De repente
Por Marcela de Holanda
— Carla!
— Oi. Nem tinha te visto aí. Tudo bem, Marina?
— Tudo. Agora tá tudo ótimo. Casei. Estou esperando meu primeiro filho...
— Nossa. Parabéns. Como o tempo passa, né?
— Pois é. Tem o que? Oito anos? Acho que é isso, oito anos que você desapareceu do nada, parou de responder minhas mensagens e atender minhas ligações.
— Oito anos? Tudo isso?
— Tudo isso. Mas não se preocupa, eu demorei uns três anos mas achei uma nova melhor
amiga.
— Olha, Marina. Eu não sei nem o que te dizer. Desculpa. Eu sei que foi muita covardia da
minha parte sumir sem dar explicação. Mas...
— Mas o que? O que aconteceu? O que foi que eu fiz? Eu juro que pensei muito mas não
consegui imaginar nenhuma razão para você se afastar sem me dar nenhuma satisfação. A gente se via todos os dias. Você era tratada pela minha família como se fosse minha irmã.
— Eu sei. Eu sei. Você não fez nada. Por isso eu não tive coragem de falar qualquer coisa. Eu cheguei da sua casa, fui dormir e quando acordei no dia seguinte eu já não era mais sua amiga. Eu simplesmente sabia que não era. Sabia que não ia conseguir olhar mais para você porque você ia perceber. E ia querer uma explicação. E eu não saberia o que dizer. Mas sabia que não queria fazer mais nada com você. Me desculpa. Realmente. Eu não sei porque isso aconteceu.
— Nossa. De todos os motivos que eu cogitei nenhum era tão ruim quanto não ter motivo nenhum. Você sabia que eu perdi meu pai na semana seguinte? Você imagina o quanto eu precisava de você? Mas ouvindo você falar agora eu acho que foi melhor assim mesmo. Você não era o tipo de pessoa que eu pensava que era.
— Não. Eu não sabia. Sinto muito. Mas não foi minha culpa, sabe? Foi uma coisa incontrolável. Para você ter uma ideia. Lembra de como eu era viciada em chocolate?
— Claro que lembro. Eu sempre estava acima do peso porque comia junto. E você não engordava nada.
— Então. No mesmo dia em que eu acordei e não era mais sua amiga eu também acordei e não queria mais comer chocolate.
— Ah, tá. Aí sim. Foi um desequilíbrio mental grave então. Chegou a ser internada?
— Para. É sério. Só que uns dias depois eu já queria comer de novo. Mas como eu nunca mais tive vontade de ser sua amiga, eu não achei justo e não comi mais chocolate.
— Poxa. Quanta consideração. Obrigada.
— Ouve. Eu sei que eu te magoei. E que o que eu fiz não tem perdão. Mas saiba que eu nunca deixei de desejar que você fosse feliz.
— Eu também. Apesar da raiva, de não compreender e tudo. Eu sempre torci para que você estivesse feliz em algum lugar.
— Obrigada, Marina. Você sempre foi uma excelente amiga. E vai ser uma mãe maravilhosa. Tenho certeza.
— Obrigada. Eu também acho que sim. Toma.
— O que é isso?
— Não era esse o seu chocolate preferido? Pode comer. Se liberta. A vida seguiu e eu também.
— Obrigada. Quem sabe a gente não marca de sair para conversar melhor e...
— Não. Melhor não.
— É. Tem razão. Bom, de repente um outro dia a gente se esbarra por aí.
— É. De repente. Quem sabe?
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Por Marcela de Holanda
Não mudar é a certeza de morrer sem avançar nenhuma fase no jogo. Mudar dói. Não mudar corrói entre um café e outro, dia a dia. Viver dentro das possibilidades do corpo atrofia a alma. É preciso expandir. É preciso transcender. Sem coragem não se vai nem do banheiro à cozinha. Com coragem você vai até para lugares que não existem. Você cria novas fronteiras e vai as empurrando até o infinito. Esqueça tudo que trava. É preciso esquecer. Voltar ao estágio inicial, da criança que não sabe do que não é capaz e, por isso, é capaz de tudo. Se amar é possível, o que não será? Acreditar e se jogar. Cair, cair, cair. O fundo? Bem, o fundo não existe.
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Contramão
Por Marcela de Holanda
Ele era o que se pode chamar de diferente. Ele não fazia sentido em um mundo em que o sentido andava na contramão. Quando nasceu, não chorou. Ninguém ousaria chamar de choro, embora expulsasse o ar dos seus pulmões, tamanha era alegria que ele era capaz de expressar por estar ali, era mais um grito de comemoração, uma declaração de liberdade. No começo, encantava pelas suas peculiaridades, mas conforme foi crescendo elas começaram a incomodar. Recusava-se a competir em qualquer circunstância. Deixava sua mãe irritada quando saíam na rua porque queria parar para conversar com todos os sem teto. Não conseguia compreender, precisava perguntar, ninguém oferecia uma resposta satisfatória para aquela situação e tudo que sua mãe podia dizer era que as coisas eram assim mesmo e que eles não podiam parar, que era perigoso. Um dia lhe disseram que ele tinha cabelos lindos de fazer inveja. Daquele dia em diante, raspou a cabeça e nunca mais deixou crescer mesmo diante de protestos inconformados e pedidos de namoradas. As namoradas o admiravam enormemente mas ao mesmo tempo não suportavam ficar muito tempo com ele. Ele as exasperava, elas não conseguiam o compreender com aquela ausência de ciúmes, com aquela calma inabalável. Esse menino não existe! Nesse ponto, todos concordavam. Difícil era respeitar suas escolhas, sua alimentação saudável, sua consciência ambiental, seu engajamento político. Para a maioria, era considerado um chato ou uma fraude. Possivelmente alguém que esconde um segredo inominável. Mas ele era só ele. E ele era assim, simples assim. Aos 18 anos, presenciou um grupo de adolescentes espancando um cachorro na rua. Resolveu interferir. Apanhou. Não revidou. O cachorro fugiu. Apanhou. Não revidou. Apanhou. Não revidou. Partiu desse mundo sem uma raiva no coração. Pior para o mundo. Ponto para ele que para cá não voltou mais.
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Menu do dia
Por Marcela de Holanda
— Eu vou querer esse camarão e uma salada da casa. Você já sabe o que vai pedir?
— Sei.
— Então, chama o garçom, por favor.
— Ainda não.
— Por que não? Eu não comi nada o dia inteiro.
— Eu chamo já. Mas meu pedido não é para ele. É para você.
— Para mim? O que é?
— Eu quero que você me ajude a vender meu apartamento.
— Vai vender? Mas ele é tão bom. Você adora aquele lugar.
— Eu sei. Mas ele não me serve mais e eu vou precisar da grana.
— Bom, te ajudo, claro.
— Não vai me perguntar porque ele não me serve mais?
— Se você quiser me dizer.
— Eu vou me mudar.
— Espero que sim. Se você vender e continuar lá a gente vai ter um problema.
— Gracinha. Eu quis dizer do país.
— O que? Por que? Quando?
— Assim que eu conseguir resolver as coisas por aqui. Mas no máximo em três meses. Me ofereceram uma vaga na filial de Barcelona.
— Uau. Que máximo, Igor. Parabéns.
— Obrigado. Acho que pode ser uma boa oportunidade.
— Ah, com certeza. E quem sabe assim você consegue esquecer a Mariana de vez.
— Eu já esqueci, Carol.
— Se você diz... Vou sentir saudades de você. Mas quem sabe eu não vá te visitar um dia? Eu sempre quis conhecer Barcelona.
— Sobre isso, eu gostaria que você me ajudasse a achar um apartamento lá.
— Você quer que eu vá até a Espanha para te ajudar a escolher um apartamento para você?
— Na verdade, não.
— Você quer que eu ajude vendo as fotos daqui?
— Também não. Eu quero que você voe até lá comigo e ache um apartamento para nós dois.
— O que?
— Eu quero que você esqueça que eu já fui um babaca de achar que era melhor a gente continuar só como amigos. E que você saiba que eu nunca fui tão feliz quanto nos meses em que nós fomos mais que isso. Eu quero que você esqueça o que eu te contei sobre as outras que vieram depois. Eu quero que você largue tudo e venha comigo. Eu quero que você confie que a gente vai dar um jeito nas coisas. Eu quero tentar de novo. Eu quero que você venha comigo para Barcelona como minha mulher. Ninguém me entende como você, ninguém me faz sorrir como você me faz, ninguém faz um brigadeiro tão gostoso quanto o seu nos dias de chuva, ninguém sabe melhor que você os filmes e as músicas que eu vou gostar, ninguém mais tem coragem de espremer os cravos das minhas costas, ninguém mais me diz a verdade não importa o quanto ela seja dura. Eu te amo, Carol. Eu tive medo de admitir porque eu não queria te perder. Porque eu sempre estrago tudo com as mulheres. Você sabe melhor que ninguém. Mas eu vou fazer o possível para não estragar dessa vez. Você embarca comigo nessa?
— Com licença, os senhores já sabem o que vão pedir?
— Sim.
— Para mim ou para ele?
— Para ele, Igor. Eu vou querer um camarão com uma salada da casa e pro cavalheiro aqui um frango à milanesa com batatas, por favor.
— Alguma coisa para beber?
— Vocês têm espumante?
— Temos, sim, senhora.
— Uma garrafa, por favor.
— Espumante? Então, é uma comemoração. Você aceita o meu pedido?
— Você disse que te deram três meses. Eu te dou dois meses para me fazer feliz a ponto de largar tudo. Pode começar.
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Pisca pisca
Por Marcela de Holanda
É preciso abrir os olhos para ver
Que parado não se sai do lugar
Que a escada da vida não é rolante
Que o tamanho do nosso mundo é a gente que faz
Que há beleza em quase todo canto
Que feliz é quem não se acomoda na tristeza
Que o depois pode não chegar e a toda hora tem um agora
Que é melhor viver flor do que pedra
Que para conseguir é necessário tentar
É preciso fechar os olhos para ver
Que não é preciso uma ventania para refrescar um coração
Que você precisa achar as perguntas antes das respostas
Que solidão é a falta de contato consigo
Que para dentro há um infinito inexplorado
Que ninguém te tira o que foi bem guardado
É preciso amor para olhar
Ou só se enxerga, sem ver.
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O que em ti voa – O convite
Por Marcela de Holanda
Era um domingo de sol e Fernando olhava desolado para o painel do Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, onde dizia que seu voo estava com um atraso de duas horas previsto. Ele já não sabia muito bem porque estava ali. Não estava muito certo da sua decisão. Resolveu dar uma volta pelo aeroporto para refletir antes de despachar sua mala.
Na área de embarques nacionais, uma mulher chamou sua atenção. Ela estava sentada com os pés em cima da cadeira, tinha o cabelo preso de uma maneira meio desajeitada e olhos cor de mel que pareciam devorar o livro à frente. Se aproximou um pouco mais e viu que era um guia de Paris. Uma ideia louca passou pela sua cabeça. Mas ele andava tão mal nos últimos dias que só de pensar naquela pequena loucura foi invadido de uma nova esperança. Resolveu arriscar. Sentou ao lado da mulher que lia o guia e uns minutos depois tomou coragem para falar.
— Com licença, acho que você está na área errada. Os embarques para Paris não são aqui.
— Ahn? Quem disse que eu estou indo para Paris?
— O livro.
— Ah, não. É só um livro.
— Me desculpa então. Presumi errado. Deixa eu me apresentar. Meu nome é Fernando. Posso saber o seu?
— Clara.
— E posso saber seu destino, Clara?
— Curitiba.
— Passeio?
— Mãe.
— Você é de lá?
— Sou.
— Nossa. Não tem nenhum sotaque.
— Faz tempo.
— E você gostaria de ir a Paris?
— Que tipo de pergunta é essa?
— Não é uma pergunta. É um convite.
— Tá louco? Obrigada, mas eu não estou interessada.
— Espera. Você ainda nem ouviu a minha proposta.
— Nem preciso.
— Não é que o você está pensando. Sem querer ofender, eu não estou interessado em você. Eu preciso da sua ajuda. Queria propor uma troca.
— Troca? To ouvindo.
— Olha, eu vou ser bem sincero e direto porque a gente não tem muito tempo. Mas antes de tudo, o mais importante. Você por acaso tá com o seu passaporte aí?
— To. Eu estou sempre com ele. Gosto de pensar que posso ir para onde quiser quando quiser.
— Sabia que você era a pessoa certa. Acontece que eu tenho uma viagem completa reservada para duas pessoas passando pela Itália, França, Inglaterra e Espanha. Mas como você pode ver, eu estou sozinho. Planejei tudo durante um ano para ir com a minha namorada. A gente ia comemorar nosso aniversário de quatro anos de namoro e eu pretendia pedir a mão dela. Mas ontem, com as malas prontas, ela surtou. Não vou entrar em detalhes agora. Mas ela foi embora, disse que eu era muito previsível e que ela não aguentava mais e eu quero provar que ela estava errada. Eu sei que ela é a mulher da minha vida e que ainda vai perceber que eu sou o homem da vida dela. Por isso resolvi ir mesmo sem ela. Porque não é o que ela espera que eu faça. Quando te vi sentada aí me passou uma coisa pela cabeça. Se eu viajasse com uma completa desconhecida seria totalmente imprevisível. E você poderia registrar toda a viagem pra mostrar pra ela tudo que ela perdeu e como eu posso ser divertido. Em troca, você conhece todos esses lugares de graça. Eu compro sua passagem agora e a gente vai.
— Olha, não sei não. Eu não te conheço e nem tenho roupas para isso. Em Curitiba faz frio, mas nem tanto. E eu só trouxe essa mala de mão.
— Eu compro o que você precisar quando a gente chegar lá.
— Mas se estava tudo reservado para um casal, eu vou ter que dormir com você?
— No mesmo quarto. Mas peço para colocarem duas camas de solteiro e não encosto um dedo em você.
— E como eu vou saber que tudo isso é verdade?
— Você vai ter que acreditar na tristeza dos meus olhos.
— Não sei não.
— O voo sai daqui a pouco. É minha última chance de comprar a sua passagem. Ainda tenho que despachar minha mala. Você vai ou não?
— Vou.
— Ótimo. Deixa que eu levo a sua mala.
Clara sorri sem a menor certeza do que está fazendo. Mas não consegue resistir à ideia de mudar seu destino de uma hora para outra. Essa sensação de ser dona do próprio caminho, de mudar seu mundo com as suas escolhas. Furada ou não, era alguma coisa nova acontecendo. A mãe teria que esperar um pouco mais.
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Rosto
Por Marcela de Holanda
E sem que percebesse, por trás das máscaras já não havia mais rosto. Havia se dissolvido ao longo dos anos por falta de uso. Eram tantas máscaras uma por cima da outra, uma para cada ocasião. Usava qualquer uma com maestria, mas não as tirava nem para dormir. Foi pega desprevenida quando todas caíram de uma vez ao encontrar com ela, aquela mascarada de definitiva. A Morte. Olhou-se através dos olhos dela e viu sendo refletida apenas uma moldura disforme. Tentou caminhar na direção da Luz como tinha ouvido dizer que era o certo, mas não tinha coragem de chegar seja onde fosse naquele estado. Vagou por aí a procura de outras máscaras, de outros rostos, de si mesma. Nada encontrou além do nada que por toda parte havia. Sem ser propriamente ninguém, ela não era capaz de chegar a lugar algum. Paralisou. Incapaz de se mover começou um percurso diferente. Andou por todo canto lá dentro juntando pequenos pedaços de quem tinha sido enquanto ainda era. Chegou à conclusão de que teria que se reinventar. E quando começou, nasceu para uma nova vida e fez tudo diferente.
