte. Com a Revolução Industrial veio a possibilidade de pintar-se o tema que se quisesse. Pois bem. O que se ganhou com isso?”
Quadrinhos de lulas e japonesas transando, suponho.
“Pela primeira vez nós artistas não pintávamos sob encomenda. Tínhamos que pintar o que quiséssemos, da forma que quiséssemos, no estilo que nos fosse apropriado. De certo modo, este afastamento das vontades de público e de artistas causou o maior sofrimento da profissão nos dias de hoje: ou bem o artista produz o que quer e corre o risco de morrer de fome por não conseguir vender as suas obras; ou bem faz concessões ao gosto do cliente e perde o respeito próprio. “Muitos caíram na armadilha de acreditar que eram gênios porque não vendiam suas obras, quando na verdade não vendiam suas obras porque eram medíocres. Esta ‘arte de expressão’ que nos rege, hoje, premia a individualidade do artista original. Existe, no entanto, uma corja que se diz artista, se pretende original, e nem ao menos compreende a própria individualidade.”
Se eu produzir, então, uma cópia fiel da Mona Lisa, serei um grande artista?
“Depende do que é a Arte para você, Rec. Se para você Arte é o Novo, não. Se é o Belo, sim. A Arte não é uma só. O importante é que você entenda que o único que pode determinar o que é Arte e o que não é arte, sou eu, porque eu sou a arte. Eu farei com que alguns sejam lembrados e outros não. Eu farei com que obras fiquem e obras sumam. Eu farei e destruirei reputações. Sou incansável. Interminável. Indissolúvel. Incompreensível. Inexorável.”
Como sempre, tentei compreender. Quando abri os olhos, ele não estava mais lá. Não tinha reparado o quão rápido o Tempo havia passado.
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Modelo de formatação
Por Rec Haddock
Eu me senti muito mal avaliando as suas respostas. Todos vocês, sem exceção, falaram do quanto a Arte é importante. Alguns falaram que o mundo não existiria sem Arte, outros disseram que é impossível imaginar um mundo sem Arte. Enfim.
Sei que vocês não se deparam frequentemente com esse tipo de pergunta. “Como seria um mundo sem Arte?” é subjetivo demais, pessoal demais. A dúvida que fica é: se é tão subjetivo, se é tão pessoal, porque todos vocês – quase cem pessoas – responderam a mesma coisa? Vocês todos são iguais? São todos a mesma pessoa, com a mesma subjetividade, e por isso responderam a mesma coisa?
Não acredito que sejam. Dou aula para vocês toda semana, e vejo pessoas diferentes, que discordam quase o tempo todo entre si, e, mais ainda, discordam de si mesmos em intervalos de horas. Acho que isso pode ter acontecido por dois motivos.
O primeiro, que é muito grave, é que vocês responderam a resposta que achavam que eu queria ler. Afinal de contas, se vocês escreverem para o professor de História da Arte que o mundo sem Arte é impossível, porque a Arte é a coisa mais importante do mundo ele não tem como te dar errado, certo? Errado. Se a pergunta era subjetiva e pessoal, eu queria respostas subjetivas e pessoais. A sua resposta, e não a resposta de um gabarito que vocês acham que existe, mas, que fique bem claro, não existe.
O segundo, que é ainda mais grave, é que vocês responderam a resposta que achavam que eu queria ler, sem sequer perceber que estavam fazendo isso. Quantas vezes eu vou ter que dizer que não educo vocês para o vestibular? A vida não é como a escola, que tem sempre uma resposta certa! Pelo amor de Deus! Se livrem disso. Dois mais dois só é sempre quatro na matemática!
Noventa e oito por cento das respostas de vocês não só responderam a mesma coisa, como responderam do mesmo jeito: não teria nada, não teria cor, não teria projeto de nada, não teria etc e tal. Pois bem. A resposta pra determinadas perguntas vem de profundas reflexões internas. Temos ou não temos alguma coisa é o suficiente para explicar o funcionamento de um mundo? Me arrisco a dizer que “somos isso” ou “queremos aquilo” ou ainda “tememos isto e por isso agimos assim” ainda não são o suficiente.
Dessa forma, cheguei à conclusão de que não só vocês buscam a resposta certa, como se dão por satisfeitos com qualquer coisa que pareça com ela. Vocês vão crescer para se tornar pessoas extremamente manipuláveis desse jeito. A pergunta era “Como seria um mundo sem Arte?” e não “O que não teríamos num mundo sem Arte?”. Quase todos responderam a segunda, e não a primeira.
Por último, vocês têm que entender o que diabos é arte para vocês. Eu li que amor é arte, o mar é arte, a mãe natureza é arte, sungas são arte. Se vocês me dizem que tudo isso é Arte, ótimo. Agora me digam porque essas coisas são obras de arte. Qual é a característica que transforma essas coisas que vocês disseram que é Arte, em Arte? Se não existir um elemento que faça com que aquilo vire arte para você, uma característica qualquer, toda e qualquer coisa poderá ser Arte.
E assim a Arte não existe.
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A cama da bamba
Por Rec Haddock
A mulata não sambava. A comunidade toda perguntava porquê ela não sambava, mas ela não dava a resposta pra ninguém. Só sorria como quem sabe de alguma coisa que os outros não sabem.
Até mesmo dona Zefa, filha do lendário sambista Jão Jorge, dona de uma fama de mulher sábia da velha guarda, não arrancava a resposta da mulata. De tanto tentar desistiu. Dizia: “Deixa essa mulata quieta. Ela não precisa sambar com os pés. Ela leva o samba no sorriso”.
E ela levava mesmo. Levava o samba na malandragem carioca, no jeitinho brasileiro, na ginga tupiniquim que não tem gringo nenhum que replique. E quando ela passava com aquela malemolência, ah, mas não tinha paranauê que não ficasse de pé.
“Mulher boa é que nem novela boa. Tem sempre um mistério pra resolver no último capítulo”, seu Túlio do açougue dizia. E completava: “Mas não tem ninguém que não queira resolver essa mulata antes da novela terminar, não é mesmo?” Seu Túlio tentou, mas a mulata não deu bola. A mulata não dava bola pra homem nenhum.
Todo carnaval, ela botava uma máscara, ia pra Avenida, e ficava só olhando. Só olhando. Não sambava, não falava, não cantava. Só procurava. Ninguém sabe ao certo o que aquela mulher procurava. Nem a própria mulata sabia o que a própria mulata queria. Mas ela procurava com afinco.
Um dia o destino do mistério encontrou o destino dela. Um homem sem máscara, nem fantasia, nem bandeira no carnaval. Sem saber como, foram parar na casa dela. Ele nem falava português, mas ela disse pra ele mesmo assim.
O samba dela, ela só entregava com o coração.
Naquela noite a folia foi eterna.
Naquela noite a mulata sambou. E como sambou.
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Casamento Matuto
Igreja. Dia. Padre está no Altar, esperando. Noiva anda pela nave da Igreja, até chegar ao altar, quando percebe que o noivo não está lá. Começa a chorar copiosamente.
Noiva – Cadê o Noivo?
Padre – Não sei, minha filha. Vai ver que o burro quebrou a pata. O que ele estava montando, naturalmente.
Noiva (histérica) – Ele tinha que estar aqui! Ele tinha que estar aqui!
Padre – Que sorte que seu pai o trouxe, então.
Entram o Noivo, e o pai da noiva, este apontando uma arma para aquele. O noivo parece tentar escapar do casamento a qualquer custo, mas a ameaça é forte o suficiente para que isso não aconteça. Assim que a noiva o vê, fica radiante. Eles chegam ao altar.
Noivo – Oi amorzinha. Desculpa o atraso. O seu pai fez um estrago danado lá em casa, e eu demorei pra arrumar tudo.
Pai da Noiva – Eu queria era fazer um estrago nessa sua cara, que parece que tem pouco buraco. Mas parece que a minha filha gosta dela assim, então vou deixar desse jeito por enquanto. Mas se tu tentar fugir, a Clotilde (mostra a arma) abre um terceiro olho bem no meio da sua testa.
Noiva – Ai, pai. Que horror.
Noivo – É, que horror!
Noiva – Vamos logo com esse casamento, seu padre. Antes que o meu pai faça uma besteira.
Padre – Bom. Nós estamos aqui reunidos para reunir em uma sagrada reunião estas duas almas. Chamamos isso de casamento. De forma que se alguém aqui quiser desunir esse casal antes que eu possa uni-lo, terá uma chance! Aqui e agora! Este é o momento. Nem antes, nem depois. Portanto, que, por favor, fale agora, ou não fale jamais!
Entra um bêbado do meio da plateia.
