Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
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sábado, 22 de fevereiro de 2014

Quarta-feira

Por Rodrigo Amém


Ao lado da coroa de flores, a imagem de São Jorge oscilava a luz de velas. Clara tirava da bolsa o último lencinho descartável. Pelas paredes o surdo sincopado reverberava vindo das ruas, pressionando o silêncio do ambiente hermético. Um palhaço entrou e limpou a garganta, pedindo atenção.

- Dona Clara. Estamos prontos.

Clara levantou a cabeça e contemplou a figura de sapatos exageradamente grandes, peruca, nariz vermelho e maquiagem ao lado do caixão de Mauro. Algo que lembrava um sorriso se fez notar em seu rosto por um segundo. Ela se levantou.

- Mais uma vez, Dona Clara. Eu quero pedir desculpas pela correria... e pelos trajes. A senhora sabe...

- Não precisa se desculpar. Eu sei que você está abrindo uma exceção. E é pra atender o desejo dele.

- Por aqui, por favor – conduziu o palhaço.

Na sala adjacente, um homem baixo, peludo e de bigode grosso preparava o que parecia ser uma esteira de metal junto a uma enorme máquina colada à parede. A não ser pelo vestido de baiana, o turbante cheio de frutas e os enormes brincos, o homem mantinha a expressão fechada. Ao seu lado, um rapaz magricela vestido de Teletubbie anotava algo numa prancheta. Os dois pararam quando a bailarina e o palhaço entraram na sala.

- Estes são meus assistentes, Dona Clara. Rapazes, por favor. – O palhaço apontou para a sala anterior. Os dois saíram apressados para trazer o caixão.

Em alguns momentos, Mauro já estava sobre a esteira. Solenes, o palhaço, a baiana, a bailarina e o Teletubbie. Observam o esquife.

- Podemos começar, Dona Clara?

- Vocês se importam se eu disser algumas palavras antes?
Todos balançaram a cabeça em respeito.

- Eu conheci Mauro no Carnaval. Faz 20 anos. Aqui no Rio. Ele estava de padre sacana. Eu estava de Mortícia Adams. Foi no Cordão da Bola Preta. Foi a última vez que nossas fantasias de carnaval não combinaram. Mauro dizia ser um homem de duas paixões. O carnaval e eu. Não necessariamente nessa ordem. A gente se mudou do Rio, mas a gente sempre voltava para o carnaval. Ele fazia questão. Quando ele ficou doente, o médico recomendou que seria arriscado viajar. O esforço seria “irresponsável”. Mauro me olhou e disse: não tem risco que me separe dos meus dois amores. Quando ele caiu, ali, do lado da bateria, a gente já sabia. Ele só me disse: “se eu fui feliz nessa vida, foi porque um amor sempre me trouxe para visitar o outro”. Acho que é hora da gente revezar, meu amor. É hora do carnaval te levar. Mas eu juro, meu amor, eu sempre voltarei pra vocês. Fica em paz, meu amor.

Clara soluçou, olhou para o palhaço e fez que sim com a cabeça. A baiana de bigodes enxugou uma lágrima, e apertou o botão que abriu o crematório. A esteira metálica conduziu o caixão para dentro da máquina. As labaredas começaram a lamber a madeira e a porta se fechou, isolando o calor do forno. A bailarina, o palhaço, a baiana e o teletubbie se uniram numa prece silenciosa e espontânea. Pelas paredes, o surdo lá fora reverberava numa cadência que lembrava “Bandeira Branca”.


Clara despejou as cinzas de Mauro no percurso do último bloco do carnaval, para que as sandálias das passistas partilhassem com ele seu último samba. 



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