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No mural
Por Marcela de Holanda
Nando. Você sempre reclama que eu pareço esconder nosso amor do mundo. Que eu não faço demonstrações públicas de afeto o suficiente. Que você gostaria de ter nosso amor por escrito para que pudesse reler sempre que batesse insegurança. Por isso, estou registrando aqui no seu mural para quem quiser ler e para que você guarde para sempre. Você foi a melhor coisa que já me aconteceu. Antes eu estava quase sempre triste sem saber bem o porquê. Não me sentia confortável em lugar nenhum. Não entendia o que me faltava. Hoje eu não sei como sobrevivi tanto tempo sem você do meu lado. Era como se a minha alma vivesse em Londres, nublada, e agora pulsasse com a energia solar do Rio. E eu trocaria uma vida inteira nublada por esse nosso ano de sol. Sorte que eu não preciso fazer isso e que muitos anos podemos ter pela frente. Com você eu quero conhecer o mundo, saltar de paraquedas, fazer o jantar, brigar pelo controle remoto, andar de mãos dadas, chorar, gargalhar, descobrir, envelhecer. Eu nunca pensei que um dia quereria casar, ter filhos e tal. Mas com você nada parece mais natural, embora difícil. Mas eu não tenho mais medo do difícil. Eu, você e nosso amor já formamos uma família. Eu te amo. Obrigado por fazer de mim um cara melhor. Me desculpa por não conseguir ser sempre do jeito que você gostaria. Mas não tem nada que eu queira mais do que te fazer feliz. Beijos, do para sempre seu.
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Tempo
Por Marcela de Holanda
Tempo. Sempre passando tão rápido que fica difícil se manter no presente. Como um touro que se tenta agarrar à unha, ele te joga pra lá e pra cá. Se você se deixa levar pra trás vai encontrar muitas coisas que não tem mais. Para umas vai pensar “Graças a Deus”, mas para outras protestará “Por que, meu Deus?”. Quando visitar o passado não se demore. Corra para se alcançar assim que puder. Mas quando ele te projeta para frente sabe lá onde você vai parar. Num futuro desejado, num futuro temido, no vazio de não mais existir, numa incerteza com certeza. Ah, a dor de inventar mil futuros esperando um momento chegar. Estar fora de si, não se encaixar, ansiar. Tempo, para que a pressa? Chega lá um pouco atrasado, mas se dê o prazer de admirar as belezas do caminho. Vai com calma. Ouve, Tempo. Está vendo aquela pessoa a quem chamei, chamo e chamarei de meu amor? Nos leve sempre juntos ao longo do tempo, seu Tempo. Independente do tempo que o tempo todo durar, nos deixe amar por todo o tempo e nós nos deixaremos levar suavemente pelo tempo que for.
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Traição
Por Marcela de Holanda
Naquela manhã, acordou com o coração pesado e o amor desgrenhado. Sua cabeça não conseguia se desviar um segundo do acontecido. As imagens voltavam a todo momento. Não conseguia vislumbrar um plano para seguir em frente. Nunca tinha imaginado que um dia veria ele fazendo aquilo com ela. Doía demais. A confiança sempre tinha sido o forte da relação dos dois. E ainda pior do que a traição em si tinha sido a falta de cuidado. Se pelo menos ele tivesse tido o cuidado de esconder... Se não tivesse exposto aquele desrespeito para quem quisesse ver. Amigos dos dois estavam por perto. Ela viu. Ninguém contou. E todos viram que ela tinha visto. Enquanto escovava os dentes se olhou no espelho e tentou imaginar se teria mudado tanto assim nos últimos anos. Será que ele não se sentia mais atraído por ela como antes? O que será que tinha feito de errado para as coisas se encaminharem pra aquilo? Se sentiu envergonhada por se culpar pela traição do marido. Era só o que faltava. Ele chegaria daqui a pouco para almoçar em casa. Decidiu que precisava estar linda quando ele chegasse e tomou as providências necessárias. Não sabia como se sentiria quando ele chegasse. A dor e a raiva ainda estavam muito presentes. Como perdoá-lo e recebê-lo como se nada tivesse acontecido? Como culpá-lo pela traição que ele nem sabia ter cometido nos seus sonhos? Resolveu engolir a mágoa e não contar nada que era pra não dar ideia.
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Carteira
Por Marcela de Holanda
— Passa a carteira.
— Calma.
— Calma coisa nenhuma. Me dá sua carteira.
— Tá aqui.
— Tá achando que pode me enganar? Cadê o cartão?
— Tá aí.
— Não esse. O de crédito.
— Não sei. Devia estar aí.
— Eduardo, cadê o cartão de crédito?
— Por que isso agora, amor?
— Você sabe muito bem.
— Se você quer comprar alguma coisa, é só me pedir. Eu compro para você.
— Eu não quero comprar nada.
— Vai fazer o que com o cartão então?
— Picadinho.
— Tá maluca?
— Eu que estou maluca? Você compra cinco camisas do Flamengo e quatro óculos e eu que estou maluca? Eu vi na fatura.
— Mas não foram cinco camisas iguais. Elas são bem diferentes aliás. E são perfeitas pra usar na academia!
— Você precisa se tratar. É sério. Tá virando uma compulsão.
— Desculpa, amor. Se você quiser eu mando devolver tudo quando chegar.
— Sério?
— Se é importante para você, eu devolvo. Só tem uma coisa. Os óculos são para você. Era para ser uma surpresa. Eu só comprei quatro porque queria que cada um combinasse com uma das suas bolsas preferidas.
— Sério?
— Sério.
— Bom, se você acha que pode pagar e que o dinheiro não vai fazer falta agora. Dessa vez passa. Mas se controla. Tá bem?
— Claro.
— Toma aqui a sua carteira.
— Valeu.
— Te amo.
— Eu também.
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Positivo
Por Marcela de Holanda
Era um jardim sem fim. As árvores davam chocolates de todos os sabores. O sol brilhava, mas a gente não derretia. Flocos de neve caíam magicamente de nuvem nenhuma e deslizavam pela nossa pele como um carinho do céu. Conforme a gente corria, a grama mudava de cor. Cem pássaros cantavam a nossa canção. Chegamos a um rio. Em meio a suas águas, vimos nossas lágrimas ao longo do tempo derramadas carregadas com as dores passadas sendo levadas pela correnteza para bem longe. Gargalhamos embriagados um do outro e ficamos tão leves que nossos pés não tocavam mais o chão. Era um abraço sem fim. Era um não saber mais onde começava e onde terminava. Era dia e era noite. Era agora e era para sempre. Era você e eu.
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Emma
Por Marcela de Holanda
Quando fez 12 anos, Emma se tornou uma devoradora de livros. Tinha mudado de escola naquele ano e encontrava dificuldade para fazer novos amigos. Assim, passava a maior parte do tempo viajando pelas páginas. Seus pais a incentivavam e compravam quantos livros a menina quisesse.
Até que um dia, ela encontrou seu preferido. Para começar, a protagonista tinha o mesmo nome que ela. Emma se apaixonou pela história da outra Emma. Leu e releu o livro incontáveis vezes até que decidiu. Não era justo que uma mulher tão incrível daquelas existisse só na ficção. Não. Emma seguiria seus passos e se tornaria ela mesma a outra Emma. Acreditava que esse era seu destino e que assim tudo sairia exatamente igual e que alcançaria o final tão esperado.
O livro começava com a outra Emma já adulta. Então, nossa pequena Emma teve que esperar um pouco e foi se preparando como pôde. Se dedicou bastante na escola já que sabia que precisaria disso para passar no vestibular e se tornar uma advogada de sucesso como sua heroína. Essa parte ela conseguiu realizar. Se formou no tempo correto na melhor faculdade da cidade. Passou no exame da OAB de primeira.
O passo seguinte, era encontrar um homem com as características exatas. Ela deveria se casar com um cara chamado Daniel que fosse moreno, de olhos bem escuros e professor de saxofone. Essa procura demorou três anos. Mas não é que encontrou mesmo? Casaram-se num dia 27 de abril na areia da praia assim como ela sempre soube que seria.
O capítulo seguinte de sua vida deixava Emma um pouco tensa. Mas ela não podia pulá-lo. Sabia que ele era fundamental, embora um pouco doloroso e indecoroso. Ela devia engravidar de um amigo do marido. Sorte que no livro o amigo permanecia bastante misterioso. Então, seu amante não tinha características definidas, apenas o nome. Por azar, seu marido não tinha nenhum amigo chamado Antônio. Esperou dois anos até que num jantar na sua casa, por acaso, descobriu que o melhor amigo do Daniel, chamado Carlos, era na verdade Antônio Carlos. Seguiu as instruções do livro e conseguiu seduzi-lo. Traiu o marido apenas uma noite. E engravidou.
Tudo estava saindo de acordo com o planejado, embora ela não se sentisse feliz como previa. Sabia que o sofrimento da heroína fazia parte de todo bom livro e seguiu em frente. Com cinco meses de gravidez, aconteceu o que ela temia. Seu plano sofreu um desvio irrecuperável. O bebê que esperava não era um menino. Pode parecer um detalhe, mas invalidava toda a trama. Como ela poderia colocar no filho o mesmo nome do pai biológico e manter esse segredo se teria uma menina?
Passou uma semana sem dormir procurando uma solução. Acabou decidindo abandonar tudo. Deixou o marido para trás, fez as malas e, mesmo com uma barriga já grande, pegou o primeiro avião. Tinha um bom dinheiro guardado. Cursou faculdade de moda, trabalhava meio período e era mãe no tempo que sobrava. Acabou abrindo uma grife de comércio apenas virtual que alcançou um tremendo sucesso e viajava o mundo com sua filha, Antônia, buscando tendências. Só contou quem era o pai dela quando Antônia já tinha 18 anos. A filha demorou 10 anos para perdoá-la. Já para o fim da vida, Emma escreveu um livro. Um livro sobre a história de uma menina que queria ser uma personagem de livro. E conseguiu.
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Bênção
Por Marcela de Holanda
Passa suas mãos nos meus cabelos
Para sentir que o Amor
Para mim não tem mais nó
Desde sua chegada nessa casa
Minha vida iluminada
Nunca mais me senti só
Diz nos meus ouvidos suas preces
Para que eu possa descobrir
O que fazer para te ajudar
Deixa eu cultivar o seu sorriso
Te esquentar com meu carinho
Aliviar seu caminhar
Encosta sua mão na minha testa
Sente aí meu pensamento
Sempre por você vibrar
Desde sua chegada na minha vida
A minha visão preferida
É ver você se aproximar
Sente toda a felicidade
Que cada dia me invade
Só por você existir
Deixa eu tentar retribuir
Emanando esse amor
Do acordar até o dormir.
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Voto secreto
Por Marcela de Holanda
Pedro (8 anos) conversa com sua mãe Elisa (33 anos)
– Mãe, cê já sabe em quem vai votar?
– Ih, filho. Nem pensei nisso ainda.
– Mas, mãe, a eleição num tá chegando?
– Tem tempo, filho. Eu assisto o último debate e decido.
– Ah.....
….........................................
– E aí, mãe? Decidiu?
– Ah, filho. Eu achei a candidata X muito boa. Concordo com a maioria das coisas que ela pensa. Mas ela não tem a menor chance. Seria jogar meu voto fora. Essas outras aí são muito feias. Como vão representar o Brasil? O que vão pensar das mulheres brasileiras? O candidato Y parece que tem chance. Acho que vou apostar nele. Eu quase sempre perco nas eleições. Quem sabe dessa vez eu acerto quem vai ganhar?
– Tem certeza?
– Acho que sim.
– Ah.......
…..............................................
– Mãe, posso entrar pra votar com você?
– Claro, filho.
– Mãe, posso apertar os botões?
– Pode, filho. Tá aqui a cola no papel.
…..
– Filho, não é essa. A X não tem chance. Para de brincadeira, Pedrinho. Não confirma. Não confirma. Não...
– Foi mal aí, mãe. Você ainda vai me agradecer.
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Dupla jornada
Por Marcela de Holanda
Todas as noites, ela escovava os dentes, fingia um beijo de boa noite e esperava ele dormir. Aí, vestia uma roupa etérea, lhe dava um beijo na testa e voava em direção a mais uma aventura intimamente proibida. De dia, andava com os pés bem fixos na terra. Mas, à noite, gostava de hidratar seus cabelos nas nuvens antes de sair por aí conhecendo lugares e pessoas.
Vivia, nessas horas, uma vida de filme. Às vezes romance, às vezes drama, muitas vezes comédia, constantemente aventura, de vez em quando terror e até ficção científica. Tinha uma fila interminável de amantes dos quais nem sempre se lembrava do rosto. Seus poderes especiais a levavam do Brasil ao Japão antes mesmo de virar a esquina. Tinha dias em que ela resolvia ser homem e, simplesmente, era. Sem se dar conta, mudava de rosto e de corpo como uma “camaleoa” descontrolada.
Devia ter muita sorte porque, nos seus passeios noturnos, presenciava momentos que pareciam impossíveis. Via elefantes darem cambalhotas, leões vivendo em apartamentos e bebendo chá gelado na tigela. Via bicicletas voarem, ingleses dançando a dança da chuva, fora a quantidade de vezes que ela mesma ganhou na loteria sem nunca ter apostado. Vivia bem feliz no meio da bizarrice. Amava o inesperado. Não planejava nada. Deixava-se levar e confiava que nada de mal ia lhe acontecer.
Quando a morte chegava perto e vinha a abraçar querendo fazer amizade, ela lhe apertava a mão e dizia que ia ali e já voltava. Um dia, acabava voltando mesmo, mas sempre dava um jeito de escapar na última hora e depois gargalhava se lembrando do risco que tinha corrido.
Ela também tinha, sem querer, descoberto uma maneira de viajar no tempo. Estava andando por uma rua escura e se deu conta de que estava no século XVI. Depois disso, era só pensar que gostaria de conhecer determinada época, que lá ela aparecia. Conseguia também misturar os tempos. Uma vez se viu no meio de uma guerra medieval. Pegou seu celular e pediu socorro para um amigo dinossauro que em dois minutos chegou e a tirou dali.
Era uma vida um pouco cansativa. Mas valia a pena. Ela não tinha do que reclamar. Gostava de sentir seu coração palpitando por baixo da blusa e também de quando ele subia até sua boca ou escorria pras suas mãos. A sua vida era tão boa que nem reclamava quando percebia que estava amanhecendo lá embaixo e que tinha que voltar.
Na ponta dos pés, ia em direção à sua cama e se enfiava com o máximo cuidado debaixo das cobertas pra ele nada perceber. Quando acontecia de ser pega, dizia que tinha ido ao banheiro rapidinho. Ele sempre acreditava. Como ele pensava que ela tinha dormido a noite inteira, ela nunca podia descansar. Fingia que já estava bem descansada, se espreguiçava, escovava os dentes, descia para comprar pão e jornal e voltava pra fingir um beijo de bom dia. Ele perguntava se ela tinha dormido bem e ela sempre dizia um "ahan" bem indiferente pra não gerar mais perguntas. Por dentro, ela sorria por não precisar dividir seu segredo. Aquela vida era só dela. Eles não tinham se casado naquela vida.
Ele saía para trabalhar e ela se preparava para mais um dia vazio. Fazia tudo mecanicamente contando as horas para a noite chegar. Gostava de assistir às novelas só para ter o prazer de saber que nenhuma vida ali era melhor do que a dela. Não essa, diurna e sem graça, mas aquela que era de verdade. Porque ela sabia que tinha nascido ao contrário e que vivia enquanto a maioria dormia e esperava enquanto a maioria vivia.
Até que um dia, enquanto fazia o jantar, se sentiu mal e foi correndo para o banheiro. Pôs pra fora todo o tédio que tinha ingerido nas últimas horas. Não assistiu à novela nesse dia, pois o marido insistiu que tinha que levá-la para o hospital. O médico, um senhor de barba branca com um sorriso bondoso, anunciou que eles estavam prestes a embarcar numa grande aventura com um bebê a caminho. Ela não sabia se ria ou se chorava. Não estava acostumada a sentir nada àquela hora do dia. Na sua vida secreta, ela nunca tinha tido filhos. Não tinha treinado para isso. Ela, que gostava de sentir seu próprio coração, agora sentia mais um, na sua barriga, que batia ainda mais acelerado do que o dela durante suas aventuras mais doidas. Olhou para o marido e viu que o rosto dele não estava borrado como o de costume. Ela agora conseguia ver nitidamente as linhas do rosto dele. E eram agradáveis. Por elas, escorriam pequenos riachos salgados de emoção. Ele também tinha cara de quem não sabia o que fazer. Voltaram para casa e ela repetiu seu ritual de sempre.