Bêbado – Eu tenho! Esse cabra sem-vergonha embuchou a minha amiga!
Noiva – Amiga?
Pai da Noiva (para o noivo) – É verdade, isso?
Noiva – Fala que não! Fala que não!
Noivo – Né não! Nem conheço esse cabra!
Bêbado – Mas a Cremilda você conhece, muito bem!
Noivo – Crê, quem? Olha só. Eu não tô a fim de morrer (tira o cano da arma com o dedo indicador, calmamente, da sua direção e o aponta para o bêbado) porque tu ta falando besteira. Então, pelo amor de Cristo Salvador, alguém tira esse bêbado da minha frente!
Bêbado – Ô virge santinha! (ajoelha e joga as mão pro céu, pedindo ajuda à santa) Tira esse troço da minha fuça, que não bebo mais hoje, nem nunca mais!
Pai da noiva – Seguranças! Tirem esse cabra daqui, que não mato ele hoje, que é dia festa.
Seguranças entram em cena, e arrastam o bêbado para fora da Igreja.
Padre – Ótimo. Agora podemos continuar com essa união de Deus. A não ser, é claro que, mais alguém.
Grávida surge no fundo da nave.
Grávida – Pode ir parando, aí seu padre, que o senhor que é homem decente não pode cometer a indecência de casar esse estrupício!
Noiva (exasperada) – Credo na cruz! Quem é você agora?
Grávida – Oxe, se não sou Cremilda, a grávida mais grávida dessa terra! E o pai é esse bexinguento aí, ó.
Pai da Noiva – Meu Pai! Mas agora tu vira viúva antes de casar, filha! (aponta a arma pro noivo. Este troca de lugar no altar com a noiva, colocando-a entre ele e a arma)
Noivo – Viro não! (Noiva fica assustada sob a mira da arma e vai pra trás do noivo)
Pai da Noiva – Vira sim! (Noivo volta para trás da noiva e esta gag repete-se 3 vezes, com o noivo e a noiva alternando os lugares e o pai da noiva e o noivo repetindo “vira sim” e “viro não”. Ao fim da terceira repetição, a Grávida interrompe a gag)
Grávida – Chega! Ninguém vai matar o pai do meu menino!
Bêbado volta
Bêbado – Mas é menino Crê Crê? Não sabia!
Noiva – Para todo mundo com zanzeira, que eu já tô é tonta! Você é o pai dessa criança, meu malvado favorito?
Noivo – Sou não, minha caramelinha. Olha a intimidade desses dois aí! O pai do filho dessa doida deve de ser o bêbado, mesmo!
Bêbado – Eu vou ter um filho? Ai, que felicidade! (Abre os braços e anda em direção à grávida, que abre os braços para receber o abraço, mas quando o bêbado chega perto dela, muda de direção e abraça o pai da noiva) Tem um charutinho aí pra gente comemorar, coronel?
Pai da Noiva – Charuto? Tá doido, cabra? (se desvencilha do abraço, e junto com o noivo, carregam o bêbado para fora da igreja. A grávida vai atrás, falando com o bêbado)
Grávida – Se for seu eu quero é uma pensão, seu safado. E vamo cortar essa cana, aí, que meu filho vai precisar de muita fralda! (Saem o bêbado e a grávida. O pai da noiva volta e o noivo aproveita a oportunidade para se esconder no meio do público).
Noivo (para uma mulher na plateia) – Me ajuda a me esconder, gatinha, por favorzinho.
Pai da noiva – E cadê meu genro por vir? Sumiu o safado! Damas de honra! Honrem a honra de sua amiga e tragam esse sem vergonha pra cá!
Dama de Honra 1 – Dou quinhentos paus pra quem disser onde ta esse cabra safado!
Dama de Honra 2 – Mas quinhentos não é muito dinheiro não?
Dama de Honra 1 – Dou tudo o que tenho pra ver minha amiga feliz!
Dama de Honra 2 – Então ta.
As duas ficam gritando que dá 500 paus pra quem delatar o noivo. Quando alguém delatar, as damas vão até o noivo e começam a dar tapas na cabeça dele, contando “um pau, dois paus, três paus, quatro paus”, etc. Levam o noivo à pancadas até o altar.
Pai da noiva – Última chance de ficar vivo, imprestável.
Noivo – Tá certo. Desculpe, magnânimo.
Padre – Então vamos logo com isso e chega de interrupções, por favor.
Entram duas pessoas, uma vestida de coroinha e outra de bispo.
Bispo – Não tão rápido!
Padre – E agora meu Superior aí do céu? Quem me mandas?
Bispo – Ele manda o seu superior na terra, Padre. Eu sou o Bispo, e preciso ter uma palavrinha em particular com você.
Saem calmamente pela lateral do altar e ficam conversando silenciosamente, no canto.
Coroinha – In nomine patris et filii et spíritus sancti. Amen! (Todos respondem “Amém”, sempre que o coroinha falar amém) Minha amiga, a gente veio te salvar deste casamento então não case com este jumento, amem. O Ju se vestiu de bispo e eu de coroinha pra te avisar que você ganhou na Loteria, amém. Se você casar com esse funhenhento você vai perder metade da grana e são 63 milhões, amém. Daqui a pouco você finge que passa mal, que o Ju vai se vestir de médico pra te tirar daqui, amém. Agora fica quietinha e finge que nada aconteceu, amém.
Sai de cena, enquanto o padre volta com o falso bispo.
Bispo – Fique com Deus, e que Ele os abençoe à todos!
Padre – Amém. (O bispo sai) Bom. Terminadas as interrupções, podemos continuar com o casamento? (Noivo e Noiva respondem ao mesmo tempo)
Noivo – Não!
Noiva – Sim.
Padre – Como? (as respostas se repetem)
Pai da Noiva – Como é que é?!
Padre – Cansei disso, já, meu filho. Vou rezar a sua extrema unção antes que esse cabra te mate.
Noivo – Não! Eu caso!
Padre – Então podemos continuar?
Noiva – Não! Pai! Tô passando mal, paizinho! Me ajuda! Eu acho que vou desmaiar!
Finge um desmaio, e o pai a pega, antes de ela cair no chão.
Pai da Noiva – Um médico! Um médico! Por favor, um médico pra minha filha! (médico surge no meio da plateia e vai até eles. Quando o pai vê o médico e larga a filha no chão, para ir até ela. Leva-a até a sua filha) Dá pra salvar? O que ela tem, Doutor?
Médico – Ih. Isso está feio (olha a noiva. Meche nela. Faz algumas coisas sem sentido) parece que ela está com cachorrombose múltipla de tártaros embrionários vingativos. Isso é uma doença muito severa. Muito difícil de tratar, vamos correr pro hospital agorinha, vamos! (Pai e médico carregam a noiva para fora da igreja. Saem)
Padre – Bom. Já que não Tem Noiva, Não tem casamento, não é?
Surge uma mulher da plateia.
Noiva 2 – E quem disse que não tem noiva? Tem sim! Eu!
Noivo – Quem é você?
Noiva 2 – Ah. Eu sempre fui louca por você. Agora você ta aqui, todo lindo, de noivo, no altar, na frente do padre. E sem noiva. Isso é um sinal de Deus. Vamos casar e é agora!
Padre – Então vamos com isso, que eu tenho que ir jantar na casa do meu irmão. Pelos poderes em mim investidos pela Igreja, eu os declaro Marido e mulher.
Noivo – E como é isso? Nem aceitei nada disso.
Padre – Então aceite o que te é designado e seja feliz com isso. Noiva, pode levar o seu esposo.
Noiva pega o noivo pelo braço, e saem de braços dados.
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O reflexo do espelho do teto
Por Rec Haddock
INT. QUARTO DE HOTEL. TARDE.
RODRIGO está só de cueca, procurando suas roupas pelo quarto. Ouve-se um som de secador de cabelos. O quarto é pequeno e tem as paredes amarelas. A cama está desfeita, com os lençóis puídos no chão. Do lado direito da cabeceira da cama, um criado mudo, sobre o qual vê-se um abajur e um telefone parafusados. Do lado direito da cama, um armário vai do chão ao teto. Ao lado do armário, a porta para o banheiro. De frente para a cama, uma TV. De frente para o armário, uma cortina fina falha em impedir que a luz do sol entre pela janela. Rodrigo acha suas roupas debaixo da cama e veste-as apressadamente. Ao terminar, tira do bolso da calça um caderninho com uma caneta. Escreve: “Tive que ir buscar a Emma na Esco”. O som do secador cessa, e ele para de escrever. Deixa o bilhete sobre o criado mudo e vai até a porta do quarto, para sair. Tenta abrir a porta, sem sucesso. A porta está trancada.
LIS
Já vai?
