Ao
lado da coroa de flores, a imagem de São Jorge oscilava a luz de velas. Clara
tirava da bolsa o último lencinho descartável. Pelas paredes o surdo sincopado
reverberava vindo das ruas, pressionando o silêncio do ambiente hermético. Um palhaço
entrou e limpou a garganta, pedindo atenção.
-
Dona Clara. Estamos prontos.
Clara
levantou a cabeça e contemplou a figura de sapatos exageradamente grandes,
peruca, nariz vermelho e maquiagem ao lado do caixão de Mauro. Algo que
lembrava um sorriso se fez notar em seu rosto por um segundo. Ela se levantou.
-
Mais uma vez, Dona Clara. Eu quero pedir desculpas pela correria... e pelos
trajes. A senhora sabe...
-
Não precisa se desculpar. Eu sei que você está abrindo uma exceção. E é pra
atender o desejo dele.
- Por
aqui, por favor – conduziu o palhaço.
Na
sala adjacente, um homem baixo, peludo e de bigode grosso preparava o que
parecia ser uma esteira de metal junto a uma enorme máquina colada à parede. A
não ser pelo vestido de baiana, o turbante cheio de frutas e os enormes
brincos, o homem mantinha a expressão fechada. Ao seu lado, um rapaz magricela
vestido de Teletubbie anotava algo numa prancheta. Os dois pararam quando a
bailarina e o palhaço entraram na sala.
-
Estes são meus assistentes, Dona Clara. Rapazes, por favor. – O palhaço apontou
para a sala anterior. Os dois saíram apressados para trazer o caixão.
Em
alguns momentos, Mauro já estava sobre a esteira. Solenes, o palhaço, a baiana,
a bailarina e o Teletubbie. Observam o esquife.
- Podemos
começar, Dona Clara?
-
Vocês se importam se eu disser algumas palavras antes?
Todos
balançaram a cabeça em respeito.
- Eu
conheci Mauro no Carnaval. Faz 20 anos. Aqui no Rio. Ele estava de padre
sacana. Eu estava de Mortícia Adams. Foi no Cordão da Bola Preta. Foi a última
vez que nossas fantasias de carnaval não combinaram. Mauro dizia ser um homem
de duas paixões. O carnaval e eu. Não necessariamente nessa ordem. A gente se
mudou do Rio, mas a gente sempre voltava para o carnaval. Ele fazia questão.
Quando ele ficou doente, o médico recomendou que seria arriscado viajar. O
esforço seria “irresponsável”. Mauro me olhou e disse: não tem risco que me
separe dos meus dois amores. Quando ele caiu, ali, do lado da bateria, a gente
já sabia. Ele só me disse: “se eu fui feliz nessa vida, foi porque um amor
sempre me trouxe para visitar o outro”. Acho que é hora da gente revezar, meu
amor. É hora do carnaval te levar. Mas eu juro, meu amor, eu sempre voltarei
pra vocês. Fica em paz, meu amor.
Clara
soluçou, olhou para o palhaço e fez que sim com a cabeça. A baiana de bigodes
enxugou uma lágrima, e apertou o botão que abriu o crematório. A esteira
metálica conduziu o caixão para dentro da máquina. As labaredas começaram a
lamber a madeira e a porta se fechou, isolando o calor do forno. A bailarina, o
palhaço, a baiana e o teletubbie se uniram numa prece silenciosa e espontânea.
Pelas paredes, o surdo lá fora reverberava numa cadência que lembrava “Bandeira
Branca”.
Clara
despejou as cinzas de Mauro no percurso do último bloco do carnaval, para que
as sandálias das passistas partilhassem com ele seu último samba.
Gostou do que leu? Esse texto é de autoria de Rodrigo Amém e sua reprodução total ou parcial dependem de prévia autorização do autor. Entre em contato conosco para maiores informações.
Os comentários postados abaixo são abertos ao público e não expressam a opinião do blog e de seus autores.
Gostou do que leu? Esse texto é de autoria de Rodrigo Amém e sua reprodução total ou parcial dependem de prévia autorização do autor. Entre em contato conosco para maiores informações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela gentileza! Aguardamos a sua volta.