Naquela madrugada, depois de visitar dois ou três lugares, ela encontrou uma menina de uns cinco anos, com cachos dourados e olhos azuis. Perguntou pra menina o que ela fazia fora da cama e sozinha por ali. A menina contou que ainda não tinha cama e que não estava sozinha, mas com ela. A menina era tão linda e estranhamente familiar, que ela aceitou levá-la junto nas aventuras seguintes. Conheceram lugares incríveis e conversaram durante horas. Ficaram amigas.
Acabou perdendo a hora e, quando voltou para se esquivar para debaixo da coberta, viu que o marido já não estava mais lá. Nervosa pelo seu segredo, ficou deitada esperando o que ia acontecer. Ele voltou, uns minutos depois, com uma bandeja com pão, jornal e uma rosa. Ele perguntou se ela tinha dormido bem e ela disse que tinha dormido "muito bem, obrigada". Ele disse que não ia trabalhar e que passaria o dia todo fazendo as vontades dela. No começo, foi muito estranho. Mas, apesar dos enjoos dela, eles tiveram momentos felizes naquele dia. A felicidade diurna a fez se sentir um pouco culpada pelo seu segredo.
Resolveu que, naquela noite, tentaria dormir. Mas quanto mais tentava, mais rolava na cama. Passou a noite toda ali mesmo, do lado dele, acordada, pensando em como faria para administrar agora duas vidas agitadas. Mesmo com a culpa, ficou levando sua dupla jornada como podia. Estava até começando a gostar da sua vida diurna. Cada dia era diferente. Cada dia mais pesada e redonda, ela tentava recuperar o tempo perdido e aprender tudo que precisava para cuidar de uma terceira vida que estava dentro dela.
Nove meses depois, passeando de madrugada, ela reencontrou a menina dos cachos
dourados. As duas se abraçaram longamente. A menina pegou na mão dela e disse que hoje decidiria pra onde elas iriam. Foram até uma nuvem bem fina e transparente. A menina disse que era pra ela olhar para baixo. Ela viu a própria casa. A menina perguntou se ela gostaria de ir lá embaixo e espiar pela janela. Ela concordou e foi espiar o marido dormindo. Quando chegou lá, nada entendeu. Ao lado do marido, dormia ela mesma com sua enorme barriga. Mas como ela estava lá se tinha levantado e fugido para viver sua vida secreta?
A menina a levou de volta para a nuvem e disse que fechasse os olhos e contasse até dez que, quando abrisse, teria uma surpresa. Quando abriu, a linda menina já não estava mais lá, mas outra pessoa vinha andando na direção dela. Ao perceber que era o marido, ela morreu de vergonha pensando que ele tinha descoberto tudo e que agora a deixaria para sempre. Justo agora que ela estava voltando a gostar dele? Ele olhou bem no fundo dos olhos dela e ela pediu desculpas por tê-lo enganado durante tanto tempo. Ele disse que não só sabia de tudo, mas como tinha estado ao lado dela escondido durante todos os momentos. Porque ela era o sonho da vida dele, embora ele não fizesse mais parte dos sonhos dela. Tinha esperado pacientemente que ela voltasse a viver do lado dele e entendia que aquela vida secreta era necessária pra que ela aguentasse a vida que não estava mais querendo viver durante o dia, e que ele tinha sofrido dia e noite por não conseguir ajudá-la.
Os dois choraram muito e se beijaram mais ainda. Voltaram para a cama de mãos dadas e acordaram ao mesmo tempo. A cama molhada indicava que tinha chegado a hora. A bolsa estourou. Foram correndo para o hospital, mas o bebê não quis esperar e nasceu, ainda no caminho, nas mãos do pai. Era uma linda menina de olhos azuis e uma leve penugem dourada na cabeça.
Depois daquele dia, a vida era tão agitada que quase não sobrava tempo para dormir. Sonhavam acordados mesmo. Atrapalhados, atarefados, mas felizes. A antiga vida secreta dela ia ficando desbotada para trás. Quando dava tempo de sonhar, ela quase sempre sonhava que estava ali mesmo naquela casa, com seus dois amores que com o passar dos anos viraram três e depois quatro. Retomou a sua profissão um ano depois do nascimento da primeira filha. Nessa nova dupla jornada, sua vida acordada valia por duas e era mais emocionante que o seu mais louco sonho da época em que pensava que estava acordada.
FIM
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Luz
Por Marcela de Holanda
Seu prazo estava apertado. Tinha que entregar o texto para sua coluna mensal numa revista de grande porte. Como sempre, tinha deixado para o último dia. Procurava uma luz. Não tinha ideia do que escrever. Não conseguia simplesmente parar e espremer seu cérebro até sair alguma palavra. Eram tantas coisas que chamavam sua atenção que parar não era uma opção. O máximo que conseguia era se concentrar por dois minutos. Justo naquele dia celebridades tinham tido suas fotos íntimas reveladas, candidatos à presidência tinham feito declarações bombásticas, discussões muito relevantes aconteciam no Facebook e estava passando Lagoa Azul na TV. Mas nada daquilo era tema para sua coluna. Até que acabou a luz. E agora? Sem luz, não sobrava nada. Aliás, acabou a eletricidade, porque a luz do Sol ela ainda tinha. Não por muitas horas. Se tivesse sido uns tempos antes, ela sentaria na sua poltrona e aproveitaria para adiantar o livro que estivesse lendo. Mas tinha substituído todos os livros da sua estante por livros digitais quando teve que se mudar para um apartamento menor depois do aluguel do anterior subir absurdamente. Adorava seu leitor de livros! Mas ele tinha parado de funcionar no dia seguinte ao término da garantia e ela estava esperando lançarem o modelo novo para poder comprar o antigo mais barato. Sua única salvação era a internet do celular. Sua última chance de comunicação com o mundo. Mas a bateria já estava pela metade. Quantas horas duraria esse apagão? Resolveu que não podia se desesperar nem agir sem pensar. Esquematizou um plano. Talvez se ela só se permitisse usar a internet por cinco minutos a cada meia hora, a bateria durasse tempo suficiente. Achava que meia hora era capaz de aguentar. E o que fazer nos intervalos? Lembrou de um objeto que tinha guardado no armário junto com relíquias da infância e cartinhas dos seus namorados de adolescência. Era um caderno roxo junto com uma caneta de cheiro de framboesa. Nos intervalos da sua existência digital, tentaria lembrar como se escrevia em papel para rascunhar sua coluna. Finalmente a luz, uma ideia. Escreveria para as gerações atuais e futuras sobre a importância de preservar as reservas energéticas e procurar fontes alternativas, pois tinha certeza que o ser humano não era mais capaz de sobreviver na escuridão. Quando deu por si, o texto estava pronto. No mesmo instante, a televisão ligou, o modem voltou a piscar, o ar condicionado religou e ela enfim respirou aliviada.
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Pedido especial
Por Marcela de Holanda
Querido Papai do Céu,
A mamãe falou que eu podia falar com o Senhor na hora que eu quisesse. Mas como o Senhor é muito ocupado e pode tá distraído na hora com assuntos mais importantes e não me ouvir achei melhor escrever. Aí o Senhor lê quando der e pode guardar essa cartinha na sua coleção. Ainda não sei pra onde enviar, mas vou perguntar pro Seu João amanhã. Ele é o nosso carteiro e conhece o endereço de todo mundo. Ele também me disse que tem carta que viaja de avião. Então deve passar perto da casa do Senhor.
To escrevendo para ver se dava pro Senhor enviar um irmãozinho pra mim. É chato brincar sozinho e a maioria dos meus amigos mora longe. Eu já separei um cantinho aqui no meu quarto onde ele pode ficar. Eu já pedi pra mamãe, mas ela disse que tava dependendo do Senhor. Se puder envia ele já grande porque o irmão do meu amigo Miguel nasceu muito pequeno e só chorava. Nem dava pra jogar bola. A mamãe explicou que o único jeito de vir já grande é se ele for adotado. Eu não entendi direito o que é isso. Mas se não for contagioso tá valendo. Mas por favor. E isso é muito IMPORTANTE! Tem que ser um MENINO.
Qualquer dia passa aqui em casa pra comer um bolo. O papai faz o melhor bolo de chocolate do mundo! A mamãe diz que casou com ele por causa disso. Já ia esquecendo. Valeu por tudo. Eu ainda não tenho um irmão, mas sei que tenho um montão de coisas que outras crianças não têm. Será que o Senhor pode dar uma ajuda pra elas também?
Um beijo do sempre comportado
Tá. Nem sempre.
Gabriel
Amém
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Estrada
Por Marcela de Holanda
Não me é permitido lembrar
De onde vim, quem já fui
O tanto de bem e mal que fiz
Não me é permitido lembrar
O que aqui vim fazer
Onde é que devo chegar
Pelo que vou ter que passar
Sei que a direção certa
É para frente e para o alto
E que há forças constantes
Que puxam tudo para baixo
Por isso, o caminho não é fácil
Mas se não percorrê-lo
Nunca chegarei lá
Ficar parada é que não dá
Na infinidade do tempo
Há infinitos maiores e menores
Quero um infinito que me pese menos
Prefiro a dor transitória
Do que a adiada e prolongada
Prefiro a felicidade adiada e prolongada
Do que aquela que não dura nada
Foi-me dado o combustível
Necessário para toda a estrada
E ele não se esgota, se multiplica
O amor que move e faz entrever
O que nos espera lá na linha de chegada.
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Salada de amigos
Por Marcela de Holanda
Faço amigos com a maior facilidade. Primeiro eu os escolho de acordo com quem os criou, por indicação de outros amigos ou pelo visual mesmo. Aí, separo um tempo por dia para ir os conhecendo melhor aos poucos. Quando me dou conta, eles já fazem parte da minha vida. Me fazem companhia, me contam histórias interessantes, me confessam o inconfessável como se me conhecessem há anos. Eles me levam para lugares onde nunca estive antes, me fazem refletir, às vezes me fazem viajar no tempo ou na maionese, me fazem rir e chorar. Torço pela felicidade deles e me sinto culpada se algo de mal lhes acontece. Sei que mais cedo ou mais tarde vai chegar a hora do adeus e nos afastaremos para novos amigos se aproximarem. Mas, por mais que eu saiba, sempre é um pouco triste quando acaba. Em algum lugar, eles continuam existindo aqui dentro de mim. Sou muito grata a todas as mentes criativas que escreveram e escrevem tantos bons amigos. Melhor ainda é quando posso compartilhar esses amigos com outros tantos amigos não inventados. Ler não é só maravilhoso, é fundamental. Assim como ter amigos.
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Borracha
Por Marcela de Holanda
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Quarta?
Por Marcela de Holanda
Se você veio aqui buscando uma história com desfecho feliz ou triste, melhor não ler essa. Dessa história eu não sei o final. Apenas sei o que me relataram. Foi um amigo meu terapeuta que não posso revelar o nome e que também não me revelou o nome dela. Então a chamarei de ela mesmo.
Pois a vida dela caminhava assim: domingo, segunda, terça, quinta, sexta e sábado. Como assim? Veremos. A questão começou a ser notada, pois ela parou de aparecer nas quartas-feiras para trabalhar. Ninguém tinha coragem de questionar ou reclamar com ela. Afinal, ela parecia surpreendentemente bem nos outros dias. Bem demais para quem tinha passado pelo que ela tinha passado. E como parecia bem, ninguém tocava no assunto.
Mas, às quartas, ela sumia. Resolveram dar um tempo para ela. Depois de seis quartas, um colega de trabalho perguntou como quem não quer nada o motivo dela não ter aparecido no dia anterior. E ela respondeu, sem hesitar, que não sabia do que ele estava falando. Ela tinha ido trabalhar no dia anterior e sabia que ele a tinha visto. Os dois tinham conversado como sempre. Ele estranhou, mas não quis levar a discussão adiante. Preferiu dizer que devia ter se confundido. A fofoca se espalhou pelo escritório. Por quanto tempo ela continuaria faltando o trabalho e negando?
Sem coragem de conversar diretamente com ela, mas preocupada com a situação, uma amiga do escritório mais próxima, que sabia que ela estava fazendo terapia, pois ela mesma tinha indicado, resolveu procurar seu terapeuta. Queria saber como ela estava reagindo e se essas faltas dela tinham relação com a tragédia. E qual foi a sua surpresa ao descobrir que o terapeuta não tinha ideia do que tinha acontecido. Ela nunca tinha mencionado nada sobre o acidente. Nem sobre o marido e muito menos sobre a filha. Tinha entrado na terapia há algumas semanas, mas dizia que não sabia bem o motivo.
Na consulta seguinte, ele tentou induzi-la a contar de várias maneiras. Mas ela não falava nada. Era como se eles não tivessem existido na vida dela. Aparentemente, a cabeça dela tinha bloqueado todas as lembranças relacionadas aos dois. Para tentar acabar de montar o quebra-cabeça, o terapeuta ligou para ela numa quarta-feira. Ninguém atendeu. Ligou para o trabalho e ela não tinha ido trabalhar como em todas as quartas. Preocupado, abriu uma exceção e apareceu na casa dela. Estava com uma sensação estranha e tocou a campainha inúmeras vezes até ela abrir. Mas não foi bem ela que abriu. O corpo era dela, mas ela não estava lá. Não o reconheceu, não sabia quem ela era nem onde estava, não sabia nada de nada. E assim, ficou sentada o dia todo. Ele passou a quarta inteira lá ao lado dela, observando o seu silêncio até ela adormecer sentada. Na manhã seguinte, ela parecia normal de novo. Foi como se a quarta não tivesse existido.
O terapeuta conversou novamente com a amiga dela para saber detalhes do ocorrido. Tinha sido numa quarta-feira. O marido pegou a filha na escola e os dois foram juntos buscá-la no trabalho. Mas nunca chegaram lá. Um ônibus bateu no carro e os dois morreram na hora. Ela enterrou os dois e depois os apagou da memória. Domingo, segunda, terça, quinta, sexta e sábado, eles nunca tinham existido e ela seguia sua vida feliz. Já nas quartas, ela não existia. Apenas havia a dor ali. Uma dor de nem saber existir.
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Cópia de segurança
Por Marcela de Holanda
Eu sou o que me lembro
Também sou o que eu não fiz
Já que é disso que mais me lembro
Quando me esqueço de ser feliz
Me ajude a guardar em outro lugar
Em algum de onde ninguém possa tirar
O que de bom eu já realizei
Porque quando a hora chegar
É disso que eu mais vou precisar
Não me deixe me perder de mim
Numa estrada que se apaga
Antes do fim do caminho
Me doe qualquer espacinho
Onde eu possa instalar
Minha cópia de segurança
Que eu te asseguro
Que de cada pedacinho seu tenho lembrança
E que enquanto houver o eu
Haverá sempre o você
E o eu e você.
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O Jantar – Parte final
Por Marcela de Holanda
Depois de ouvirem o discurso de Rodrigo, todos, exceto Bruno que ainda oscilava entre o próprio drama e o que acontecia à sua volta, prestavam abertamente atenção ao que se passava na mesa 5.
Camila – Rodrigo. Você me decepcionou mesmo por não ter falado nada. Mas tudo bem. Eu entendo que tenha sido difícil. Mas é só. Aliás, melhor não falar nada do que falar as besteiras que você acabou de falar. Quando foi que eu te pedi alguma coisa que não fosse o seu amor? É claro que eu tenho meus sonhos, como toda mulher, de casar, me vestir de noiva, ter uma festa. Mas eu abriria mão de todos eles sem pensar para ser a sua mulher. Para estar do seu lado nos momentos mais simples do dia a dia. Para te encontrar todos os dias depois do trabalho. Para conversar todas as noites antes de dormir. Para te dar um beijo de bom dia mesmo que você volte a dormir logo depois. Para brigar sobre a quantidade de filhos que a gente quer ter. Para mim, é melhor ter tudo isso logo, do que esperar para ter dinheiro para fazer isso com tudo que você acha que eu tenho direito. Não tem nada mais valioso do que o tempo. Eu sou enfermeira. Sou lembrada do valor dele todos os dias. Vejo o quanto ele é finito e imprevisível. Se você pode e quer me dar o seu amor e o seu tempo, eu já sou a mulher mais feliz. Você, como professor, não aprendeu isso nos livros?