Rodrigo olha para trás. À porta do banheiro, está LIS (27), envolta numa toalha. Seus cabelos estão bonitos, secos, e ela está maquiada.
RODRIGO
Tenho que ir.
LIS
A chave está no criado-mudo. Na gaveta.
Rodrigo se dirige ao criado mudo.
LIS (CONT’D)
Mas eu esperava que a gente pudesse ficar um pouquinho mais de tempo junto.
Lis deixa a toalha cair, revelando a sua nudez.
RODRIGO
Eu tenho que ir mesmo. Tenho que buscar a Emma na escola.
Rodrigo abre a gaveta e encontra a chave sobre uma Bíblia. O movimento de abrir a gaveta revela um machucado no braço de Rodrigo. Lis percebe o machucado e Rodrigo, ao ver que ela percebeu o machucado, o esconde com a camisa, rapidamente.
LIS
Como eu não vi isso antes? O que houve?
RODRIGO
O Joel me mordeu ontem à noite.
LIS
Gente. Que horror! Quem é esse cara?
Rodrigo pega a chave e a Bíblia.
RODRIGO
Não. Não é um cara. É o meu cachorro.
LIS
É por isso que você tá estranho?
Rodrigo abre a Bíblia e finge lê-la por um instante. Então olha para Lis.
RODRIGO
Acho que sim.
LIS
Deita um pouquinho comigo. Eu sei que você não precisa ir. A gente não precisa fazer nada. Olha.
Lis se veste rapidamente. Deita. Rodrigo deita, também, e apoia a Bíblia sobre o peito.
RODRIGO
Porque esse lugar é tão amarelo?
LIS
Eu não sabia que você era religioso.
RODRIGO
Não sou. Mas é um best-seller. Achei que poderia ser uma leitura interessante.
Ficam em silêncio por um tempo, até que Lis pega a Bíblia. Ela abre-a logo no início e começa a ler.
RODRIGO (CONT’D)
Você já leu a Bíblia?
LIS
Já.
RODRIGO
E gostou?
LIS
Não.
RODRIGO
Por quê?
LIS
Eu tinha uns 17 anos quando li, acho. Eu ouvi falar de um Código da Bíblia. Sabe o que é?
RODRIGO
Não.
LIS
Funciona assim: você organiza o texto em linhas e vai ignorando os pontos e as vírgulas. Cada linha tem que ter 50 letras. Depois de fazer várias linhas assim, vira tipo um caça-palavras.
RODRIGO
Um caça-palavras?
LIS
É. Aí você acha várias palavras e monta frases. E as frases preveem o futuro, e explicam coisas do presente e do passado que você não entende, ou não sabia.
RODRIGO
E porque você não gostou disso?
LIS
Porque não funciona.
RODRIGO
Ah.
LIS
Pelo menos pra mim, não funciona.
Rodrigo olha para a Bíblia, longamente. Lis se levanta, liga a TV e volta a se deitar. O apresentador de um talk show entrevista um desconhecido. Os dois estão sentados em poltronas, um de frente para o outro.
APRESENTADOR
Mas porque ela faria isso? Eu quero dizer, se você abandona a sua família, essa não é a melhor forma de se voltar, certo?
CONVIDADO
Não sei, David. É tudo tão estranho. Na verdade, era ela, mas não se parecia ela.
Lis está assistindo a TV. Rodrigo, que estava lendo a Bíblia, para de fazê-lo e começa a assistir a TV.
APRESENTADOR (V.O.)
Tem dias em que eu acordo e não pareço comigo mesmo também.
Em off, a plateia ri.
CONVIDADO (V.O.)
Mas com certeza você não acorda com os olhos como se estivessem cheios de fumaça dentro, nem todo vestido de branco, ou todo desgrenhado, no meio do mato.
Rodrigo se ajeita na cama, sentando.
APRESENTADOR (V.O.)
Você ficaria surpreso com o tipo de drogas que existem por aí.
Em off, a plateia ri.
CONVIDADO (V.O.)
Você não entende. Teria que estar lá pra ver. Ela apareceu no meio da noite. Os meus pássaros enlouqueceram quando viram ela. E assim que eu olhei os olhos dela, ela fugiu de novo.
Rodrigo olha para o seu machucado, e dobra os joelhos, nervoso.
APRESENTADOR (V.O.)
Você não acha que ela desistiu de voltar pra família depois que viu como você ficou depois desses anos, acha?
Em off, a plateia ri. Lis olha para Rodrigo, que não desgruda os olhos da TV. O convidado levanta.
CONVIDADO
Pelo amor de Deus, David. Eu não vim aqui para ser destratado. Passei por uma experiência única, e vou descobrir o que aconteceu. Se alguém por aí souber do que isso se trata, ou tiver alguma pista, qualquer pista, me liga. Meu telefone é três mil e quatro, meia quatro nove sete.
Rodrigo levanta, pega a caneta do seu bolso e anota o telefone na bíblia.
RODRIGO
Será que é pecado roubar a Bíblia?
LIS
Só se você distorcer as palavras.
CONTINUA
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A 30 por hora
CORTA PARA:
INT. PRÉDIO DO AVI. MANHÃ
Avi sobe as escadas correndo e abre a porta de casa.
CORTA PARA:
INT. COZINHA DA CASA DE AVI. MANHÃ
Zoé está mexendo o café dentro de uma xícara, com uma colher, ansiosa.
AVI
Amor! Tá em casa?
Zoé sorri, aliviada.
ZOÉ
To na cozinha.
Avi entra de um rompante, ofegante.
AVI
Vocês tão bem?
Pausa. Zoé não responde. Avi senta, exaurido.
AVI (CONT’D)
Amor. O que houve? Foi um parto falso? Você tá bem?
ZOÉ
Não. Você tava longe e a gente precisava de você aqui.
Avi faz cara de quem não está entendendo nada.
ZOÉ (CONT’D)
Você ia vir se eu pedisse?
Avi sorri, incrédulo. Zoé coloca a xícara de café na mesa, ao lado de Avi.
ZOÉ (CONT’D)
Toma. Seu café.
Zoé vira de costas pra Avi, e finge que está ocupada com outra coisa, sem prestar atenção em Avi. Avi encara o café. Pega a xícara. Leva-a até a boca. Para. Suspira. Bebe.
AVI
Açúcar.
Zoé sorri, de costas pra Avi.
AVI (CONT’D)
Vem cá.
Zoé vira de frente pra Avi. Ele pega a mão dela, a beija, e depois acaricia a sua barriga.
AVI (CONT’D)
Eu te amo.
ZOÉ
Eu sei.
Avi sorri. Som de sirene de ambulância. Avi faz cara de quem fez besteira.
FADE TO BLACK.
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A 30 por hora
Por Rec Haddock
INT. SALA DA CASA DO DON - MANHÃ
AVI está sentado no sofá, assistindo, sem interesse, a um documentário na TV, com cara de quem não dormiu a noite toda. DON entra comendo cereal com leite. Repara em Avi no sofá.
DON
A Bia já tá fazendo uma pressão.
AVI
Você está me expulsando?
DON
Não, Avi! Que isso?
AVI
Eu vou pegar as minhas coisas.
DON
Assim não. Você só sai daqui com seu problema resolvido. Você falou com a Zoé?
Avi faz que não com a cabeça.
DON (CONT’D)
Porque você não liga pra ela? De repente vocês fazem as pazes e você pode voltar pra casa.
O telefone de Avi toca alto. Don se assusta e derruba o leite do cereal em si.
DON (CONT’D)
Merda!
Avi pega o telefone, que estava ao seu lado, no sofá, e vê quem está ligando. Na tela do celular está escrito: “Zoé ligando”. Ele mostra o celular pra Don.
DON (CONT’D)
Atende!
Avi atende ao telefone.
AVI
Oi! (Pausa) O que? Você já ligou pro Dr. Silvio? (Pausa) Eu to indo praí, amor. Faz o seguinte: deita, respira e fica calma. Eu cuido de tudo. Qualquer coisa me liga.
Avi pega as chaves do carro de Don sobre o aparador da sala e joga-as pra ele, agitado.
AVI (CONT’D)
Me leva pra casa.
DON
O que aconteceu?
AVI
A bolsa estourou.
Avi pega sua jaqueta, e coloca sobre o pijama. Saem, apressados. O cereal, ainda por comer, fica sobre a mesa da TV, ligada no documentário.
CORTA PARA:
EXT. RUA MIGUEL PEREIRA, HUMAITÁ - MANHÃ
Uma placa de limite de velocidade de 30 km/h indica o limite da via. Sobre a pista, insere-se digitalmente, o título do curta. O carro do Don passa na via e o título some.
AVI (O.S.)
