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sábado, 15 de fevereiro de 2014

O Verme

Por Rodrigo Amém

Definitivamente, não era capaz de suportá-lo. Tudo em sua maneira de portar-se sobre a Terra lhe era profundamente irritante. Não que qualquer evento do passado fosse responsável por tal emulação. Era coisa de santo, diriam alguns. Mas era mais. Era coisa de santo, de profano, de Deus e do Diabo. Com todas as suas forças, odiava-o e pronto. Nem podia evitá-lo. Trabalhavam no mesmo local, em departamentos que, ainda que diferentes, eram profundamente relacionados.

Certa vez, inadvertidamente, parou de trabalhar e começou a fitá-lo de olhos obtusos. Nada pensava, apenas fermentava sua repulsa. Notou sua barba mal feita, com pelos solitários ladeando marcas de acne, reminiscências daquilo que deve ter sido um jardim pustulento e amorfo, habitado por leucócitos polimorfonucleares vivos e mortos. Imaginou-o coberto de micro-vermes. Um grande verme e seu séquito. Sentiu um arrepio fruto da repulsa. Seus cabelos pareciam-lhe sebosos, insalubres. Seu sorriso era amarelo, sobre gengivas de cimento. Quantas bactérias caberiam em sua boca mole e malcheirosa? Sentia náusea ao imaginar o estado de suas roupas de baixo. Voltou os olhos para o trabalho e procurou esquecer as imagens que criara. Jamais pôde.

Com o tempo, percebeu que reconhecia os passos dele. Eram dissonantes, estridentes. Maldizia-os, sentia o estômago doer quando percebia sua aproximação. Tinha medo de não poder conter-se e terminar por esganá-lo sem maiores explicações. Seria demissão por justa causa, com certeza. Mas o prazer, meu deus, o prazer de acabar com aquela existência miserável... Toda vez que ele perambulava por seus domínios, tinha vontade de vazar-lhe os olhos com uma caneta Bic. Salivava apenas em pensar o quanto seria prazeroso arrancar-lhe, um a um, os cabelos da cabeça.

Muitas vezes, quis sair da sala. Não o fazia em consideração aos demais colegas. Afinal, sabe-se lá porque, gostavam do cara. Não o viam da mesma forma, pelo menos. E isso era difícil de administrar. Resolveu manter seu ódio em segredo. E se mantinha em silêncio quando ele estava presente. Com o tempo, alguns companheiros passaram a observar que havia qualquer coisa de errado no tratamento que dispensava ao pusilânime rapaz. Mas a resposta a qualquer indagação sobre o assunto era evasiva, quando não mentirosa. Os colegas preferiram, então, deixar o caso de lado. Eles, que são brancos, que se entendam.

Uma noite, ela teve um sonho. Acordou trêmula, afoita. Sentou na cama e começou a chorar. Ainda em prantos foi lavar o rosto no banheiro. Encheu as mãos d'água e levou-as ao rosto já úmido de lágrimas. Olhou-se no espelho e lembrou-se do sonho.


Lembrou-se da maneira que ele a tocava. Do jeito que aquela boca mole e mal cheirosa percorria-lhe o corpo, ladeada por pelos mal aparados que roçavam sua pele, enquanto os dentes amarelados mordiscavam cada centímetro de sua carne. Lembrou-se de segurar com força aqueles cabelos sebosos enquanto contorcia-se, em delírio. Ajoelhou-se sob a pia, chorando copiosamente. Estava perdidamente apaixonada.




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