Rodrigo – Então você aceita casar comigo, sem anel e sem nada? Você não vai ficar se lamentando no futuro de não ter tido essas coisas?
Camila – Esquece o futuro. Eu aceito!
Os dois se beijam.
Camila – Mas, espera aí. Você disse que estava quase conseguindo o dinheiro e que tinha falhado. O que aconteceu?
Rodrigo – Você promete que não vai brigar comigo?
Camila – Prometo.
Rodrigo – Foi o João. Ele apareceu lá em casa. Tava encrencado. Precisava da grana.
Camila – Você deu o dinheiro do nosso casamento para um drogado? Você tá maluco, Rodrigo? Que uso você acha que ele vai fazer desse dinheiro? E além disso, você não vê o João há um tempão. Que grande amigo é esse que só aparece para pedir dinheiro?
Rodrigo – O João é meu melhor amigo de infância, Camila. Você sabe disso. Ele tava lá do meu lado quando ninguém mais tava. Eu dei o dinheiro para ele e daria de novo. Você sabe o quanto me dói ver ele perdido assim na vida? Podia ser comigo. E eu sei que ele faria a mesma coisa por mim. Eu dei a grana para ele. Ele estava devendo. Corria risco de vida. Você sabe como são essas coisas. Mas não dei de graça não. A gente foi lá, pagou a dívida e depois fomos juntos para a clínica. Ele tá internado. Tem três meses já. Tá se recuperando muito bem. To feliz por ele.
Camila – E por quê você não me contou isso? Olha, se a gente vai mesmo casar tem que começar a dividir mais as coisas. Confia em mim, tá? O que você fez foi certo. To orgulhosa de você. Você é um cara mesmo muito especial.
Cláudia, uma das irmãs da mesa 4 se aproxima de mesa 5 emocionada pela história e pelos drinks tomados sem refeição.
Cláudia – Com licença. Desculpem mas eu não pude evitar de ouvir a conversa de vocês. Vocês são um casal tão fofo!!!! Ooops, foi mal eu bebi um pouco demais. Eu não pude evitar de vir aqui dar os parabéns. E tem mais uma coisa. Eu e a minha irmã acabamos de abrir um novo negócio. É uma casa de festas aqui pertinho. Não é nada muito luxuoso, mas precisamos de uma primeira festa para podermos usar de divulgação e ouvindo a história de vocês achamos que não teria inauguração melhor do que o casamento de vocês. Nós queremos oferecer o espaço e a decoração, por nossa conta. Em troca, vocês autorizam o uso das fotos e da história de vocês. Que tal?
Camila – Uau!
Rodrigo – Isso é bem inesperado. Nós podemos pensar um pouco? Como é o seu nome mesmo?
Cláudia – Cláudia.
Camila – A gente aceita.
Rodrigo – Se a noiva diz... Muito obrigado, dona Cláudia.
Cláudia – Aqui está o meu cartão.
Aliviado por toda a confusão ter se resolvido bem, o dono do restaurante, Francis, que participava da reunião de negócios na mesa 2 e sua mulher, Denise, ainda mais sensível pela maternidade recente, também se aproximaram da mesa 5.
Francis – Deixem eu me apresentar. Eu sou o Francis. Dono do estabelecimento. Em primeiro lugar, em meu nome e da minha equipe, sentimos muito pelo ocorrido. E como uma forma mínima de compensação...
Denise – Gostaríamos de oferecer o buffet do casamento de vocês! Ai, vocês vão ser tão felizes! Parabéns, Camila! Você tem um homem e tanto! Com todo respeito, claro.
Francis – É isso mesmo. Teremos muito prazer em participar de alguma maneira dessa celebração. Me procurem aqui na quarta que vem para discutirmos as opções de menu e quantidade de convidados.
Na volta para a mesa 2, Francis e Denise conseguem fechar o negócio que tentavam há horas. Os interessados em abrir uma franquia na Europa ficaram impressionados com a generosidade dos dois e acharam que seria uma boa iniciar a sociedade. Na mesa 1, José, o pai de família que comemorava sua promoção, se empolga e fica pensando em como poderia contribuir também para essa união. Lembra de um detalhe que ouviu na conversa.
José – Acho que a esse ponto vocês já perceberam que todos nós ouvimos a conversa de vocês. Eu gostaria de poder ajudar também. Rodrigo, você é professor de que?
Rodrigo – Eu? Dou aula de história para Ensino Médio.
José – E o seu horário está todo preenchido?
Rodrigo – Não, não. Dou aula só duas vezes por semana. Tá difícil o mercado. Sabe como é?
José – Que maravilha! Então acho que também posso contribuir. Sou professor de história também e acabei de ser promovido a diretor da escola onde trabalho. Vou precisar de alguém para me substituir. Esse é o meu e-mail. Por favor, me envie o seu currículo e marcaremos uma entrevista para assim que possível. Com licença. Ah, e parabéns o casal.
Camila – Obrigada.
Rodrigo – Caraca, amor. Que demais! Viu só? Deus é mesmo muito bom. Você não sabe o quanto fico aliviado de saber que você vai ter pelo menos uma parte do que merece. Obrigado por me aceitar apesar de tudo. Eu te amo.
Camila – Eu também te amo.
Bruno paga a conta e levanta da sua mesa para ir embora. Antes de sair, passa pela mesa 5.
Bruno – Com licença, senhorita. Mas acho que isso te pertence. Espero que o cavalheiro não se incomode e não me entenda mal. Mas acho que ele estava destinado a pertencer a ela desde o início.
Bruno deixa o anel em cima da mesa e sai pensando em ligar para Aline e no quanto a vida é mesmo imprevisível. Camila olha para Bruno buscando aprovação.
Camila – Posso?
Bruno – É como ele disse. Não existe mulher no mundo que mereça mais do que você. Ou que fique mais bonita com ele.
Camila coloca de volta o anel. Seus sonhos foram devolvidos de uma maneira louca. Custava a acreditar que aquilo tudo era real. Mas o real não era mesmo muitas vezes inacreditável? Das surpresas que o futuro lhe reservaria ou quanto tempo ainda teria nessa vida, ela nada sabia. Mas de uma coisa tinha certeza. Nunca esqueceria aquele jantar.
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O Jantar – Parte 3
Por Marcela de Holanda
Na cozinha, Wagner preparava novamente a surpresa da mesa 3, rezando para que ninguém mais percebesse o que tinha acontecido. Mas na mesa 5, Camila começava a se descontrolar.
Camila (entre lágrimas) – Eu. Não. To. Conseguindo. Segurar. Rodrigo. Por que você não falou nada? Me. Deixou. Fazer esse papelão! Eu nunca me senti. Tão. Envergonhada. Eu não mereço isso. Você achou o quê? Que era brinde do restaurante? Você. Não. Foi. Homem o suficiente. Para admitir que você não quer casar comigo. Coisa nenhuma. Que eu sou uma boba. De pensar isso. Você me ama, Rodrigo? Como você me deixou passar por essa situação e não teve a coragem de dizer nada?!? Me deixou colocar o anel de outra! Fala alguma coisa, Rodrigo!
A essa altura, as pessoas nas mesas em volta, disfarçadamente prestavam atenção no que eles falavam e tentavam entender a situação. Wagner, sai da cozinha com o bolinho de chocolate e vai entregar na mesa 3.
Wagner – Com licença, senhor. Perdoe-me pela demora. A sua senhora foi ao toilette? Prefere que eu venha depois quando ela tiver voltado ou já posso deixar a surpresa aqui?
Bruno, ainda chocado com o que tinha acontecido, nem consegue responder. Só faz um gesto para que o garçom deixe em cima da mesa mesmo. Nesse momento, os últimos anos da sua vida passam pela sua cabeça e ele tenta entender o que pode ter acontecido que não percebeu. Entre as muitas lembranças da sua relação com Roberta, surgem de vez em quando memórias ainda mais antigas. Aline. Há quanto tempo ele não se permitia pensar nela? Mas agora o seu rosto aparecia nítido como se tivessem acabado de se despedir. Por onde ela andaria? E aí se lembrava que deveria pensar em Roberta e no quanto estava sofrendo pelo que ela tinha feito. Mas não sabia se sofria de verdade ou se só achava que esse era o sentimento apropriado para o momento.
Rodrigo, que daria tudo para voltar o tempo em algumas horas e escolher outro restaurante, não vê outra saída a não ser falar tudo que estava no seu coração. Mesmo já tendo notado que algumas pessoas os observavam.
Rodrigo – Calma, meu amor. Calma. Respira, por favor. Me desculpa. Você tem toda razão. Eu fui um covarde. Não devia ter te deixado passar por isso. Mas quando eu percebi o que estava acontecendo já era tarde demais. Você tem ideia de como eu me senti de saber que aquele sorriso que eu devia ter colocado no seu rosto, não tinha sido provocado por mim de verdade? O que eu podia dizer? Que na verdade eu sou um ninguém que nunca vai poder te dar um anel daquele? Que você merece um homem que possa te dar muito mais do que eu posso te dar? Você pode ter o homem que quiser. Na hora que quiser. Eu nem sei o que você ainda está fazendo comigo. Se eu te amo? É óbvio que eu te amo! Só se eu fosse um completo idiota para não amar você. E é justamente porque eu te amo que não fui capaz de falar nada. Como você acha que eu me sinto de te ver chorar assim? Eu falhei com você. Não só por não falar nada. Eu falhei porque já devia ter te pedido em casamento há muito tempo. Mas eu não queria que fosse de qualquer jeito. Eu queria que você tivesse tudo que você tem direito. Eu economizei durante os últimos dois anos planejando o dia em que você me aceitaria para sempre na sua vida. E eu estava perto de conseguir o que achava que precisava. Mas como eu disse. Eu falhei com você. Não tenho mais nada para te oferecer agora. Só o meu amor.
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O Jantar – Parte 2
Por Marcela de Holanda
O ar estava diferente naquela quarta-feira no restaurante Melgard's. Mas Carlos, o garçom mais experiente, ainda não tinha percebido. Chega na cozinha e encontra Wagner desesperado procurando o bolinho de chocolate desaparecido.
Carlos – Calma, rapaz. Fui eu que peguei o bolinho. Já entreguei na mesa 5.Olha, o cara da mesa 3 está reclamando que a sobremesa dele está demorando.
Wagner – Mesa 5? Você tá falando daquela da morena de olhos verdes?
Carlos – Isso.
Wagner – Ai, meu Deus! Você viu se ela já comeu?
Carlos – Não. Por quê?
Enquanto isso, na mesa 3, Roberta não para de se mexer na cadeira e Bruno não para de olhar para a porta da cozinha.
Roberta – Bruno. É... Tava uma delícia. Obrigada por me trazer aqui. Você sabe muito bem como agradar uma mulher. Aliás, você é ótimo. Em muitos sentidos. Uma pessoa muito boa mesmo. Merece tudo de bom. É... Olha para mim, Bruno. Você sabe disso, né? Que você é especial. E nesses anos todos, eu... Aprendi muita coisa com você. Obrigada. Mas é que... Ai, não tem jeito certo de dizer isso. Eu tava esperando um momento melhor, mas... Não dá mais. É isso. Melhor arrancar o band-aid de uma vez. Acabou. Não foi nada que você fez. E não tem nada que você possa fazer. Eu só não te amo mais. É isso. Desculpa. Fica bem. Por favor.
Wagner, muito sem jeito e morrendo de medo de perder o novo emprego, vai até a mesa 5. Quer morrer quando vê que a morena já está usando a aliança radiante de felicidade, mas precisa seguir em frente.
Wagner – Com licença, senhores. Eu não sei como me desculpar. Lamento terrivelmente, mas houve um engano na entrega da sobremesa. Esse bolinho de chocolate estava reservado para o casal da mesa 3. Imagino que vocês já tenham compreendido a razão de eu estar aqui. Havia uma joia que pertence àquele senhor de terno e infelizmente eu preciso pedir que por gentileza me devolvam para que eu possa entregá-la em outro bolinho. Perdoem-me pelo inconveniente.
À medida em que ele falava, Camila se sentia cada vez mais sufocada tentando mandar de volta a cachoeira que ameaçava sair pelos seus olhos. Não queria que aquele desconhecido visse as suas lágrimas. Já era humilhação o suficiente sem elas. O anel parecia pesar uns 100 kg e passou a parecer uns 3 números menor que o seu dedo. Tudo que ela não precisava era que ele ficasse preso agora. Conseguiu tirar como se tivesse arrancando seus sonhos e entregando para um qualquer. Os três estavam constrangidos demais para que houvesse alguma outra palavra. Wagner pegou o anel, olhou para Camila com profunda compaixão e culpa e se retirou para a cozinha. Assim que ele saiu, as lágrimas foram mais fortes e Camila desabou. Roberta, que achou melhor ir embora antes mesmo da sobremesa chegar, passa por ela e se sente aliviada. Não era dessa vez que ela sofreria por amor. O amor sempre ia embora antes do sofrimento
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O Jantar - Parte 1
Por Marcela de Holanda
Por Marcela de Holanda
Na mesa 5, estavam sentados Camila e Rodrigo. Camila, 30 anos, enfermeira, morena de olhos verdes, comia frango à milanesa com purê de batata. Rodrigo, 32 anos, professor, loiro de olhos cor de mel, comia apenas uma salada.
Na mesa 4, estavam sentadas Cláudia e Viviane. Irmãs que tomavam drinks enquanto conversavam animadamente.
Na mesa 3, estavam sentados Roberta e Bruno. Bruno, de terno e gravata, já tinha acabado de jantar e esperava ansiosamente Roberta acabar também para pedirem a sobremesa. Roberta comia uma massa que já devia estar um pouco fria.
Na mesa 1, havia uma família. Pai, mãe e dois filhos que nunca eram levados para os jantares fora mas, dessa vez, tinham sido convidados para comemorar a promoção que o pai tinha recebido naquele mesmo dia.
Na mesa 2, acontecia uma reunião de negócios. Cinco homens e uma mulher que a cada vinte minutos levantava e ia ao banheiro para de lá poder ligar para casa e ver se o filho, ainda bebê, estava bem com a nova babá.
Haviam outras mesas, mas essas cinco eram servidas por dois garçons. Carlos trabalhava naquele restaurante desde a sua abertura, há cinco anos. Wagner estava na sua semana de treinamento, sendo orientado por Carlos.
Camila e Rodrigo acabam de jantar e pedem a sobremesa. Roberta também acaba de comer e Bruno pede a sobremesa dos dois. Wagner está atendendo as mesas desses dois casais. Carlos, que viu a Camila pedir seu bolinho de chocolate, repara que Wagner está enrolado ouvindo orientações do chefe de cozinha, pega o bolinho que Wagner havia separado e serve ele mesmo para Camila.
Camila se delicia com seu bolinho até que lágrimas escorrem pelos seus olhos. Admira o anel mais lindo que já viu na vida acompanhado de uma etiqueta onde se lê: Casa Comigo?
Camila – Meu amor, é maravilhoso! O que eu tenho para te dizer é muito mais do que aceito. Eu não tenho mais a menor dúvida de que você é perfeito para mim. Você não imagina quantas vezes eu treinei essa cena do anel no bolo quando eu era criança. É a minha maneira preferida de pedido de casamento. É claro que eu quero casar com você. É tudo que eu mais quero! Eu estava começando a achar que você nunca pediria, mas foi no momento certo. Você tem razão. Obrigada por me fazer tão feliz. E esse anel é a minha cara! Você é demais. Eu te amo!
Rodrigo apenas consegue sorrir diante da felicidade da mulher que ama e beijá-la. Mas não fala nada. Não sabe o que dizer. Wagner vê que o bolinho separado não está mais lá e entra em desespero. Na mesa de Roberta e Bruno há um silêncio estranho. Bruno, já suando, chama Carlos que passa levando novos drinks para as irmãs da mesa 4 e diz que o garçom que está atendendo sua mesa está demorando para trazer sua sobremesa. Camila e Roberta não eram nada parecidas, fisicamente ou de jeito, mas tinham em comum a mesma sobremesa preferida: bolinho de chocolate.