Ela entrou em trabalho de parto com menos de sete meses de gravidez. (Pausa) Eu pago uma fortuna pra vocês. Se minha esposa e meu filho morrerem quem vai se responsabilizar?
CORTA PARA:
EXT. CARRO DO DON - CONTINUOUS
Avi está ao telefone, sentado no banco do carona. Don está dirigindo o carro, olhando, ora para a pista, ora para o Avi.
AVI
Você vai mandar uma ambulância para minha casa agora. (Pausa) Epitácio Pessoa 1832/101 Lagoa.
Avi desliga o telefone, com dificuldade, porque suas mãos tremem.
DON
Vão mandar a ambulância?
Avi acena que sim com a cabeça, com os olhos focados na pista à sua frente.
DON (CONT’D)
Então tenta manter a calma.
Avi fuzila Don com o olhar.
DON (CONT’D)
Ficar nervoso não vai te levar a lugar nenhum.
Avi desvia o olhar para a sua janela. Suspira. Estão no carro em silêncio.
AVI
Você tem razão. Desculpa. É que tem tanta coisa em cima de mim, que eu acabo explodindo com as pessoas erradas. Você pode ir mais rápido?
DON
To no limite.
AVI
No limite estou eu, Don. Tá foda com a Zoé. Ela não me respeita. Fica fazendo umas brincadeirinhas babacas, sabe?
Don concorda com a cabeça com o que Avi está falando, alternando o olhar entre Avi e a pista.
AVI (CONT’D)
Faz três dias, ela pôs sal no meu café. Ela tinha jurado que não ia fazer mais isso.
Quando Avi está terminando de falar, Don está olhando para ele. Volta a olhar para a pista, mas interrompe o movimento no caminho e volta a olhar para Avi, incrédulo.
DON
Foi por isso que você saiu de casa?
AVI
Como eu posso confiar numa mulher assim?
Don para o carro e começa a bater em Avi.
DON
Seu babaca! Você ficou alugando o meu sofá por três dias por causa disso?
AVI
Ela mentiu pra mim! Ai! Para!
Don para de bater em Avi.
DON
Olha só. Por alguma razão que eu não entendo, eu gosto de você. Então eu vou te ajudar a salvar o seu casamento. Você precisa entender que a Zoé é uma mulher maravilhosa. Deixa de ser babaca. Se você não se levar menos a sério e lutar pelo seu casamento, ela vai arranjar outro assim, ó.
Don estala os dedos.
DON (CONT’D)
Você está me entendendo?
Avi faz que sim, com a cabeça, efusivamente. Ele está claramente assustado, seus movimentos estão todos interrompidos, e ele está olhando ora pra pista, ora para o Don.
AVI
Você pode voltar a dirigir? A Zoé tá parindo.
Don volta a dirigir o carro. Eles ficam em silêncio por um tempo.
DON
Sal no café... Puta que pariu.
AVI
A Bia nunca te encheu o saco a ponto de você querer sair de casa?
DON
Claro que sim. Mas relacionamento é isso aí. A gente tem que passar por cima se quiser que dure.
Eles ficam em silêncio no carro.
AVI
Passar por cima de qualquer coisa?
DON
Qualquer coisa! Qualquer...
Don vê a sua namorada, Bia, na rua com um amante, Eli. Eles estão trocando carinhos e carícias explicitamente. Don perde toda a força da fala.
DON (CONT’D)
Caralho...
Don ultrapassa os amantes de carro. Avi olha para trás, buscando entender o que causou a reação de Don.
AVI
Era a Bia?
O carro para num sinal vermelho mais a frente. Don coloca a mão sobre a trava do cinto de segurança, mas não o destrava.
AVI (CONT’D)
A Zoé tá parindo, cara. Vamos embora, por favor.
DON
Você pode ir sozinho.
Don não destrava o cinto de segurança. O sinal abre.
AVI
Eu não sei dirigir, Don.
Som de buzina.
AVI (CONT’D)
A Zoé tá precisando da gente.
Don engata a primeira e sai, com o carro. Eles ficam em silêncio.
AVI (CONT’D)
Você quer...
DON
Agora não, Avi!
Eles ficam em silêncio. Enquanto Don está completamente introspectivo, Avi não para de olhar para a pista, antecipando o momento do encontro com Zoé. O carro para num trânsito pesado. Avi, extremamente inquieto, começa a buzinar.
CORTA PARA:
EXT. LAGOA RODRIGO DE FREITAS. MANHÃ
Avi coloca o tronco para fora da janela, tentando descobrir até onde vai o trânsito, sem sucesso. Saindo pela sua janela, sobe no teto do carro, e fica de pé. Olha para frente e vê o trânsito interminável da Lagoa. Grita com o trânsito, mandando-o abrir para que ele possa passar, coisa que não acontece. Desesperado, olha para todos os lados, buscando um caminho, e vê a ciclovia. Pausa.
CORTA PARA:
EXT. CARRO DO DON. MANHÃ
Avi desce do teto do carro pelo para-brisa e pelo capô, e sai correndo pela rua em direção a ciclovia. Don reage.
CORTA PARA:
EXT. CICLOVIA DA LAGOA. MANHÃ
Os pés descalços de Avi correm pelo asfalto da ciclovia. Os passos grandes revelam braços apressados com mãos apertadas. O seu olhar expressa dor, angústia, ansiedade, medo, mas acima de tudo foco. Ele ultrapassa o enquadramento.
CORTA PARA:
EXT. PORTÃO DO PRÉDIO DO AVI. MANHÃ
Avi alcança o portão do prédio e o abre.
Continua...
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Dos sonhos que temos antes de dormir
Por Rec Haddock
Das transcrições de sua narrativa, infelizmente, só foi encontrada uma parte. Das páginas 86 a 104. Por conta do caráter violento dos documentos recuperados, talvez isso seja uma benção.
Você vai ler pra gente?
Eu não poderia. Mesmo que quisesse fazê-lo, temo que uma sala de aula não seja o local apropriado para esse tipo de assunto. Agora, se vocês abrirem os seus livros na página 403,
Eu posso falar contigo, rapidinho?
Claro.
Então me segue.
Na página 403, vocês encontrarão uma descrição de sua morte, no cativeiro. Os manuscritos foram encontrados muito tempo depois, em uma gaveta trancada, no local onde fora encarcerado. Provavelmente, o autor da transcrição foi o próprio carcereiro, que pretendia assim
Você não vem?
Eu não posso te atender agora, Srta. Maria.
Ela só precisou de um sorriso.
Está bem. Mas que seja rápido.
No corredor vazio, ecoou o som de prazer que as portas fazem quando são fechadas, mas não devem ser fechadas.
Então, professor.
Sim?
Eu não quis contestar você lá dentro, pra não comprometer a sua autoridade.
Se a Srta. tivesse me contestado lá dentro, eu poderia discordar dos seus argumentos em público.
Mas aqui, sozinhos, a gente não precisa discordar, né?
Ele ouviu passos ressoarem no corredor da Academia. Era a culpa. Ele sabia, mas não se importava. Ela ainda não tinha chegado.
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O todo não contempla tudo o que há
Por Rec Haddock
Giulia não conseguia acreditar nos seus ouvidos.
- Eu não acredito que eu joguei tanto tempo da minha vida fora tentando agradar alguém que não tem como ser agradada.
- Você está querendo dizer que eu não tenho como ser agradada?
- Com tanto talento para afirmar o óbvio.
- Você é um porco, simplista. Você quer que eu injete sertralina e diga que sou feliz sempre? Larga essa mala.
Ela sabia o que ele estava fazendo. Henrique ia colocar suas roupas na mala, e ir embora, esperando que ela ligasse, pedindo que ele voltasse, mas ela não faria isso. Não de novo.
- Se você acha que precisa de sertralina pra ser feliz casada comigo, realmente.
- Para de showzinho, porra. Ei. Essas roupas são minhas!
OK. Isso era novo.
- Suas como? Você comprou com o seu dinheiro?
- Que isso? Você nunca falou assim.
- Agora você vai pegar as roupas que eu paguei e vai embora daqui. Eu não aguento mais ter que olhar pra essa sua cara de cu, não importa o que eu faça pra te fazer feliz.
Talvez, se ela conseguisse entrar numa discussão que já tivesse ensaiado.
- O problema é que eu gasto o seu dinheiro, ou que você não me faz feliz?
- Então eu não te faço feliz, mesmo?
- Não é você quem tem que me fazer feliz. A minha felicidade não depende de você, nem do seu dinheiro.
- Pois é. Nada depende da gente. Tudo depende do cosmos. Pois bem. Casa com o cosmos pra ver se ele te faz feliz.
- Eu não gasto mais o seu dinheiro, Henrique. Vou arranjar um trabalho.
