Por Bernardo Sardinha
Antes de entrar naquele
fatídico brechó da Rua do Carmo, desligou o celular para não ser incomodado e
respirou fundo. O ar tinha gosto de mofo e remédio de barata. A loja estava uma
zona, com alguns livros empilhados no chão e ao fundo um outro crime: uma
montanha de livros amontoados como se estivessem prestes a serem queimados em
uma pira nazista. Fui até o balconista, um jovem com menos de vinte anos que
atrás do balcão, não tirava os olhos do celular, que pelo barulhinho dava para
perceber que estava jogando Candy Crush.
-
Seu Manoel?
- Lá
no fundo - disse ele sem olhar na minha cara.
No
fundo da loja estava Seu Manoel, um senhor com uns setenta anos, mas com cara
de noventa que estava se divertindo vendo seu gato caçar uma barata tonta. Ele
gritou rouco quando me viu:
-
Garoto! Como você vai?
-
Estou bem. Vim atrás da bíblia. Você realmente vai vender?
-
Sim. Porque não? Você foi o único que mostrou interesse por ela durante anos. E
agora...
- O
que é aquela montanha de livros ali?
-
Ah... São livros de direito - falou com desdém.
Seu
Manoel, com passinhos de bebê, me levou aonde ele guardava os livros valiosos.
Era um armário de ferro escuro e enferrujado.
- Estou
me desfazendo de todas as minhas preciosidades. Não tenho lugar para eles lá em
casa. E se eu morrer, é capaz da minha esposa jogar tudo fora. Então, eu
prefiro que fique com gente que dê valor. Entende?
Seu
Manoel abriu a gaveta e colocou o exemplar a bíblia que por tantos anos tentei
comprar dele. Nem acreditei quando ele tinha me ligado dizendo que ia me fazer
um preço camarada.
A
bíblia, uma edição inglesa de 1631, é famosa por causa de um erro de quem a
imprimiu. No sétimo mandamento, ao invés de imprimir "Não cometerás
adultério", o tipógrafo colocou "Cometerás adultério". Obviamente,
quando a igreja descobriu isso, ordenou que todas as bíblias daquela edição
fossem queimadas. Mas quatro exemplares sobreviveram e chegaram aos tempos
atuais. Não preciso dizer que para colecionadores como eu, aquela bíblia era
algo muito valioso.
Enquanto
fazia o cheque, vi Seu Manoel se despedir dolorosamente do livro folheando com
carinho suas páginas. Dei o cheque gordo para ele e sai correndo daquele brechó
feliz feito uma criança que completa um álbum de figurinha.
Continua...
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