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Dia D
Por Marcela de Holanda
Sentir é quase saber
Que hoje pode ser o dia D
O vento ventou diferente
O Sol nasceu no ocidente
O cão do vizinho se calou
O que era bom não engordou
O telemarketing não ligou
O infeliz começou a rir
O político parou de mentir
O incrédulo pôs-se a rezar
O Fábio Jr. parou de casar
Qualquer mudança você notou
E tomou para si o sinal
Que o dia de hoje é o que você tem
Que tudo se transforma e você também
Que a sua hora pode ser agora
Sentir é quase saber.
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Ongaronga
Por Marcela de Holanda
Acordou já tarde, mas ainda não queria levantar. Acabou cochilando e foi aí que tudo começou. Foi tão rápido que não conseguiu apreender o contexto. Tinha um homem não identificado em seu sonho e ele dizia a seguinte frase: “Só se a gente fizer ongaronga”. Acordou na mesma hora rindo de si mesma e das suas invencionices durante o sono.
Por curiosidade, pegou o celular na cabeceira e pesquisou no Google a tal palavra. Não havia resultado para ongaronga, mas havia vários resultados para On Garonga. O Garonga Safari Camp, na África do Sul, era descrito como um safari para a alma. Ficou com aquilo na cabeça e voltou a pesquisar mais tarde. As fotos do lugar eram incríveis. As acomodações tinham um clima rústico romântico de frente para uma vista selvagem.
Sentiu-se tentada a arrumar as malas e ir. Só tinha um pequeno detalhe. Ela tinha medo dos animais. Não só dos grandes, mas dos pequenos também. Era do tipo que se irritava com mosquito. Ia fazer o que on Garonga? Mas também era do tipo que acreditava em sonhos e em sinais.
Ficou ruminando a ideia por alguns dias até que resolveu mostrar para o marido. O pior aconteceu. Ele amou a ideia. Ficou animado com a perspectiva como ela nunca tinha visto antes. O casamento deles não andava muito bem. Ela já tinha tentado, de muitas maneiras, melhorar a situação e já começava a achar que não tinha salvação.
Não teve coragem de dizer para ele que na verdade achava que não teria coragem de ir. Disse que daria um jeito de antecipar suas férias e que ele fizesse o mesmo. Os dois partiriam assim que possível. Ele topou. Ela começou a ter crises de ansiedade e de arrependimento todos os dias, mas seguiu em frente com seus planos.
A relação já mostrava bons sinais de melhora quando os dois embarcaram no avião para a África. Se esse era o preço a pagar, ela encararia um leão por dia. Ou, no caso, vários leões, elefantes, hipopótamos, rinocerontes, girafas...
Foi, mas não voltou. Deixou para trás a pessoa que era para renascer muito melhor. E ele também. Tudo o que viveram on Garonga tornou os dois cúmplices inseparáveis. Voaram para casa, prontos para encarar tudo que viesse e esperando o filho que fizeram on Garonga.
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Princesa
Por Marcela de Holanda
— Tá triste?
— To.
— Por quê, meu amor?
— Dinda, eu queria ser uma princesa.
— Mas você é minha princesa.
— Não desse tipo. Eu queria ser uma princesa de verdade. Que nem aquelas das histórias. Morar num castelo enorme. Usar aqueles vestidos. Casar com um príncipe.
— Pensa bem. Você não gosta de estar sempre perto dos seus pais? Se morasse num castelo enorme vocês não iam ficar tão perto. E se eles fossem o rei e a rainha não teriam tanto tempo pra você. Teriam que cuidar de todo o reino.
— Tá. Mas os vestidos são tão bonitos!
— É. São sim. Mas você não gosta de brincar na areia, de pique pega, de jogar bola? Você acha que daria pra fazer tudo isso com aquelas roupas te pinicando, prendendo sua respiração? Além do mais, não são brincadeiras apropriadas para uma princesa. Você teria que se comportar o tempo todo.
— É. Ia ser chato. Mas pelo menos eu ia casar com um príncipe e ser feliz para sempre.
— Quantos príncipes de verdade existem por aí? O seu pai ia ter que escolher um deles para casar com você. Qual a chance dele escolher justamente um que vai te fazer feliz pra sempre? Já é difícil encontrar alguém mesmo com todos os não príncipes como opção. Você não gosta que escolham nada por você. Ia querer que escolhessem seu marido? Eu não trocaria seu tio por príncipe nenhum do mundo. Porque é ele que eu amo.
— Dinda, eu não quero mais ser princesa não.
— Não?
— Não. Melhor ser livre, né?
— É.
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Entreouvido
Por Marcela de Holanda
Posso sentar aqui com você?
Qual é o seu nome?
Eu sou jornalista.
Feliz Aniversário!
É o meu preferido.
Cinema ou teatro?
Vamos dividir?
Você está com febre.
Eu nunca contei isso pra ninguém.
Eu amo você.
Obrigado por me fazer feliz.
Quem é ela?
Eu juro.
Fiz um jantar pra você.
A minha mãe te disse isso?
Vamos viajar?
Eu odeio quando você faz isso.
Vou te esperar lá embaixo.
Só você pra me fazer rir desse jeito.
Na minha casa ou na sua?
Casa comigo?
Aceito.
Parede verde não dá.
Eu cozinho e você lava.
Vamos ficar aqui mais um pouco?
Que delícia!
Isso é hora de chegar?
São gêmeos!
Compra sorvete de jaca?
Você está linda.
A culpa é sua.
Sua vez de acordar.
Vou te levar pra dançar.
Eu amo você.
Escola religiosa?
Ela não tem idade pra namorar.
Isso vai passar.
Estou aqui com você.
Hoje a casa é só nossa.
Dor de cabeça?
Comprou a comida do cachorro?
Esse ano a gente sai do aluguel.
O dois passaram no vestibular!
Você fica lindo de terno.
Você está trabalhando demais.
Eu cuido disso.
Segura a minha mão?
Você vai ser pra sempre minha namorada.
Eu não aguento mais.
Parabéns, vovô!
A gente tem mesmo que ir?
Eu amo você.
Tá doendo muito?
Se você me escutasse.
Você me conhece mesmo.
Vamos renovar nossos votos?
Você consegue.
Eu não vou sair do seu lado.
Tenho muito orgulho de você.
Eu amo você.
Eu amo você.
Eu amo você.
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Biscoitinho da Sorte
Por Marcela de Holanda
Escolha um número de 1 a 10 e leia sua sorte de hoje.
1 – Você vai assumir uma posição de liderança.
2 – Seu time vai te dar outra decepção.
3 – Um relacionamento aberto pode ser a solução.
4 – Precisa rever suas posições.
5 – Você pode se tornar um(a) cozinheiro(a) de mão cheia.
6 – Sua outra metade está por perto.
7 – Se dê uma semana de folga para pecar.
8 – Hora de deitar e admirar o infinito.
9 – Pare para verificar os erros que pode ter cometido.
10 – Momento de ter ambição, de pensar alto.
11 – A curiosidade vai te levar além.
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Reencontro
Por Marcela de Holanda
— Nossa! Você está...
— Velha?
— Não.
— Gorda?
— Não. Aqui. Você está aqui.
— É. E você também.
— Pois é. Eu venho sempre aqui. E todas as vezes eu me lembro de você. Mas nunca pensei que te encontraria aqui. De novo.
— Foi naquele banco ali, né?
— Sim. O último. Quando você me beijou daquele jeito eu achei que apesar de tudo ia ficar tudo bem.
— Eu sabia que se houvesse uma despedida não seria a última. Achei que se fugisse podia dar certo.
— E deu. Eu voltei pro banco com os sorvetes na mão e fiquei esperando um tempo, achando que talvez você tivesse ido ao banheiro e fosse voltar. O sorvete derreteu antes que eu entendesse que aquele era o fim.
— Quer um sorvete? Dessa vez eu vou lá comprar. O seu favorito ainda é de pistache?
— É. Vai ser estranho tomar esse sorvete dez anos depois. Aqui. Com você. Mas eu aceito. Se você não se incomodar, eu prefiro ir comprar junto com você. Só para garantir.
— Vamos sim. Posso segurar na sua mão? Ou ela já tem dona?
— Dona? Não. Ela é minha e eu te empresto pelos velhos tempos.
— Nossa! Você sentiu isso? Parece que deu choque. Cheguei a ficar tonta.
— Quer soltar?
— Não. Na verdade, eu quero pedir desculpa. Não foi legal sumir daquele jeito.
— Tudo bem. Eu acho que mereci.
— Não. Hoje eu sei que a culpa não era sua. Você não tinha que mudar por mim. Sei que você não fazia por mal. O tempo é engraçado. Me levou a fazer com outras pessoas o mesmo que você fazia comigo. O mundo gira. Nada é. Tudo está.
— E como você está agora?
— Com medo.
— De quê?
— De você não gostar do que eu me tornei. De estragar as lembranças que eu tenho e as que eu deixei. Eu, pelo menos, fui apagando o que era ruim e guardei só os bons momentos.
— Já faz tanto tempo que o que você lembra de mim não deve ter mais nada do que um dia eu fui. A memória inventa. Ela engana a gente o tempo todo.
— Pode ser. Dois sorvetes de pistache, por favor.
— Ué? Você detestava pistache. Ou foi minha memória que inventou isso?
— Detestava. Como eu disse. Nada é. Digamos que hoje em dia pistache está o meu preferido.
— Você acha que a gente pode ter mudado o suficiente para dar certo?
— Acho que não vamos ter tempo de saber. Estou só de passagem pela cidade. Meu chefe prometeu me transferir de volta pra cá, mas ainda não conseguiu. Pode demorar até três anos.
— Segura o meu sorvete. Volta lá no banco e fica sentada até que os dois derretam. Eu vou escolher hoje três datas para voltar aqui nos próximos três anos. Se em uma delas a gente se encontrar, a gente casa. Sem perguntas. E você nunca mais foge. Se a gente não se encontrar mas se esbarrar em outro lugar, outra situação, você finge que não me viu e eu vou fazer o mesmo. Olha pra lá. (Ele foge)
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Vizinhança
Por Marcela de Holanda
O cenário do seu sonho foi invadido por um som estranho que parecia não pertencer àquele contexto. Uns segundos depois, seus olhos abriram. O som continuava. Uma música alta, bem alta, vinda sei lá de onde. Olhou no relógio. Eram 6 da manhã. De um domingo. Que infeliz seria capaz de ligar uma música no volume máximo numa hora dessas?
Foi ao banheiro e voltou para a cama. Fechou os olhos e tentou. Mas quem ela estava enganando? Sabia que enquanto aquele barulho insuportável continuasse, não seria capaz de dormir. Xingou mentalmente a vizinhança inteira na falta de um alvo específico. Tinha trabalhado de segunda a sábado. Domingo era seu único dia de descanso. Ela sempre tomava cuidado para não incomodar ninguém. Por que não faziam o mesmo por ela?
Acabou levantando. Investigou pela janela e viu que o som vinha de uma vila de casas na frente do seu prédio. Mas de qual delas? Esperou que algum vizinho começasse a berrar pedindo silêncio. Não era possível que fosse a única a se sentir incomodada. Ninguém se manifestou. A música continuava ainda pior. Alguém trocava a rádio de estação enlouquecidamente. Era provocação demais. Colocou um roupão e saiu com aquele cabelo de maluca mesmo. De perto, identificaria a casa e tomaria satisfação com quem quer que fosse.
Os corredores do prédio estavam desertos e a rua também. Sentiu um pouco de medo, mas seguiu em frente. Vinha da casa amarela. Tocou a campainha. Ninguém veio. Aproximou o ouvido da porta e ouviu um choro. Um choro de criança. Ninguém parecia atender os chamados dela também. A criança chamava o pai e chorava e nenhuma resposta era ouvida.
Sentiu um aperto no peito. Bateu à porta, bateu mais forte, quis arrombar. Não sabia como. Olhou em volta. Lá longe vinha um adolescente com uns 15 anos que parecia voltar do programa de sábado à noite. Ele era forte o suficiente. Foi até ele, explicou a situação e pediu ajuda. Ele não sabia bem como fazer, mas tinha visto num seriado um cara se lançando em direção a uma porta e conseguindo derrubar. Tentou três vezes até a porta abrir. Acabou ganhando uma fratura no braço.
Encontraram a criança sozinha em casa. Ela devia ter uns 5 anos. A mulher desligou o rádio que estava no chão e tentou acalmar a criança. O adolescente pediu desculpa por não ficar, mas tinha que chegar em casa antes que a mãe acordasse e a tempo de inventar uma história para a mãe levá-lo ao hospital para ver o braço.
A mulher ligou para a polícia e esperou com o seu roupão e cabelo de maluca. Esquentou um leite para a menina e fez as perguntas que foi capaz de fazer sem assustá-la. Acabaram dormindo enquanto esperavam. A polícia chegou. O pai da menina tinha saído na noite anterior e acabou preso. Ela não tinha nenhum outro parente vivo.
O processo foi lento e difícil, mas a mulher conseguiu adotar a menina. Cuidou dela sozinha. O pai sumiu no mundo depois de sair da prisão. As duas criaram o hábito de dormir ouvindo música, mas nunca alta o suficiente para ser ouvida de fora do apartamento.
A criança cresceu e, quando fez 25 anos, conseguiu um emprego numa empresa e se apaixonou pelo seu chefe, com quem casou 3 anos depois. O chefe era um homem de ótimo coração que um dia tinha sido um adolescente corajoso o suficiente para quebrar o braço arrombando a porta para socorrer uma criança desconhecida chorando.
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Lua
Por Marcela de Holanda
Enquanto tentava se esquecer de tudo
Olhando para aquele céu de infinito
Viu uma estrela cadente passar
Fez um pedido de poeta com fé
Queria tanto ir na Lua dançar
Sentiu seus pés virarem foguete
Voou mais rápido do que conseguia pensar
Nem suas roupas conseguiram a acompanhar
Despida de tudo brilhou mais que as estrelas
E o amor da Lua conseguiu conquistar
Bailava sempre naquela imensidão
Numa felicidade de quem não sabe de nada
Mas procurava sempre as áreas onde batia Sol
E a Lua com ciúmes se irritou
Num desespero crescente expulsou seu amor
De volta na Terra, ela não conseguia
Olhar pra baixo ou para frente, só para o alto
Tempos depois, viu uma estrela cadente
Fez um pedido de poeta cansada
Precisava daquela aventura se esquecer
Precisava voltar a se lembrar de tudo
Do tudo que havia tentado se esquecer
Olhando para aquele céu de infinito.
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O que a escuridão revela
Por Marcela de Holanda
— Apaga a luz?
— Mas eu estou lendo.
— Exatamente.
— Quer que eu pare de ler?
— Quero que você volte pra cá.
— Tá bom. Fechei.
— Apaga a luz?
— Quer dormir ou conversar?
— Quero sonhar. Posso te levar?
— Pode. Está apagada e agora?
— Agora você está sentando na cama de um hotel em um lugar paradisíaco depois de um dia incrível explorando a natureza.
— Sentei.
— Agora você vai deitar pela primeira vez na cama da casa que acabou de comprar com o dinheiro que ganhou com o sucesso do seu trabalho.
— Deitei.
— Agora você vai se cobrir porque está nevando lá fora, você acabou de tomar um chocolate quente e amanhã é Natal.
— Hmmmmm. Me cobri.
— Agora eu vou acender a luz.
— Não. Por que você fez isso? Estava tão gostoso!
— Preciso que você olhe nos meus olhos e me responda com sinceridade. Em algum momento você me viu com você?
— …....
— Foi o que eu imaginei. Eu fiz isso antes e percebi que eu também não.
— E o que a gente faz?
— Apagamos as luzes?
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Profissão: Ator / Atriz
Por Marcela de Holanda
Acredito que em algum lugar aqui dentro de mim tenha de tudo. Se não de tudo, o equivalente a células-tronco emocionais, comportamentais, com potencial para formar qualquer combinação de fatores. Eu não sou tudo que tenho em mim. Eu sou aquilo que escolhi ou precisei disso tudo. Eu sou eu e continuo carregando, em algum lugar, todo resto.