- Você vai precisar mesmo. Aqui você não pisa mais.
- Se é assim. To indo. Pode ficar com as roupas que você pagou. Pode ficar com as que eu paguei também. Assim a sua nova mulher vai ter menos trabalho.
Era bom que ele a seguisse. A tática era arriscada, mas talvez desse certo.
Não deu. Depois que saiu e fechou a porta atrás de si, não ouviu um pio que fosse do lado de lá. Talvez ele tivesse razão. Giulia deu dois ou três passos sem bolsa nem mala, nem destino. Percebeu que era livre. E sorriu.
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O que a noite nos ensina
Por Rec Haddock
INT. QUARTO DA EMMA. NOITE
RODRIGO (35) bate na porta do quarto de EMMA (07), sua filha e abre-a, sem esperar resposta. Rodrigo a vê, já de pijama, sentada na cama, jogando um jogo em seu iPad.
RODRIGO
Posso entrar?
EMMA
Sim.
Rodrigo se apoia no batente da porta e observa sua filha.
RODRIGO
O que você tá jogando?
EMMA
Temple Run.
RODRIGO
Quando acabar essa fuga, você vai
dormir, então, tá bem?
EMMA
Sim.
Rodrigo atravessa o quarto e senta-se na cama com Emma. Ele observa o quarto e vê tudo em seus lugares. Os brinquedos estão organizados nas prateleiras. A maioria está empoeirada. Ela tem vários livros, todos dispostos em uma estante por cores. Em cima da cômoda, ele vê uma foto dele com a sua mulher ainda grávida. Os dois sorriem. Ele suspira, e passa a observar o jogo que sua filha está jogando. Quase imediatamente, sua filha perde a partida.
EMMA (CONT'D)
Consegui, pai! Bati meu recorde!
RODRIGO
Parabéns, filha. Agora vamos
deitar.
Rodrigo pega o iPad da mão da filha, vai até a cômoda e o guarda na gaveta de cima, enquanto Emma acende o abajur em seu criado mudo, e deita. Seu pai vai até ela e a cobre.
RODRIGO (CONT'D)
Boa noite, meu amor.
EMMA
Pai. O feijão pode dormir comigo?
RODRIGO
Não, querida. Os cachorros não podem entrar em casa. Você sabe.
EMMA
Mas ele fica com medo lá fora. Eu ouvi ele chorando, e perguntei pra ele. Ele me disse.
RODRIGO
Disse, foi?
EMMA
Disse. Ele disse também que não gosta de ficar preso.
RODRIGO
Mas o papai já te disse por que ele fica preso, né?
EMMA
Ele me prometeu que não vai fugir.
RODRIGO
E você acha que a gente pode
confiar?
EMMA
Ele nunca mentiu pra mim.
RODRIGO
Se é assim, eu solto. Mas ele não vai poder entrar em casa. Amanhã você explica pra ele que os outros cachorros maiores vão o proteger, se alguma coisa acontecer, tá?
EMMA
Sim.
RODRIGO
Agora vamos dormir, querida. Boa noite.
EMMA
Boa noite, pai. Te amo.
RODRIGO
Eu também te amo, meu amor.
Rodrigo beija a testa de sua filha, levanta, atravessa o quarto e desliga a luz.
CORTA PARA:
EXT. FRENTE DA CASA. NOITE.
Seis cachorros de guarda grandes estão deitados no chão da varanda e um filhote está preso pela coleira em uma cadeira de balanço. As luzes do andar de cima da casa estão apagadas.
No térreo, a luz da varanda é acesa e a porta abre. RODRIGO aparece atrás dela e abre a porta de tela. Sai da casa, e quando pisa na varanda, os cachorros levantam. Ele vai até o filhote e segura a guia da sua coleira.
RODRIGO
Olha lá, hein Feijão. Você prometeu que não ia fugir.
Feijão solta um ganido sofrido, e imediatamente depois, os cachorros adultos começam a latir desesperados em direção a um ponto do terreno fora da varanda. Ouve-se um som de estalo.
RODRIGO (CONT'D)
Quem está aí? (Pausa) Quem está aí?!
Rodrigo entra rapidamente em casa. Os cachorros começar a latir ainda mais desesperadamente, agora sem o dono. Feijão, preso, não para de ganir. Outra luz se acende no térreo da casa. Ouve-se outro som de estalo, vindo de fora da casa. Os cachorros adultos começam a rosnar. Rodrigo sai da casa com uma espingarda nas mãos, e uma Mag-Lite debaixo do braço.
RODRIGO (CONT'D)
Vêm.
Ele começa a descer os degraus que separam a varanda do terreno, mas os cachorros não o seguem. Ele para e ilumina o pátio a sua frente com a lanterna. Vê apenas, mato, árvores e sua picape. Irritado com os cachorros, Rodrigo sussurra.
RODRIGO (CONT'D)
Vêm, porra!
Os cachorros começam a descer as escadas, sempre latindo, e vão em direção ao carro. Rodrigo vai com eles, apontando a espingarda para o caminho, e iluminando mal a sua frente com a lanterna que carrega debaixo do braço. Os cachorros dão a volta na traseira da picape e olham o outro lado do carro. Voltam correndo, ganindo, e passam por Rodrigo em direção a varanda de casa, onde se amontoam quando chegam. Rodrigo olha assustado para os cães. Ele dá um passo em direção à picape. Hesita.
RODRIGO (CONT'D)
Eu estou armado. Sai daí de trás, se não eu vou atirar!
De repente, Rodrigo ouve um estalo atrás de si, e vira, rapidamente. Atrás da árvore está uma mulher bem suja, com o cabelo raspado e os olhos vítreos. Ela está toda vestida de branco. Parece com a mulher da foto do quarto da filha.
RODRIGO (CONT'D)
Laura?
Ao ouvir a voz de Rodrigo, a mulher vira as costas para ele e sai correndo. Rodrigo deixa a arma cair e corre atrás dela, iluminando-a o máximo que pode com a lanterna, mas não consegue fazer um bom trabalho. Ela alcança uma cerca-viva e a atravessa. Rodrigo alcança a cerca viva um tempo depois, mas para. Ilumina a área além da cerca viva por cima desta, mas a mulher já fugiu, e ele só vê um gramado bem aparado. Ele volta correndo até a espingarda, e a pega. Corre até a casa. Solta Feijão e com ele em seu colo, entra em casa. Uma das luzes do térreo se apaga. Rodrigo abre a porta da frente e coloca todos os cachorros para dentro. A última luz do térreo se apaga. Rodrigo abre a porta de casa. Sai. Tranca porta e se senta na cadeira de balanço, no escuro, com a espingarda no colo e um terço nas mãos.
CONTINUA
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Prefácio aos novos dias
Por Rec Haddock
Luís Roberto fazia parte de um grupo de 7 amigos que se reunia toda semana para contar histórias. Religiosamente. E digo religiosamente porque me disseram que era uma religião, mesmo, para eles. Nenhum acreditava em Deus, e nenhum queria ficar sozinho no mundo, então se reuniam toda semana para contar histórias.
Não falavam das suas vidas, de modo que não demonstravam preferências políticas, ou coisas assim, que poderiam fazer com que eles rompessem ligações. Dos outros conheciam apenas o rosto, o nome e as histórias.
Aquele encontro caíra no dia do Réveillon, e era o dia de Luís Roberto falar. E pelo que me disse, assim contou:
"Tudo estava tranquilo pelos lados de lá. Jonas era casado com uma mulher supimpa de corpo e mente, seus filhos não davam problemas demais, seu carro era novo, seu emprego não lhe custava muitos esforços e pagava acima da média, sua cerveja estava gelada e o Saia Justa estava pra começar.
"Ele tinha, por bastante tempo, – não admitia - um pouco de vergonha de gostar deste programa. Mas o Du Moscovis e o Chico Sá começaram a fazer parte da equipe de apresentadores, e aí ficou fácil de assumir pros amigos que assistia de vez em quando. Se o Chico Sá, que fala aquelas coisas de beber endométrio, pode fazer, ele podia ver sem comprometer a masculinidade.
"Naquela tarde, quem apresentava era o da raquete. Jonas não se achava um cara violento, mas se identificava com aquela brutalidade toda. Tudo o que o distanciava daquele cara era que toda a sua brutalidade estava reprimida.
"A garrafa de cerveja estava na metade. Miriam, sua mulher, lhe trouxe outra e disse que ia levar as crianças para uma peça infantil. Melhor assim. Teria mais tempo para si. Deu até um dinheiro para que a mulher e os filhos fossem de táxi, e não de ônibus.