Se nisso não acreditasse, minha profissão seria para mim mero fingimento. Bem ou mal fingido, mas fingido. Acho que isso não me interessaria. O que me interessa é poder ir lá. Lá onde a maioria das pessoas não vai. Lá onde eu nem sei onde fica. Buscar, mesmo correndo o risco de não encontrar, coisas novas e intocadas capazes de construir um outro eu. Um eu que eu vou deixar me ocupar enquanto ele precisar. Para esses outros eus, coisas minhas eu até posso emprestar. Sei que eles também são capazes de me ajudar, de me ensinar, de deixar algo em mim, de transformar.
E assim, aproveito para tirar o proveito de muitas vidas em uma só. Atuando estou agindo em mim e com sorte nos eus que me assistem também. É para isso que sou o que sou.
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Um só
Por Marcela de Holanda
Espaço e tempo podem afastar os corpos, mas estamos a todo momento ligados. Essa corrente invisível chamada Amor, protegida em toda sua extensão pelos seus guardas Saudades, não se quebra por mais que se estique. Prefiro quando ela se comprime ao máximo e nenhum átomo existe entre nós. Mas os seus e os meus passos são agora os nossos passos e assim seguimos mais longe. Para qualquer tropeço não faltarão braços para impedir a queda. Mergulhamos juntos nas profundezas dos mistérios da vida cujas respostas cada ser traz em si. Vamos, pouco a pouco, ajudando um ao outro a se desfazer das bagagens que pesam para cada vez mais leves podermos subir mais alto. Que esse casal imbatível, o Amor e a Amizade, continue gerando suas filhas Felicidades. E que elas saibam nadar no oceano Destino.
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Por Marcela de Holanda
Me perdoa pelos atrasos
Me perdoa pela impaciência
Me perdoa pelos silêncios vazios
Me perdoa por exigir demais
Me perdoa por nem sempre lembrar
Me perdoa por nem sempre querer
Me perdoa por deixar a preguiça vencer
Me perdoa por deixar a planta morrer
Me perdoa pelos olhares acostumados
Me perdoa pelos beijos não entusiasmados
Me perdoa por tentar te mudar
Me perdoa por não conseguir me mudar
Me perdoa por complicar o simples
Me perdoa por pensar em tudo
Me perdoa por planejar demais
Me perdoa por não te deixar em paz
Me perdoa. Perdão. Peço perdão.
Mas se você me perdoar...
Se não disse que não há o que perdoar
E que você tem tanto quanto para pedir perdão
Ah, aí eu não sei se serei capaz de te perdoar
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Minúscula Imensidão
Por Marcela de Holanda
Abre as asas e os olhos. Quanto mais alto, com menos força a terra te puxa. Dá um tempo do espaço limitado e, ainda que ligado, voa por onde quiser. E, enquanto estiver lá em cima, dê uma olhada aqui para baixo. Vê como tudo é tão pequeno que não resta outra opção a não ser passar. Nada permanece igual por um intervalo maior que a capacidade de segurar a respiração. Passeia lá na frente, mas sem pousar. Pois não tem jeito. O caminho tem que ser caminhado a pé por mais que se voe antes para espiar. Sinta a liberdade de poder errar, mas uma confiança imensa de que mais cedo ou mais tarde você vai acertar. Olha para a imensidão que te envolve. E quando bater aquela sensação de que você não é nada diante disso tudo, lembra que o tudo nada mais é que o conjunto de nadas que há.
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Nós
Por Marcela de Holanda
— Mãe, posso pentear o seu cabelo?
— Pentear o meu cabelo? Por quê? O que tem de errado com ele?
— Nada. Mas eu preciso disso. Você se incomoda?
— Não. Só achei estranho.
— Então senta aqui nesse banco e tenta relaxar.
— Tá bom.
— Se machucar, me avisa.
— Pode deixar.
Mariana começou lentamente a desembaraçar os cabelos da mãe. Aos poucos, seus movimentos foram ficando mais bruscos e descuidados causando um leve incômodo na mãe. De vez em quando, ela perguntava se estava doendo mas a mãe, para não desencorajar a filha, dizia que estava ótimo. Só quando começou a dar dor de cabeça é que Virgínia, a mãe, pediu para a filha ter um pouco mais de cuidado porque estava começando a doer. A partir daí, Mariana adotou movimentos tão suaves que era como se o pente acariciasse o couro cabeludo de Virgínia e diluísse seus pensamentos até que foi tomada por uma sonolência de tão relaxada que ficou.
— Obrigada, filha. Foi muito gostoso. Você não imagina o quanto eu estava precisando disso.
— Você que pensa, mãe.
— O que é isso, filha?
— Lembra de quando eu era menor e chorava toda vez que tinha que pentear os cabelos e que você me abraçava e dizia para eu confiar em você? Você também precisa confiar em mim. Se você esconder as suas dores de mim, eu não vou ter como te ajudar e posso acabar piorando as coisas. Eu sei que você perdeu o emprego e está com medo de contar pra gente. Sei também que você tem chorado todas as noites desde que o papai foi embora. Não tem problema. Eu também choro. Mas você tem que acreditar que esses problemas são como os nós dos cabelos. Devagarzinho eles vão se desfazendo. Eu confio em você. Mas, por favor, confia em mim também.
Daquele dia em diante, o ato virou um hábito. Todas as noites, antes de dormir, uma penteava o cabelo da outra enquanto contavam o que se passava em suas cabeças. Eram ainda mãe e filha. Mas eram também amigas.
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Terapia
Por Marcela de Holanda
Eu quero alta. Desculpa, não é nada pessoal, eu adoro você. Mas é que eu não aguento mais fazer terapia. Eu sei que no começo eu precisava, que o meu caso era grave, mas eu acho que eu to curada. Não, eu tenho certeza. Eu sei que você vai dizer que eu não to curada coisa nenhuma, que cada semana eu chego aqui com uma história pior que a outra. Mas aí que tá. Eu só continuo fazendo essas coisas pra ter o que te contar. Você acha mesmo que eu fiquei com o namorado da minha melhor amiga porque eu não gosto dela? Ela é a minha melhor amiga, eu gosto dela mais do que de todas as outras amigas. E aquele dinheiro que eu peguei da carteira do meu chefe? Eu não estava precisando. E além do mais o homem não anda com nenhuma nota decente na carteira, encontrar uma amarelinha já foi sorte. Eu fiz isso por você. Porque eu não vou pagar trezentos reais pra sentar aqui e te contar o que eu comi no almoço. Eu quero ser uma paciente interessante. Você merece. Eu quero que você pense em mim a semana toda. Que você sonhe com as besteiras que eu faço. Que você case comigo. É isso. Eu te amo. (Silêncio) Eu te amo. (Silêncio) Eu te amo! (Silêncio) Tá vendo? Menti de novo. Não é que você seja horrível, mas não faz o meu tipo. Você nunca fala nada. Eu tenho que inventar umas coisas pra preencher os espaços. Por exemplo. Essa semana, eu fiquei gripada em casa. Não tive a chance de fazer nada de errado. O que eu pensei? Vou pedir alta na terapia que vai dar assunto pra sessão inteira. (Olha o relógio) Graças a Deus o tempo acabou. Semana que vem no mesmo horário. Por favor, não me abandona. É sério. Eu preciso de você!
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Sistema
Por Marcela de Holanda
- Eu vou repetir pela última vez. O plano precisa autorizar a operação da minha mãe agora. É uma emergência. Não amanhã, muito menos depois. Ela precisa agora. É caso de vida ou morte. Eu já não entendo isso de pedir autorização. Eu pago uma fortuna todo mês.
- Senhora, como eu disse, eu não vou poder estar autorizando agora. O sistema está fora do ar. Pro sistema, a mãe da senhora não está doente. Quando o sistema voltar, eu vou estar atualizando a situação dela e dentro de três dias úteis ele libera para autorizar a marcação da cirurgia da mãe da senhora.
- Você não tem mãe não, minha filha? Não é possível que não tenha alguém que possa resolver isso. Eu quero falar com o seu superior. Passa para o seu chefe, por favor.
- Me desculpa, senhora. Mas eu não tenho acesso a ninguém que possa estar te encaminhando agora. Só pelo sistema mesmo.
- E você sugere que eu faça o que com a minha mãe? Espere ela morrer?
- Não, senhora. De jeito nenhum. A senhora poderia estar pedindo um empréstimo no banco para pagar a operação da mãe da senhora. Se o plano autorizar depois, a senhora pode pedir um reembolso.
- Era só o que me faltava. Eu vou entrar na justiça contra esse plano de saúde. E eu não vou me esquecer do seu nome.
(Desliga. Liga)
- Alô. O Gustavo, por favor.
- É ele. Quem fala?
- Oi, Gustavo. É a Clara Abrantes. Lembra daquele empréstimo pré-aprovado que você me ofereceu?
- Claro, dona Clara. Está à disposição.
- E preciso ainda pra hoje. É uma emergência. Minha mãe precisar operar.
- Nossa, dona Clara. Sinto muito pela mãe da senhora. Estimo melhoras. Mas no momento eu não vou conseguir liberar. Eu sistema está fora do ar. Mas assim que ele voltar eu ligo para a senhora.
- Sistema? Eu vou te dizer o que você faz com o seu sistema! Quem inventou essa porra de sistema pra tudo? De que adianta se nunca funciona? E o meu sistema nervoso? E o sistema circulatório da minha mãe? Isso sim é sistema. O resto é castigo!
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Baseada em fatos reais
Por Marcela de Holanda
Já estava cansada de ouvir o amigo voltar toda hora com aquela ladainha. Então, certo dia, resolveu pregar-lhe uma peça. Agiria sem pensar para pegá-lo de surpresa da próxima vez que ele repetisse a maldita frase. Já estava na hora de dormir, todas as refeições tinham sido feitas com direito a sobremesa e tudo e lá veio ele contar para o estômago dela: “Você está com fome. Que tal mais uma besteirinha antes de dormir?”.
Ela sempre obedecia. Mas dessa vez, correu para a geladeira e por impulso agarrou o primeiro pote que viu. Era o pote de alface. Pegou uma folha e começou a mastigar como se fosse batata frita. O amigo não entendeu nada. Acionou o alerta vermelho e convocou todos os neurônios para uma reunião de emergência.
— Alguém sabe o que ela está fazendo? Procurem em todos os arquivos.
— Cara, sei lá.
— Ela tomou algum remédio?
— Não que eu me lembre.
— Será que tem um vírus infiltrado no sistema?
— Se for, é grave.
— Chefe, aqui diz que é alface e que ela só come no almoço ou em sanduíches.
— Eu sei que é alface. Mas que diabos ela está fazendo? E essa cara de quem está gostando? Não fui eu que mandei fazer isso. Preciso retomar o comando imediatamente. Eu vou contar até 3 e todos repitam a palavra “cospe”. 1, 2, 3.
— Cospe!
— Não funcionou. Mais uma vez. 1, 2, 3...
— Cospe!!!
— Ela está com cara de nojo. Mais uma vez. Bem alto.
— COSPE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
O cérebro venceu. Ela bem que tentou. Mas, pelo menos, se divertiu tanto com toda aquela bagunça dentro dela que se esqueceu da fome e foi dormir.
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Às Quartas – Última parte
Por Marcela de Holanda
Depois daquela quarta, o que se passou foi que a vida dela virou uma sucessão de quartas-feiras de cinzas. Seus movimentos calmos se tornaram nervosos, entrecortados. O suco natural foi substituído pela cerveja. A solidão à espera virou uma solidão acompanhada. Não tinha nenhuma companhia em especial. Só um monte de desconhecidos que vinham e iam sem deixar nada.
Até que um deixou. Mas ela não sabia qual. Nunca se lembrava de muita coisa. Há tempos tinha deixado o inconsciente sozinho no comando. Mas agora vivia tonta, vomitava e não conseguia nem sentir o cheiro da bebida. Só podia ser uma coisa. Deus tinha resolvido mudar a vida dela de novo.
Grávida de um novo destino, começou a sentir lá dentro uma coisa lutando para se soltar. Não, não era o bebê já querendo sair. Era uma coisa que ela tinha trancado bem lá no fundo e jurado nunca mais libertar. Mas, junto com o seu bebê, essa coisa foi crescendo até ficar grande e forte o bastante para arrebentar as correntes e cadeados e tomar conta dela.
Tomada de amor, sentiu que tudo estava de volta em seu lugar. Duas semanas antes do tempo, numa quarta-feira de sol, deu a luz a um menino loirinho, de olhos castanhos e uma pequena manchinha vermelha no meio da testa. Pegou-o no colo e apressou-se em quebrar o silêncio: “Seja bem-vindo. Eu te amo, meu filho. Meu Miguel.”
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SÓ NO CARNAVAL!!!
Por Marcela de Holanda
Só no Carnaval
Alegria é a regra geral
Pelada na Avenida é natural
Conhecer é beijar na boca
1 é pouco, 2 é pouco e 3 ainda é pouco
Excesso de peso era reinado
Marcha não é coisa de soldado
O metrô funciona sem parar
Escola não é para estudar
A segunda-feira é sempre bem-vinda
O homofóbico de saia dá pinta
O que viveu reprimido se liberta
Lotado, apertado e abafado é festa
Só no carnaval
Viva o carnaval!
Para quem quer o carnaval
Os que não quiserem que abram alas
Porque querendo ou não ele vai passar
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Às Quartas – Parte 5
Por Marcela de Holanda
Descabelada e com falta de ar, descreveu para o porteiro o homem que era agora a sua vida mesmo sem saber o nome ou ter ouvido a voz. O porteiro disse que conhecia, claro, o senhor Miguel. Muito gente fina. Trabalha no quinto andar. Mas não tem aparecido por aqui não, moça.
Não quis pegar a fila do elevador. Subiu tropeçando nas escadas até o quinto andar. Conseguiria o endereço da casa dele ou do hospital. Havia apenas uma firma no quinto andar com uma recepção elegante. Já chegou se desculpando com a recepcionista, dizendo que era uma longa história, mas precisava saber do Miguel.
Foi só falar o nome dele e as lágrimas começaram a rolar do rosto da desconhecida. Péssimo sinal. Sim, ela sabia notícias dele. Sim, ele estava mesmo doente. Não, ele não voltaria mais. Não tinha resistido. Faleceu uma hora antes da operação.
Quando ela pensou que ele mudaria sua vida, não imaginou que poderia ser para pior. Como ela podia continuar vivendo com aquela incompletude? Por que Deus tinha feito da vida dela uma piada de mau gosto? Estava tudo errado. Ela precisava dele. Precisava dar para ele aquele amor e para mais ninguém. E agora não lhe restava nem o direito de sonhar com isso.
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Às Quartas – Parte 4
Por Marcela de Holanda
Ela estava tão chocada que o bilhete escorregou da sua mão e caiu no chão. Um turbilhão de sensações se espremiam correndo junto ao seu sangue. A felicidade e o pavor brigavam pra ver quem chegava mais rápido ao seu coração. Eram tantas vozes falando ao mesmo tempo na sua cabeça que ela resolveu não escutar nenhuma delas e simplesmente correu.
Correu sem saber para onde ia. No fim, suas pernas magrelas acabaram a levando para um hospital e depois outro e outro. Mal sabendo quem era, saiu perguntando para um monte de desconhecidos se algum deles sabia do desconhecido dela. Aquele homem alto, de cabelo preto, olhos verdes e uma manchinha no meio da testa. Ela precisava encontrá-lo. Precisava vê-lo. Precisava quebrar o silêncio. Precisava que ele estivesse vivo. Mas ninguém sabia. Ninguém podia informar. Se ela soubesse ao menos o nome dele...
Voltou para casa e paralisou. Ela não sabia mais o que fazer. Passou uma semana sem comer, sem dormir, sem trabalhar. Na quarta seguinte, teve uma luz. Talvez ele tivesse sobrevivido e fosse procurá-la no banco da praça. Trocou de roupa e foi trabalhar. Alimentou-se de esperança para encarar o tanto de explicações que teria que dar por lá. Mas ninguém perguntou nada. Como se não tivesse notado a ausência dela.
Sentou em sua mesa e, encarando o monitor à sua frente, lembrou. Ele tinha dito que a janela dele dava de frente para a mesa dela. Olhou para fora, para o prédio em frente. Não viu ninguém que se parecesse com ele. Mas para que esperar até a hora do almoço? Alguém naquele prédio acabaria com a sua agonia.
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Às Quartas – Parte 3
Por Marcela de Holanda
Encarou aquele papel por alguns minutos. Devia ou não devia ler? Tinha medo de invadir a privacidade dele. Mas e se ele tivesse esquecido o livro de propósito? E se o bilhete fosse para ela? Abriu e leu.
“Doce desconhecida do banco da praça,
Escrevo sem saber se um dia você vai ler. Mas essa era minha última chance. Não tenho coragem pra quebrar nosso silêncio. Não agora. Escrevo pra te agradecer. Você foi a melhor companhia que tive nos últimos tempos. Gostava da sua companhia antes mesmo dos nossos encontros às quartas. A janela do meu escritório dá de frente pra sua mesa. Sempre que olhava pra fora pra refletir, via você. Sempre tão calma, os movimentos tão controlados que ficar te olhando me dava a paz que eu precisava. Todos os dias, na hora do almoço, eu vou até a praça. Até que um dia, você apareceu por lá. Sentei do seu lado e descobri que o seu cheiro também me dava paz. Como se me tirasse da minha vida, dos meus problemas. Continuei voltando todos os dias, esperando te ver, mas você só apareceria às quartas. Eu desejava saber mais sobre você, mas sabia que se a gente conversasse eu teria que me lembrar de mim. Me desculpa por isso. Senti muitas vezes que você esperava que eu dissesse alguma coisa. Escrevo pra dizer que na próxima quarta eu não vou aparecer. E talvez em nenhuma outra quarta. Estou doente. Prefiro não dizer o que é. Mas quarta que vem vou passar por uma operação e estou com um pressentimento ruim. Mais uma vez, obrigado. Você tem sido um anjo na minha vida. Guarde o livro pra você e seja feliz".
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Às Quartas – Parte 2
Por Marcela de Holanda
Naquela quarta, ela tinha resolvido caprichar. Tinha grande esperança de que aquele dia mudaria sua vida. Ela, que só usava calça comprida porque tinha vergonha das suas pernas finas, colocou um vestido azul florido e as últimas gotas de um perfume que estava guardando há anos para uma ocasião especial.
Chegou meia hora antes no banco da praça. Normalmente ela ia para lá na sua hora de almoço. A primeira vez que eles tinham sentado lado a lado tinha sido num dia em que ela estava sem paciência para ir almoçar com o pessoal do trabalho. Estava cansada de ouvir aquela gente se gabando de seus casamentos, futuros casamentos, filhos e futuros filhos e resolveu comer um sanduíche que tinha na bolsa embaixo de uma árvore gostosa da praça mais próxima.
Quando estava desembrulhando o almoço, ele se aproximou e sentou ao lado dela. Ele era tão bonito que ela ficou com vergonha de comer na frente dele e guardou o lanche de volta na bolsa. Por sorte, tinha ali um livro que ela nunca conseguia passar da página 10. Pegou para ler enquanto ele lia o jornal. Desviando o olhar vez ou outra, conseguiu reparar nos detalhes. O cabelo preto levemente despenteado, a pele clara demais para alguém que morava num lugar tão ensolarado, o nariz nem grande nem pequeno, os olhos verdes e uma manchinha vermelha na testa, que nele ficava bem charmosa.
Na quarta seguinte, tinha resolvido arriscar e voltou. Ele já estava lá sentado, dessa vez com um livro. E, desde então, ela nunca mais tinha almoçado às quartas e sempre voltava um pouco atrasada para o trabalho. Mas, naquela quarta, ela tinha ligado e dito que estava doente. Assim, pôde chegar mais cedo e se arrumar toda sem que ninguém a perturbasse.
Leu umas vinte páginas antes da hora de costume, mas não assimilou nem meia palavra. Ficou só imaginando como seria a voz dele. Ela podia apostar que era bem grave. Travou também um diálogo imaginário completo com ele onde ele era um cara atencioso, muito interessado, que contava para ela a vida fascinante que tinha e como os encontros silenciosos dos dois eram a melhor parte dessa vida. Ela, por sua vez, transitava entre engraçada, misteriosa e provocativa. O problema era que, ao imaginar, ela sabia que ele até podia ser mesmo daquele jeito, mas ela não era.
Reparou que ele estava atrasado de novo. Posicionou e reposicionou o livro que ele tinha esquecido de mil maneiras no espaço vazio ao lado dela do banco. Tentou ler mais algumas páginas. Começou a ficar com medo de que ele não viesse. E se ele tivesse olhado de longe e pensado que era outra pessoa no banco? Ela não devia ter vindo de vestido. Ele podia não ter reconhecido aquelas pernas magrelas. Ou pior. Podia não ter gostado e preferido perder o livro a trocar algumas palavras com ela. Uma lágrima ameaçou rolar, mas ela conseguiu segurar com medo de que alguém que estivesse passando visse.
Leu, leu, leu, até que faltassem dez minutos para a hora que ele costumava ir embora. Resolveu não esperar mais. Ficaria com pelo menos aqueles minutos de dignidade. Pegou o livro dele para guardar de volta na bolsa e lá de dentro caiu um papel. Parecia um bilhete. E estava escrito à mão.
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Às Quartas – Parte 1
Às Quartas – Parte 1
Por Marcela de Holanda
Sentou no banco da praça como sempre sentava às quartas, sempre naquela hora. Esperou por cinco minutos. Será que ele não apareceria? Mas lá veio ele correndo, suado e sentou ao seu lado como de costume. Com a respiração ofegante, ele parecia até que estava prestes a falar alguma coisa, mas abriu um livro. Ela já estava com o seu.
Há três meses, repetiam esse ritual e nunca tinham trocado nenhuma palavra. Só ficavam ali, lado a lado, por mais ou menos uma hora, conscientes da presença um do outro. Nessa quarta, ela sentiu que ele não estava bem, mas não tinha coragem de quebrar o silêncio mágico daquele momento. Tinha medo de perdê-lo se falasse.
Ela o amava. Esperava a semana toda por aquela horinha. E ele devia sentir alguma coisa por ela também já que era impossível que a sua presença fosse mera coincidência. Pouco antes de 13:00, percebeu que ele estava chorando. Quis consolar, quis perguntar, mas não conseguia nem olhar para o lado.
Ele se levantou, se afastou e só aí ela se virou. Trocaram um olhar pela primeira vez e ele se foi. Reparou que ele tinha esquecido o livro no banco. Preferiu guardar do que correr atrás dele. Na quarta seguinte devolveria e, quem sabe, ele agradeceria.
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Cai fora
Por Marcela de Hollanda
Fica longe de mim
Eu não te aguento mais
Tudo o que eu quero
É poder ser em paz
E também não ser
Quando melhor assim for
Sem a sua interferência
Sem você no interior
Quero poder sair sozinha
Sem ter que me preocupar
Quero também perder a linha
Sem você para regular
Não quero mais só voo baixo
Não faço questão de sair inteira
Quero achar o lugar onde encaixo
E poder ser plena na minha maneira
Não tolero a sua presença
O pior inimigo é o que não se vê
Te expulsar é difícil, mas compensa
Pois, medo, eu morro de medo de você.
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Já era
Por Marcela de Hollanda
Vamos encarar os fatos. Eu vou te decepcionar. Por mais que seja a última coisa que eu queira. É inevitável. Quanto mais eu me esforço para ser cada vez melhor, mais perto eu chego desse momento porque maior vai ficando a sua expectativa. E chega uma hora que não dá. E o pior é que nessa vez que eu revelar que não consigo ser tudo que você pensa o tempo todo, tudo estará acabado. Nunca mais será a mesma coisa. Eu vou ser só mais uma. Por que você está me olhando assim? Entendi. Foi agora mesmo, né? É claro que não foi pra isso que você me procurou. Te decepcionei. Droga. Mas quer saber? Me sinto até aliviada. Não tem nada mais sufocante do que a auto ditadura da perfeição ilusória.
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Você
Por Marcela de Hollanda
Seja em mim o mar. Aquele que de mansinho começa a me beijar os pés, mas que revolto, em seguida, me inunda, me engole e me devolve à superfície renovada, de alma lavada. Aquele que me deixa só pra levar pra longe tudo aquilo que não quero, mas que sempre volta pra refrescar o que é saudade.
Seja em mim o vento. Aquele que de leve beija meu rosto aliviando o calor dessa longa caminhada, mas que revolto, em seguida, me descabela toda, me desorienta e me obriga a sair do lugar. Aquele que não preciso ver pra sentir e que faz o meu mundo balançar.
Seja pra mim o fim de outros começos e outros fins. Seja a linha que não tem chegada. Seja pra mim as respostas que contêm em si novas perguntas. Seja a razão pra eu perder a razão. Seja você. Assim. Do jeitinho que você é.
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10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1...
Por Marcela de Hollanda
O Réveillon é como uma ola mundial de esperança. De fuso em fuso, milhões de pessoas se concentram em variações de um mesmo desejo: a felicidade. Como se as incapacidades e as dificuldades não pertencessem a nós mesmos e sim ao ano que está ficando para trás. Esperamos ansiosos pela virada depois da qual tudo vai ser diferente. Alguns começaram aquela dieta milagrosa, outros entrarão na academia. Uns enfim vão desencalhar, outros conseguirão um emprego. Uns largarão os empregos de que não gostam para buscar os seus sonhos, outros vão ganhar na loteria. Uns vão melhorar a alimentação, outros terão o que comer todos os dias. Uns farão filhos, outros encontrarão novos pais. Um monte de coisas e outros um monte de outras coisas. Que delícia deve ser para o mundo toda essa energia positiva! Ele deve se sentir renovado o suficiente para viver mais um ano inteirinho.
Que você consiga abrir seu coração o bastante para sentir toda essa corrente e, quem sabe, não ficar só na esperança. E que os seus anos sejam tão bons que quando cheguem ao fim você tenha pena de deixá-los partir.
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Já é Natal?
Por Marcela de Hollanda
Antes do meu vigésimo sétimo Natal, eis que eu descubro que o Papai Noel não era a única mentira da data. Aquele motivo verdadeiro e nobre para se comemorar, o que a gente reclama que muita gente esquece, o do nascimento de Jesus, também é uma farsa. Não que Jesus não tenha nascido e que seu nascimento não deva ser comemorado, mas ele não nasceu no dia 25 de Dezembro. Só tinham esquecido de me contar isso até hoje. Se você não acredita, é só dar uma olhada no Google e verá uma enorme quantidade de matérias sobre isso. Não se sabe o dia do seu nascimento. Na falta de um dia, lá atrás na História em Roma, escolheram um que continha uma celebração pagã e transformaram na maior das datas cristãs. Por sua vez, a sociedade capitalista transformou na maior data do comércio.
E que sobra então? Tudo. O que vale é a intenção. Que o espírito natalino viva ao menos um dia por ano, seja o dia que for. Que as crianças tenham sempre direito à magia. O Natal é uma data essencialmente familiar e, por isso, fundamental. Nesses tempos tão corridos, toda desculpa é válida para parar e se reunir com todos aqueles a quem você foi ligado pelo nascimento, seja o seu ou o do outro. É hora de lembrar que Deus não coloca ninguém na nossa vida por acaso. Cada familiar carrega uma possibilidade de aprendizado, de crescimento pra gente. E o maior exercício de crescimento é a prática do amor.
Com alguns desses familiares você pode se dar particularmente bem. Aproveite e seja agradecido por ter a oportunidade de ter tais companhias. Outros podem representar um verdadeiro e constante desafio. Dê especial atenção a essas relações. São as com que você pode crescer mais se souber colocar o amor acima de todas as dificuldades. Ame e compreenda a sua família. Se vocês estão juntos nessa vida, é pelo bem de todos. Que nesse Natal os presentes não sejam uma obrigação, mas uma forma de dizer “eu te amo”. O Natal é como uma caneta marca texto, mas o texto é válido para todos os dias.
Feliz Natal!!!
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Saudade
Por Marcela de Hollanda
A pior saudade
É a saudade de quem ainda não foi
Essa saudade antecipada
Imaginada, pressentida
Com a saudade concretizada
A gente convive, se adapta. Suporta.
Aquela que não tem remédio
Remediada está
Mas a saudade que ainda vem
A que parece que você pode evitar
Te faz querer se agarrar e não largar
Projetar cenários caóticos
Faz o peito apertar e doer
Faz o pulmão fechar, o intestino revirar
E o pior
Te faz deixar de enxergar
Que a outra pessoa ali ainda está
E te faz perder todo o tempo
Que você tinha para aproveitar
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AAAAAAAHHHHHH!!!!!!
Era um grito de alívio
Era um grito de desespero
Era um grito de prazer
Era um grito de angústia
Era um grito de terminar
Era um grito sem fim
Era um grito de não saber
Era um grito de querer
Era um grito de silenciar
Era um grito de explosão
Era um grito para dar vazão
Era um grito na cabeça
Era um grito na mão
Era um grito na caneta
Era um grito no papel
Era um grito que nunca gritou
Mas que ecoou, ecoou, ecoou...
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O Casamento
Tradição: respeito ou evolução?
Sinais vitais
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O Casamento
Por Marcela de Hollanda
Até que um dia, chega um daqueles raros momentos em que a experiência supera em muito a expectativa. E olha que a expectativa era perigosamente enorme. Igualmente grande era o medo. Medo de qualquer coisa dar errado, medo do ridículo, medo de não dar conta. Mas quando o que te move é algo tão nobre, bonito e puro como o Amor, o Universo te pega no colo, a gravidade tira licença e os órgãos todos funcionam num regime especial. Se sentindo abençoada por forças invisíveis, tudo parece fácil, prazeroso, natural.
Um lugar precioso é criado internamente para onde você pode ir quando quiser ou for necessário. Um lugar perfeito para recarregar as energias. Cada pedaço da felicidade daquele dia está lá, muito bem guardado. E isso não tem preço. Saber também que em algum lugar do outro, do ser amado, escolhido, um espacinho parecido foi criado, é maravilhoso.
E então, entre esses espaços internos há um elo, uma ponte, uma ligação. Não humana, mas divina. Fortalecidos pelo sucesso da experiência, pelas dificuldades das provas para se chegar lá, pelos sonhos compartilhados e realizados, pelos desejos e abraços sinceros dos amigos, pela coragem de dar um passo à frente sem checar o chão abaixo, multiplicamos nossas chances de chegarmos de mãos dadas à linha de chegada da maratona da vida.
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Com que roupa?
Por Marcela de Hollanda
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Por Marcela de Hollanda
- Você vem ou não vem?
- Não sei. Já vou, eu acho. Hoje nada está ficando bom em mim.
- Que besteira! Você está linda. Pode deixar que eu arrumo a montanha em cima da cama quando a gente voltar. Mas vamos agora ou vamos perder a hora.
- Eu estou horrorosa. Fico péssima de cinza.
- Então coloca o vermelho.
- O vermelho? O vermelho é de ficar em casa. Você tá de sacanagem com a minha cara?
- Não. Você fica muito gostosa com o vermelho. Bota o preto. Preto não tem erro, né?
- Eu já fui com o preto da última vez.
- E você acha que alguém vai lembrar?
- Claro que vão. E a sua prima vai comentar com certeza.
- Pára de implicar com a Sheila. Eu já disse que não tive nada demais com ela. Foi só coisa de criança.
- Ela chorou no nosso casamento. De soluçar!
- Estava emocionada, amor. Veste qualquer coisa e vamos logo. Pelo amor de Deus!
- Não me pressiona que é pior. Eu vou com o azul. Me dá só mais meia hora para me maquiar.
- Meia hora?
- Quinze minutos.
- ................................................................
- Estou pronta, amor. Vamos. Por que você tá de casaco?
- Por nada. Eu vou tirar. Vamos embora.
- Espera aí. (Abre a cortina) Por que você não me avisou que estava chovendo?
- Achei que você sabia.
- E se eu soubesse iria colocar esse vestido com essa sandália?
- Sei lá, amor. Pega um casaco e vamos.