"Ele terminou as duas cervejas quando acabou o programa. Jogou as garrafas na Mildred – nome que a sua esposa dera a lixeira da cozinha. Ele sempre achara extremamente estúpida aquela mania da Miriam de dar nomes pras coisas. Ele se sentia ofendido até. Tinha a sensação de que ela nomeava as coisas pra não se sentir sozinha, mas ele sempre estava lá. Não tinha motivo pra essas sandices.
"Com esse pensamento na cabeça pegou uma Playboy e foi ao banheiro, aproveitar que estava sozinho em casa. Quando chegou na porta do cômodo, o viu e lembrou-se: Césão estava pintando o seu banheiro. Aquele cara tinha 1,54m e era albino. Uma figura estranhíssima. As paredes que pintava pareciam murais de Mark Rothko. Parecia que tinha cheirado cocaína o tempo todo: piscava a rodo, meio que tremia, seus olhos estavam sempre mais abertos que o necessário e fazia contorções estranhas com a coluna, sem motivo aparente.
"Ele ficou um tempo observando Césão, que parecia em transe, pintando aquele banheiro. O cara fazia arte, mesmo. Seu banheiro ia valer uma fortuna, um dia.
"- Ei. Césão. Você já pensou em pintar quadros?
"- Já sim, seu Jonas. Eu pinto, na verdade, mas o mercado é bem complicado, sabe? Os quadros que pinto não vendem não.
"Jonas não entendia como podia aquilo. O cara era um gênio. Tanta gente medíocre fazendo milhões com pretensa arte – diga o que quiser, mas Jonas nunca concordaria que um mictório é arte – e ele pintando banheiros.
"- Essa playboy aí é boa, seu Jonas?
"- Não vi ainda não.
"- Quando o senhor terminar, posso dar uma olhada?
"- Precisa esperar não. Não quer ver agora?
"Jonas abriu a revista e ficou analisando as fotos com Césão. A mulher era boa. Césão não parava de se contorcer ao lado de Jonas. Fazia um negócio com as mãos, como se estivesse passando uma moeda entre os dedos, mas ali só tinha vontade. O homem era um poço de vontade reprimida.
"Jonas já não olhava mais pra Playboy.
"Césão não olhava para Jonas.
"Se ele quisesse que alguma coisa acontecesse, não haveria momento mais propício. Como ele poderia fazer para pegar o albininho sem causar furor? Talvez um beijo roubado à força?
"Mas ele queria se relacionar com Césão? Que palhaçada era essa agora? Ele tinha mulher, porra. E gostosa pra caralho. Malhava pra cacete, toda durinha e ele de olho no albininho? Ele era macho!
"Ia se controlar. Ia se controlar que nem quando andava na rua e tinha vontade de dar uma porrada em uma velhinha qualquer que atravessava seu caminho. Tinha essa vontade uma vez por semana, mas o soco nunca tinha chegado. Então ele era mais que capaz de conter aquela vontade.
"Fechou a Playboy.
"- Aí, seu merda! Tá achando que vai ficar vendo sacanagem no horário de trabalho? Vai pegando o pincel.
"- Olha só seu Jonas. Eu gosto bastante do senhor, mas não vou ficar aturando desaforo não, que não sou pago pra isso. Você que abriu a revista! Tá maluco?
"Jonas não esperava por aquilo. Césão além de talentoso era durão? Aquele tamanho, aquela pele e aqueles tiques deviam fazer ele se deixar dominar.
"- To de sacanagem, chefe. Que isso. Toma a revista aí. Tira meia hora. Depois você volta a pintar.
"Saiu do banheiro. Césão fechou a porta, e Jonas ficou pensando se devia entrar e surpreender o pintor. Ele entendeu, naquele momento, que mais cedo ou mais tarde ia ceder à tentação. Que fosse logo então.
"Deu meia volta, colocou a mão na maçaneta e hesitou.
Luís deixou a mão de Jonas na maçaneta. Parou de contar a história. Choveram protestos dos outros seis, mas Roberto estava irredutível.
"Nesse momento, Jonas tinha dois caminhos pela frente. Poderia ceder a sua tentação e mudar a sua vida ou continuar a vida que devia ter. Mas o Jonas não existe. Quem existe sou eu, Luís. Eu não tive a coragem de me arriscar e mudar a minha vida até agora".
Luís nunca mais voltou aos encontros, e os sete viraram seis por um tempo. O que cabalisticamente era inaceitável. Se ele não tivesse saído, eu, Rec, não teria entrado. De qualquer forma, ele disse mais uma coisa antes de ir embora, me contaram:
“- Esse ano não vou contar histórias. Vou vivê-las. Eu desejo que todos vocês abram as suas portas por conta própria”.
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Fröhliche Weihnachten
Por Rec Haddock
Estava chovendo bastante naquele dia. Sempre chove bastante nessa época, e ele começou a procurar o cheiro, mas não encontrou. O cheiro que a chuva fazia lá, a chuva não faz em nenhum outro lugar.
Lá, no caso, era o Golf Resort Club Vermont. No meio da estrada, um hotel que acabou crescendo demais. Dois circuitos de golfe independentes, várias piscinas, lagos para pesca, churrasqueiras, boliche, bocha, cavalos, um campo de futebol gigantesco e mais dois pequenininhos, quadras de vôlei, tênis, basquete, academia, restaurantes, lojas de souvenir, mesas de sinuca, campeonatos de tranca, jogos de pôquer. Quartos e chalés e restaurantes e prédios projetados por Niemeyer e jardins projetados por Burle Marx. De tudo o que ele descreveu sobre o lugar, é isso o que lembro – talvez ele e eu tenhamos esquecido algumas coisas, mas com certeza as memórias da infância dele e a minha empolgação com o lugar compensaram estes esquecimentos.
Seu bisavô fora um investidor e investiu naquele hotel quando ele era apenas uma série de quartos amontoados. Por isso, na sua infância, a sua família ainda era dona de uma parte do Resort e ele ia passar os últimos 15 dias do ano lá. Todo ano. E todo ano chovia. E a chuva que chovia lá tinha um cheiro especial, como de grama recém-cortada. Era disso que mais gostava.
Seu bisavô não fora o único investidor, e outras famílias, também donas de suas partes do Resort,iam para lá todos os anos. E, como não poderia deixar de ser, tantas famílias acabavam virando uma família só, por quinze dias por ano. Até que as pessoas das famílias diferentes começaram a casar entre si e criar novas famílias de fato, e todos acabaram virando uma família por todo o ano, em todos os anos.
Tem famílias que se unem em torno do circo, outras que se unem em torno da música. Tem famílias de dentistas e outras que adoram velejar. Algumas famílias se unem em torno de alguma coisa que todos amam. Essa se uniu em torno do Natal no Golf Resort Club Vermont, e mesmo que alguns não fossem parentes de sangue, todos se amavam como irmãos e primos e tios, porque amavam aquele lugar.
E como amavam o Natal. Todos eles atacavam a ceia no Restaurante dos Flamboyants e reclamavam juntos do péssimo cantor que o Hotel contratava todo ano. Um deles – um dos homens mais velhos, sem filhos – sempre era acometido por uma dor de barriga súbita, perto da meia noite, e desaparecia. Logo, tocavam-se os sinos e surgia o Papai Noel para distribuir os presentes para as crianças, depois, é claro, de descobrir através de uma severa arguição oral se a criança em questão tinha ou não sido boazinha naquele ano.
Tudo era perfeito.
Mas merdas acontecem, e a família dele perdeu muita grana na época em que um Banco Internacional, na sua escalada, estava comprando hotéis pelo mundo inteiro. E o hotel da vez era, claro, o seu hotel. Venderam a sua parte quando ele tinha 19 anos.
Parte da sua magia já tinha acabado, é verdade, mas o Golf Resort Club Vermont ainda era um lugar especial para ele. E agora chovia, mas a chuva não tinha cheiro de chuva.
Então ele decidiu que era melhor que ele voltasse para a casa. Ele sentia muitas saudades daqueles momentos, e naquela véspera de Natal, quando virou a chave do seu apartamento, chorava - como eu choro quando conto essa história – por não ter mais nada daquilo.
Acontece que milagres acontecem.
Quando a chave virou e a porta abriu, ele viu a sua mulher. Junto com ela, estavam seus pais, seu irmão, avós e tio. Todos estavam sorrindo, felizes. Sua avó estava um pouco bêbada.
A sua memória estava no seu coração, mas a sua família não estava junta em torno do Natal do Golf Resort Club Vermont, afinal. Nem sequer estava junta em torno do Natal. Ela estava junta porque se amava. E ele amava todos. Ele amava aquela mulher que tinha escolhido para ser sua parceira na vida, e, para a sua mais completa felicidade, eles também a amavam.
E, finalmente, ele percebeu. Sua casa estava com cheiro de chuva.
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Surto metafórico
Por Rec Haddock
Uma borboleta pousou no meu indicador. Bom presságio. Uma borboleta pousou no meu indicador e as suas irmãs se acalmaram no meu estômago.
Eu já sabia o que devia fazer. Cai sobre um joelho, e ela não pareceu nem um pouco surpresa. A natureza ao redor se surpreendeu.
Abri a boca para fazer o convite que mudaria nossas vidas e as borboletas jorraram. Por pouco não deixei cair os anéis, dentro daquela nuvem.
O sol brilhava em todo canto.
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Foragidos do tempo
Por Rec Haddock
Era o dia mais lindo do ano. Deu no jornal, e se deu no jornal deve ser verdade, seja lá o que quer que dia mais lindo signifique.
Ela olhava o dia pela janela da sua casa amarela, por trás de seus lindos óculos escuros redondos, que só ela tinha coragem de usar. Ela podia ficar mais um pouco ali na janela. Não havia nada que não pudesse esperar mais um pouco.
Era o dia mais lindo do ano, mas eu não tinha chaves nem janelas, e nunca saberia. Há dias eu não saía de um espaço delimitado por fitas crepe no chão de maneira tosca. Há dias uns 1,5m² eram o meu mundo. E, estranho ou não, eu gostava dele.
Tinha um som de estática.
O sol se punha, e os óculos a protegiam. Ela só queria mergulhar no sol, mas o GPS sempre indicava o caminho errado. Não tendo como ir, ela se deixava ficar.
As correntes machucavam um pouco os meus pulsos, mas elas me ajudavam, sim. Eu não comia, e não sentia fome. Estava feliz por não perder meu tempo, nem ter de vendê-lo, a preço de bananas.
O tempo é a nossa fonte de energia não-renovável mais preciosa. E, ainda assim, é a que mais parecemos desperdiçar.
Vai entender.
O Sol se foi, ela também. Quase pude sentir o cheiro de pneu queimando quando ela parou na frente da porta. Tantas coisas que não conseguimos sentir.
Ela abriu a porta e entrou. Ajoelhou-se na minha frente e sorriu um sorriso cúmplice.
Tudo parecia certo.
Não sei ao certo de onde a faca surgiu, mas quando vi, a primeira já tinha sido desferida. Ela e a faca caíram, ensanguentadas, e nada parecia errado.
Foi assim que aconteceu.
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Menores de 5 anos não pagam
Por Rec Haddock
Os meus pés não cabiam mais nos meus sapatos.
Esse era um ótimo motivo para me desesperar. Todos pareciam ter o pés perfeitamente encaixados em seus calçados, mas eu não.
Ontem meus pés estavam confortáveis nesses tênis azuis - o que não me deixava perceber meus pés ou meus tênis – e eu podia pensar em todas as outras coisas que tinha para fazer, e que devia fazer, mas não fazia.
Meus tênis eram novos. Não havia motivo para...
Lia! Era dela que estava lembrando quando os tênis começaram a arrebentar. Da boca dela e. OPA! Lá se foram cuecas e calças. As coisas vão ficar indecentes aqui, se continuar a pensar nela.
As vezes penso qual é o porquê dessa obsessão de esconder o pinto, se é muito pior mostrar o coração.
Mas ela me mostrou o coração dela ontem à noite, ah se mostrou! E eu abri o meu terceiro olho pra ver aquele. OPA! Pronto. Foi-se a camisa.
Eu não cabia mais em mim. Agora já era. Qualquer um que olhar vai ver que estou apaixonado.
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O pior é quando você trai e só descobre depois
Por Rec Haddock
A porta ficou aberta, depois que ela foi embora. E ela nem tinha escovado os dentes, ainda.
O olhar de desprezo ficou.
Ela não queria nada comigo, eu sabia disso. Ela tinha repetido isso muitas vezes (espontaneamente!), mas, aparentemente, quando uma mulher diz que não quer nada com você, ela quer você. Vai entender.
Ela dormiu lá em casa. A noite tinha sido agradável. A gente saiu pra jantar, depois fomos dançar no Bukowski. A gente ficou bêbado pra caralho, saca? Bêbado como eu só fico quando saio com ela.
Vodka quando mistura com euforia é foda.
De manhã tavam expulsando a gente do bar, e ela tinha perdido as chaves de casa. Ela estava mal demais pra negociar com chaveiro – e chaveiro quando decide meter a mão pra abrir uma porta é que nem quando político resolve fazer orçamento pra obra pública – e por isso fomos pra minha casa, comer alguma coisa doce, dormir um pouco, e lidar com isso quando a gente acordasse.
Só que brother. A dispensa tava mais vazia que o peito do Nick Chopper. Ela tava tonta pra caralho, fiquei meio preocupado, então saí pra comprar um chocolate pra ela.
Voltei com o chocolate, uma escova de dentes, pra ela, e com a vizinha. Ela tava dormindo, no sofá. Porra. Eu tava cozinhando a vizinha há tempo pra caralho. A oportunidade surgiu. Cobri ela, com um cobertor e dei um beijo na testa dela.
Bom. Resumo da ópera é que ela pegou a gente na cama. Chorou pra caralho. Nem parecia mais que tava bêbada. Eu não entendi porra nenhuma. Ela gritou comigo que eu era um insensível da porra, e que não merecia ela, e coisa e tal.
Eu nunca achei que merecesse, pra início de conversa.
Enfim. Ela foi embora. E eu fiquei olhando as coisas que ela deixou pra trás, imaginando se ela ia voltar pra pegar. Acho que não. A vizinha sorriu, me deu um beijo, que eu não consegui retribuir. A vizinha sorriu, levantou. Eu fiquei pensando que tinha feito merda. A vizinha sorriu mais um pouco, filha da puta, e se vestiu.
A vizinha foi embora, mas o vazio já estava lá antes disso acontecer.
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Os que mostram o caminho do jardim proibido
Por Rec Haddock
Estava sentado com uma espingarda na mão. A varanda a sua volta estava toda surrada. Não chovia, mas uma goteira transbordava em um balde com uma água marrom esverdeada com um cheiro tão agradável quanto o humor de uma freira.
Ele roncava baixo, como quem tem vergonha de roncar. Não que ele fosse desse tipo. Ele falava o que quer que tivesse que ser falado. Mas roncava baixo.
Folhas farfalharam embaixo dele, e o movimento deixou seu sono mais leve. Ouvia vozes que talvez fossem sonho.
- Ele tá pronto?
- Não parece.
Talvez no sonho engatilhasse sua espingarda, e matasse os donos das vozes, mas suas mãos pareciam leite de tão úmidas e pálidas, e o ferro era muito gelado em suas mãos.
O hálito das vozes do talvez-sonho não era religioso. Não era humano, tampouco. Era superior.
- Porque deram essa espingarda para ele?
- Para que ele pudesse atirar.
Mas ele não podia sequer tentar. Não havia forças. Estava amarrado em seu talvez-sonho, e as cordas eram água em seus pulmões.
As vozes soavam ameaçadoras, como um segredo contado à média distância, seguido por um riso e um olhar. Era chegada a hora de abrir os olhos e ver a sua varanda, na sua casa, e furar aquelas vozes.
- Devemos esperar que ele atire?
- Porque o deixaríamos com a espingarda, então?
A sua espingarda. De sua propriedade. As suas palavras, dos seus pensamentos. De repente nada mais daquilo era seu, e a consciência de que nada é sonho o fez acordar.
Mas seus olhos permaneceram fechados. Por medo.
- Devemos ensiná-lo a atirar?
- Devemos ensiná-lo a descobrir como atirar.
Os olhos se abriram. A varanda, de repente, ficou vermelha. O sol se punha.
- Puxe a trava.
As vozes se viam, mas os corpos só podiam ser ouvidos. A trava foi puxada.
- Aperte o gatilho.
Nada aconteceu. O mal aluno se formou sem munição.
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Programa de domingo
Por Rec Haddock
A luminária vazada desenhava com luz e sombra um sol cor de sangue coagulado no teto da sala. O chão estava gelado, e ele queria tirar os pés de lá, mas não tirava. Não se mexia.
Na TV, um filme B sem o pudor que ele estava sentindo. A sala estava mergulhada na penumbra e fedia àquela porra que fica espirrando um cheiro enjoativo de 7 em 7 minutos. Àquela porra tentava disfarçar o cheiro de sexo, mas ele não sabia. Ele não conhecia o cheiro de sexo. Talvez o negócio não fedesse tanto, afinal. Mas ele nunca saberia.
Jonas estava feliz.
Jonas não queria que aquele momento passasse.