- Não dá. Esse vestido não combina com casaco. Vou ter que trocar tudo.
- Então coloca o pijama.
- O que?
- Nós não vamos mais. Vou ligar pra minha mãe e dizer que você está doente. Quer pizza de que?
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De casca nova
Por Marcela de Hollanda
Por Marcela de Hollanda
- Shhh!!! As paredes tem ouvidos. Você não sabia? Mas será que elas têm memória ou entra tudo por um ouvido e sai pelo outro? O que será que elas lembram dos antigos moradores? Será que sofreram? Coitadas! Na dúvida é melhor mudar tudo. É preciso conquistar a confiança e a fidelidade delas. Uma boa camada de tinta pra elas esquecerem. Carinho com o rolo pra elas gostarem da gente. Um bocado de energia para dar-lhes novos ouvidos. Que elas nos protejam. Que testemunhem muitas alegrias. Que não desabem com os desentendimentos. Que isolem tudo que for íntimo demais para ser exposto. E que se um dia formos buscar novas paredes, elas não contem nada para ninguém. É. Não há lugar no mundo como a nossa casa. E nada melhor do que estar com você, não entre quatro, mas entre muitas paredes. Nossas paredes.
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Filhos de uma mãe gentil
Por Marcela de Hollanda
Por Marcela de Hollanda
Talvez o grande problema
Dos seres humanos nascidos brasileiros
Seja o excesso de apego pela vida
Por mais Severina que seja
Nos parece melhor que a luta
Independência ou morte é história, ficção, piada
Se tem sol, praia, novela, futebol
Pra que arriscar perder tudo?
A pizza é amarga, mas desce com Coca-Cola
Vivemos todos mais ou menos anestesiados
Aprendemos a não ver, não ouvir, não pensar
É mais fácil, é mais simples, é mais seguro
De vez em quando, entre uma dose e outra,
Acordamos, lamentamos, nos revoltamos
Mas a dose seguinte ou a gente toma
Ou nos enfiam goela abaixo
Estamos todos internados nesse país surreal
Que sobrevive dia a dia esperando o Carnaval
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Até o Fim e o Recomeço
Por Marcela de Hollanda
Por Marcela de Hollanda
Vivo a vida sem pressa de acabar
Vou costurando um dia no outro
Intercalando alegrias e tristezas
Inventando motivos para continuar
Se faz frio, me visto de Sol
Se me apaixono, dou um salto mortal
Quando estou ontem, me belisco até marcar
Se me esqueço do porquê, pergunto a uma criança
Faço planos só para ter o prazer de abandonar
Sou tão coerente quanto o camaleão é árvore
Gosto de rodar até cambalear
Mas nunca me deixo cair mais vezes do que possa levantar
Vivo a vida sem pressa de acabar
E o melhor da vida é que mesmo quando tudo dá errado
Sempre dá pra improvisar
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Por Marcela de Hollanda
Falo hoje na primeira pessoa do singular para não embutir meu ponto de vista em nenhuma forma. Há alguns anos, ainda no Ensino Médio, um professor de geografia olhou para mim e disse que eu tinha cara de feminista. Do nada. Eu não tinha emitido nenhuma opinião, não estava sendo discutido nenhum assunto relacionado. Ele olhou para mim, sentiu e disse. Eu não compreendi, nem concordei. Não identificava em mim nenhuma necessidade de defender essa bandeira, nem tinha consciência se pensava ou não sobre isso. Quando nasci, as mulheres já tinham conquistado direitos que a minha geração sequer consegue conceber direito que algum dia tivessem sido negados. Demorou um tempo para eu começar a perceber que o que antes era uma diferença legalmente instituída, deixou ainda tantos resquícios sob o nome de Costume ou Tradição. Não digo aqui que eles devem ser todos abandonados. Longe disso. Mas é sempre bom lembrar que eles não são verdades absolutas, não são os mesmos desde que o mundo é mundo. Os antepassados que os criaram e a quem podemos achar que devemos reverenciar respeitando seus legados culturais, um dia também quebraram a corrente. E, por isso, as tradições podem e devem ser constantemente questionadas e, se necessário, mudadas. Não é um desrespeito, é um respeito. Respeito pela necessidade de constante evolução do ser humano. Respeito pelos que tiveram coragem antes para transformar as coisas e tornar possível o mundo de hoje. Quem tornará possível o mundo de amanhã? Os que agora aqui estão. Já foi o tempo em que as crianças eram criadas na base do “Isso é assim porque é assim.” E bendita seja a necessidade de argumentar. Ela está aí para nos ajudar a questionar, refletir. A cabeça não está aí para adornar o pescoço. Isso não se limita às questões relacionadas à igualdade de direitos entre os sexos, mas passa por elas. Não se limita à questão das tradições, mas passa por ela. Podemos perder tanta coisa boa simplesmente por achar que as coisas só podem ser como sempre foram. Não acho que preciso citar aqui exemplos. Sei que quem lê é capaz de identificá-los sozinho e terá maior ganho fazendo isso. Ao professor de geografia eu digo: não sei se feminista é uma palavra que pode ser aplicada à minha pessoa, mas conformista também não.
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Por Marcela de Hollanda
Amar é natural como respirar
Ainda que, às vezes, o ar falte por alguns segundos
Que seja difícil inspirar bem fundo e se sentir pleno
Que possa haver obstruções no caminho
Que tenha que ser com a ajuda de aparelhos
O ar sempre acaba entrando e o amor também
Amar é fundamental como respirar
Amar é indispensável como respirar
Com ou sem qualidade, todo mundo respira, todo mundo ama
Para estar vivo, não basta estar respirando
Tem que estar amando.
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Lady Murphy
Por Marcela de Hollanda
Pai modelo
Por Marcela de Hollanda
Por Marcela de Hollanda
- Pai, quando eu crescer, eu quero ser igual a você.
- Sério, filho? Que legal ouvir isso. Quer dizer que você quer ser assim alto e fortão?
- Não, pai. Eu já alcanço tudo o que eu preciso.
- Então você quer ser um advogado de sucesso.
- Não, pai. Eu quero ser músico ou astronauta.
- Ah... Então você quer ser igual ao papai como?
- Eu quero ser um cara bom como você.
- Você me acha um cara bom?
- O melhor.
- Não sou o melhor não, filho. Mas eu me esforço.
- Eu sei, Eu me lembro daquele dia que um menino chegou perto de você pedindo uma moedinha e você mandou ele tomar banho. Ele nem era nada seu e mesmo assim você ensinou que a higiene era mais importante do que o dinheiro.
- É....
- E teve também aquele dia de manhã que o outro menino deixou a bala no retrovisor e você foi embora quando o sinal abriu sem devolver. Pra ele não comer bala antes do almoço.
- Filho... É.... Eu não sei nem o que dizer.... É.... Quando eu crescer, eu quero ser igual a você.
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Ana
Por Marcela de Hollanda
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Os dois estão tomando um café. Na verdade, ele ainda espera esfriar enquanto ela vira o café inteiro de uma vez queimando a língua e o céu da boca. Do nada, ela dispara.
Ana: Carlos, eu preciso terminar com você.
Carlos: Ahn? Tu tá falando sério?
Ana: Acho que sim.
Carlos: E posso saber por quê?
Ana: Eu tenho 25 anos.
Carlos: E acabou nosso prazo de validade?
Ana: Não. Mas o meu tá chegando perto.
Carlos: Tu tá doente?
Ana: Não! Vira essa boca pra lá.
Carlos: Puta susto que tu me deu agora. Papo reto. Tu não me ama mais? É isso?
Ana: Amo.
Carlos: Te fiz alguma coisa?
Ana: Não. Você é um ótimo namorado.
Carlos: É porque eu não te pedi em casamento ainda?
Ana: Mais ou menos. É porque eu já estou muito velha pra continuar numa relação que não vai dar em nada.
Carlos: Como assim dar em nada? A gente se dá bem pra caramba. A gente se ama. Já se conhece um bocado. Eu nunca disse que não ia querer casar, ter filhos, casa, cachorro contigo. Só tem que ser no tempo certo.
Ana: É. Você não disse. Mas eu sei.
Carlos: Tá interessada em outro cara e quer me enrolar com essa conversinha toda, né?
Ana: Não. Não tem outro nenhum. Ainda. Mas vai ter. Eu fui numa cartomante hoje.
Carlos: Cartomante?
Ana: É. A Paulinha me chamou pra ir com ela e eu fui por curiosidade.
Carlos: E ela disse que tua ia se apaixonar por outro.
Ana: Ela disse que o grande o amor da minha vida eu ia conhecer num lugar onde se lê. Já que não é você mesmo, acho melhor pra nós dois que a gente termine logo. Quanto mais cedo, menos a gente vai sofrer. Não é melhor terminar enquanto a gente se gosta e se respeita?
Carlos: Não. O melhor é a gente continuar junto. Mas, como tu disse, eu te respeito. E se tu quer terminar comigo por causa de uma bobagem dessas, deve ser melhor terminar mesmo. Só não posso te dizer que vou sofrer menos.
Ele sai. Ela chora. Tem vontade de gritar pedindo pra ele voltar. Mas se segura. Melhor sofrer agora do que depois. Melhor ficar livre para o grande amor entrar. Se aquele cara, que ela amava tanto, ainda não era seu grande amor, ela não podia nem imaginar o quanto feliz seria com o cara certo.
Passou a frequentar bibliotecas, livrarias e universidades. Tinha que dar uma mãozinha pro destino. Conheceu alguns poucos caras, até interessantes, mas os relacionamentos não chegavam a acontecer de verdade.
Quando fez 30 anos, desistiu de procurar. Acabou namorando um cara que conheceu num acidente de trânsito dentro de um túnel. Um ano depois, casaram. Tiveram dois filhos e quando o menor fez dois anos, se separaram. Arrasada, não só com a separação em si mas com todo o tempo perdido procurando nos lugares errados por causa de uma cartomante pilantra, saiu pra beber com a sua amiga, separada do marido há mais tempo, Paulinha.
Ana nunca tinha sido muito de sair à noite. Não gostava do ambiente apertado e sufocante das boates. Mas aceitou ir só naquela noite. Depois de três cervejas e uma dose de tequila, viu, do outro lado da pista, Carlos, seu ex. Lembrou da besteira que tinha feito por terminar com ele por um motivo tão idiota. Com ele que era um cara incrível. Passando por um momento sensível e bêbada, não conseguiu segurar uma lágrima ao imaginar o que podia ter sido da sua vida se nunca tivesse entrado naquela cartomante. Será que teriam ficado juntos e felizes?
Foi ao banheiro retocar a maquiagem. Na saída, deu de cara com o próprio. Começaram a conversar um pouco. Ela, constrangida pelo que tinha feito. Ele, ainda um pouco ressentido. A tensão entre os dois era inegável. E com o barulho da boate, tinham que conversar muito próximos. A tequila falou mais alto e ela partiu pra cima dele num beijo de lava vulcânica. Se beijaram por meia hora, não resistiram e entraram no banheiro masculino.
Depois de consumado o ato, era impossível de não se lembrarem. Aquela era a mesma boate. Aquele era o mesmo banheiro. Diante de uma fila enorme de mulheres, ela, depois de cinco cervejas e duas doses de tequila, tinha decidido usar o banheiro masculino mesmo. Mas se esqueceu de trancar e levou um susto quando ele entrou. Os dois ficaram muito sem jeito e mais ainda quando, uma semana depois, descobriram que trabalhavam no mesmo prédio. O episódio tinha sido lembrado várias vezes durante o namoro deles. Se lembrando disso naquele momento de reencontro, sorriu e ainda vestindo a blusa olhou pra frente. Na porta do banheiro, todo tipo de piadinhas e xingamentos decoravam o ambiente.
Ana: Filha da puta!
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Emergência
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- Ela não consegue respirar!
- Foi o Estado. Sentou nas asas dela. Prenderam ela no chão. Ela tentou voar e fugir. Eles não soltaram. Cortaram-lhe as asas e largaram ela aqui.
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Lady Murphy
Por Marcela de Hollanda
Acordou um pouco atrasada. Um pouco, normalmente, eram dez minutos, mas, nesse dia, foram cento e oitenta minutos. Como ela pôde dormir três horas a mais do que o planejado no dia do seu casamento? Engoliu um pão tão rapidamente que só percebeu que estava mofado na última mordida. Ela tinha que ir buscar uma tia no aeroporto que ficava do outro lado da cidade. Por que ela, sendo a noiva, ia pessoalmente buscar a tia e não passar um dia num spa cuidando da beleza? Essa tia nunca aceitaria uma desfeita dessas. E ela tinha o péssimo hábito de não querer desagradar ninguém. Principalmente membros da família.
Faltavam quinze minutos para a hora programada para o voo chegar. Colocou uma roupa qualquer e saiu sem nem escovar os dentes. A caminho do aeroporto, passou do limite de velocidade tantas vezes e ultrapassou tantos sinais vermelhos que só pensava que as multas sairiam mais caro do que a festa de casamento. Isso se ela chegasse viva até lá. Conseguiu chegar em meia hora. Era o tempo da tia ter pego as malas e ir encontrá-la. Mas não. Com a correria ela não tinha verificado. O voo estava atrasado e não tinha previsão para chegar. Como ela podia ficar esperando? Tinha um milhão de coisas para resolver. Precisava ir embora imediatamente. Mas não foi. Pensou que a tia ficaria magoadíssima. Tudo que restava era tentar resolver umas coisas pelo celular. Isso se ela tivesse lembrado de tirar do carregador e colocar na bolsa. Esperou, impacientemente, por duas horas. O voo chegou.Mas a tia não.
Ligou a cobrar de um orelhão do aeroporto para saber o que estava acontecendo. A tia atendeu com uma voz perfeitamente normal e disse que tinha desistido de viajar porque estava com uma indisposição terrível. Tão ruim que se esqueceu de ligar. E indisposição por acaso é algum tipo de doença terminal? Foi o que ela quis berrar ao telefone. Mas disse que era uma pena e que compreendia completamente. Estava tão arrasada que nem dirigiu correndo na volta. Tinha perdido a hora das unhas, da maquiagem, do cabelo, massagem. Paciência. O noivo teria que amá-la do jeito que era. Foi para casa, tomou um banho bem demorado e se vestiu.
Vestida para casar, se olhou no espelho pela primeira vez no dia. Misteriosamente, uma sobrancelha estava muito maior que a outra. O formato das duas estava totalmente diferente. Correu para pegar uma pinça e começou a tentar resolver o problema. Ela não era muito habilidosa. Foi tirando, tirando, tirando, até que tinha tirado demais. Era a vez de tirar da outra e deixar tudo igual. Mas acabou passando do ponto e quando parou de insistir na sucessão de erros já era tarde demais. Não tinha sobrado quase nada. As lágrimas que rolaram não ajudaram em nada a melhorar sua nova aparência extraterrestre. Enxugou uma a uma, assoou o nariz vermelho e resolveu encarar a sociedade.Dessa vez, era inevitável. Ia desagradar a família inteirinha. Pelo menos na entrada da igreja tinha o véu para cobrir o rosto.
Entrou sozinha. O véu cobriu não só o estrago na sobrancelha, mas também o rosado envergonhado das bochechas quando levou um tombo no caminho. O noivo nem foi lá ajudá-la a se levantar. Quando levantou o véu, pode apalpar a decepção na expressão dele. E na hora do sim, ouviu um não. Desmaiou. Acordou com o despertador. Graças a Deus não estava atrasada. Era o dia do seu casamento e ela tinha muito o que fazer. Se olhou no espelho e uma sobrancelha estava muito maior do que a outra. Desmaiou.
Entrou sozinha. O véu cobriu não só o estrago na sobrancelha, mas também o rosado envergonhado das bochechas quando levou um tombo no caminho. O noivo nem foi lá ajudá-la a se levantar. Quando levantou o véu, pode apalpar a decepção na expressão dele. E na hora do sim, ouviu um não. Desmaiou. Acordou com o despertador. Graças a Deus não estava atrasada. Era o dia do seu casamento e ela tinha muito o que fazer. Se olhou no espelho e uma sobrancelha estava muito maior do que a outra. Desmaiou.
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