A cabeça dela tinha um formato estranho, apoiada assim sobre o colo dele. Ele nunca tinha percebido. Tinha tanto que não sabia sobre ela. Ela não era virgem como ele. Ele não sabia disso. Ela chorava baixinho, no colo dele. Ele não sabia disso, porque não se mexia, e não via.
Jonas estava feliz.
Mas Jonas não tinha dinheiro o suficiente.
Quando o dinheiro acabava, o carinho na cabeça dela acabava e os pés entravam nos tênis. Ele jurava que, assim que tivesse dinheiro, voltava, porque a amava, e ela tentava – mas não conseguia – acreditar. Ela jurava que o amava, e ele acreditava, porque era verdade. Mas ela não.
Jonas era feliz. Ela não.
Jonas nunca iria fazê-la feliz.
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Segunda batida
Por Rec Haddock
EXT. ESPAÇO AÉREO DO RIO DE JANEIRO. FINAL DA TARDE.
MILÊNIA está afundando o ar consigo. Ela não vê vacas nem casas voando no olho do furacão, nem vasos ou baleias pensando-se em direção ao solo. Ela é sozinha, percebe. Até os objetos a abandonaram. Milênia reflete se este vazio permitirá que seja só Milênia.
CORTA PARA:
EXT. CALÇADA DO CENTRO DO RIO DE JANEIRO. FINAL DA TARDE.
MINUTO olha por onde anda. Vê nos desenhos do chão buracos perigosos para os que não olham por onde andam. Ele não corre o risco de cair. Nunca olha para o céu. Nunca olha para o sol. Minuto repete para si que só tomba quem mira acima de si.
(MAIS)
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Lei nº 1
Por Rec Haddock
Lei nº1, de 06 de Janeiro de 1988
O Presidente da Casa da Árvore diz que o Conselho dos Mártires determina e eu aprovo a seguinte lei:
Título I
Capítulo Único
Quem Somos
Art. 1º A Casa da Árvore é a residência imperial construída sobre os galhos mais grossos do velho pessegueiro da Rua Azul, no Distrito 7.
Art. 2º Têm acesso garantido somente o Presidente e o Conselho dos Mártires. Todos os outros têm que responder as perguntas do antigo código secreto para provar lealdade e receber um visto provisório diário.
Art. 3º Toda e qualquer comunicação sobre a nossa sociedade, fora da residência imperial, deve ser feita em Código Drageo. Não são permitidas comunicações escritas, nem mesmo codificadas.
Título II
Organização dos Membros
Capítulo I
O Presidente
Art. 4º O Presidente é, por direito, o Membro com maior tempo de Casa que tenha provado valor em campo, executando Ato Heroico.
Art. 5º O Presidente tem o poder de mandar e desmandar, e a galera tem que obedecer, senão a cobra fuma mesmo.
Capítulo II
Conselho dos Mártires
Art. 6º O Conselho dos Mártires é composto pelos membros da Casa que tenham provado valor em campo, executando Ato Heroico.
Art. 7º O Ato Heroico deve ser reconhecido como tal pelos outros membros do Conselho.
Art. 8º O Conselho dos Mártires pode depor o Presidente em uma única situação. Se o Presidente virar um babaca, ele será expulso da Casa, e só poderá voltar como Membro do Conselho, com o tempo de casa zerado, e só se pedir desculpas muito bem pedidas, de joelhos, na frente de todo mundo, incluindo pelo menos duas garotas bonitas desconhecidas, caracterizando novo Ato Heroico.
Título III
O Segredo
Capítulo Único
Fica Quieto!
Art. 9º Se você vazar esse documento, o Conselho vai sumir com você e te transformar em um Mártir sem direito a cadeira no Conselho.
Título IV
As Disposições Finais
Art. 10 Todos os procedimentos e definições que os novos membros têm que saber, estão explicados no mural da Parede Sul. Se você puder encontra-la, saberá como engrossar nossas fileiras. Mas pense bem. Cuidado com o Presidente. O poder costuma subir à cabeça, e ele pode dar bastante trabalho antes de ser deposto.
Cidade de Fogo, 06 de Janeiro de 1988; 19º presidente da Casa da Árvore.
REC HADDOCK
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Complexo Onírico
Por Rec Haddock
O corpo não cabia na mala. Não importa o quanto eu esquartejasse, sempre sobrava uma parte. Tentara até me desfazer das partes menores, mas era impressionante o tamanho que o intestino podia ter.
Desta vez sobrara a cabeça.
Não sei se era o cansaço. Não sei se era o desespero. Aquilo não devia acontecer.
- Desse jeito você não vai a lugar nenhum.
A boca se mexia.
- Não quero ir a nenhum lugar, quero que você vá.
A minha boca, não.
O momento surreal, pelo menos para mim, passou despercebido. O fato da cabeça ter se apiedado da minha figura e começado a dar sugestões de como eu poderia me livrar daquela confusão não chamou a minha atenção como deveria.
- Você tem que ter alguém que possa te ajudar. Não é possível.
- Alguma loja tem que vender uma mala maior do que essa.
- Tem que existir um liquidificador em algum lugar por aqui.
Eu continuava tentando rearranjar o corpo na mala quando me dei conta de que a cabeça deveria saber se tinha um liquidificador por ali. A casa era dela.
- A casa não é minha. Eu estava aqui assaltando a casa. De repente, um cara entrou e me arrebentou todo. Foi você?
E as dores no meu corpo começaram a fazer sentido. A cabeça era minha, afinal.
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Primeira Batida
Por Rec Haddock
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EXT. CALÇADA DO CENTRO DO RIO DE JANEIRO. FINAL DA TARDE.
MINUTO está andando em uma calçada, atulhada de pessoas de toda a sorte. Os sortudos andam acompanhados de histórias. Os azarados andam acompanhados por notícias, de TV e Jornal. Minuto repara que todos andam acompanhados, no entanto. Menos ele.
CORTA PARA:
INT. ESCRITÓRIO DE MILÊNIA. FINAL DA TARDE.
MILÊNIA está sozinha, sentada em sua poltrona confortável, de frente para a sua grande janela panorâmica, que a chama.Atrás de si, todos os objetos de seu escritório começam a helicoidar, apesar de todo o peso que têm, que a prende por lá. A janela se abre no centésimo primeiro andar. Milênia pula.
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A Moldura de Multidões
Por Rec Haddock
Hoje de manhã, no caminho para o trabalho, vi um corpo desenhado a giz no asfalto. Sobre o desenho, debruçavam-se dois policiais, conversando aos sussurros. Um terceiro desviava o trânsito. Um quarto isolava a cena do crime, com fita adesiva amarela e preta. Um quinto e um sexto tomavam uma cerveja. Um sétimo continha uma pequena multidão de curiosos.
Havia, certamente, alguns outros, à paisana. Mas o que me chamou a atenção foi um último policial fardado. O oitavo.
Ele fazia perguntas aos civis que orbitavam a cena. Me afastei. O desenho estava vazio. O oitavo queria recheá-lo.
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________________________________________________________________Para cada arroubo de felicidade, a balança.
Por Rec Haddock
Imediatamente me lembrei de todas as dívidas que tinha com aquele homem. Tudo o que não soube como pagar, quando pude. Agora tudo ficará ainda mais difícil.
Para um cara tímido, era bom não precisar falar para ser compreendido. Para quem via de longe, ele era um cara que falava muito, mas para mim, ele sempre foi um ótimo ouvinte.
Quando soube, a princípio, as lágrimas não vieram. Veio à descrença pela impossibilidade daquela notícia aterradora. Um homem tão jovem em espírito. Jogando basquete como um garoto. Um mal súbito em um coração que os poetas teimam em ignorar. Não o coração metafórico. Mas, o músculo que bombeia, entope e descompassa.
Se a vida fosse mais poesia e menos dor, a vida teria o nome dele. Mas, o destino por vezes é daltônico, e não entende que o vazio que ele deixa em cor escurece o mundo, e deixa a vida mais cinza.
É incrível o quanto a ausência definitiva de alguém tão ausente no nosso cotidiano pode ser tão arrasadora.
Depois as lágrimas vieram. E depois vieram de novo. Sempre com um doce sabor de carinho. Acho que elas não vão deixar de vir tão cedo, sempre que eu lembrar dele. Mas não importa o quanto eu derrame lágrimas, nunca terei chorado o bastante.
Um luto escondido em mim.
A vida que segue, porque tem que seguir.
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Pretérito Imperfeito
Por Rec Haddock
O verbo amar não deveria ter pretérito.
Porque o amor é intransitivo constitucional.
Ama quem ama! O resto? Passado.
E recente ou distante, que importa?
É só mais uma matéria de jornal.
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