Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
De qualquer forma, nada é igual.
Aqui cada dia é dia de um texto diferente.
Quer sair da rotina? Fica com o Salada!

quinta-feira, 31 de julho de 2014

Romeu e Julieta

Por Bernardo Sardinha

Todo dia, ao chegar em casa, uma cartinha diferente a esperava no chão. Todo dia era uma carta de amor, onde o remetente dizia que ia se matar por não a ter ao lado dele. Todo dia era uma ameaça de suicídio diferente. Todo. Dia.

Então, cansada, ela foi à papelaria e comprou o papel de carta mais bonito que encontrou, umas canetinhas coloridas e um envelope cheio de gueri gueri. Escreveu, então, em letra de forma: "Vê se morre logo." E enviou para o Romeu apaixonado.

As cartas de amor/suicídio pararam. Passou segunda-feira, terça, quarta e quinta. Um mês e ela começou a ficar preocupada. Fuçou sua rede social e não encontrou o perfil dele. Procurou informações entre os amigos em comum e não encontrou nada sobre o paradeiro do suicida.

Cheia de culpa, decidiu, após o trabalho, ir a casa dele e ver se estava tudo bem. Tocou a campainha e o sonso abriu a porta com um meio sorriso no rosto e após suspirar aliviada ela gritou: - "Seu filha da puta!" virou de costas e foi embora.


Romeu só ria. 


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quarta-feira, 30 de julho de 2014

O Jantar – Parte final

Por Marcela de Holanda


Depois de ouvirem o discurso de Rodrigo, todos, exceto Bruno que ainda oscilava entre o próprio drama e o que acontecia à sua volta, prestavam abertamente atenção ao que se passava na mesa 5.

Camila – Rodrigo. Você me decepcionou mesmo por não ter falado nada. Mas tudo bem. Eu entendo que tenha sido difícil. Mas é só. Aliás, melhor não falar nada do que falar as besteiras que você acabou de falar. Quando foi que eu te pedi alguma coisa que não fosse o seu amor? É claro que eu tenho meus sonhos, como toda mulher, de casar, me vestir de noiva, ter uma festa. Mas eu abriria mão de todos eles sem pensar para ser a sua mulher. Para estar do seu lado nos momentos mais simples do dia a dia. Para te encontrar todos os dias depois do trabalho. Para conversar todas as noites antes de dormir. Para te dar um beijo de bom dia mesmo que você volte a dormir logo depois. Para brigar sobre a quantidade de filhos que a gente quer ter. Para mim, é melhor ter tudo isso logo, do que esperar para ter dinheiro para fazer isso com tudo que você acha que eu tenho direito. Não tem nada mais valioso do que o tempo. Eu sou enfermeira. Sou lembrada do valor dele todos os dias. Vejo o quanto ele é finito e imprevisível. Se você pode e quer me dar o seu amor e o seu tempo, eu já sou a mulher mais feliz. Você, como professor, não aprendeu isso nos livros?

Rodrigo – Então você aceita casar comigo, sem anel e sem nada? Você não vai ficar se lamentando no futuro de não ter tido essas coisas?

Camila – Esquece o futuro. Eu aceito!

Os dois se beijam.

Camila – Mas, espera aí. Você disse que estava quase conseguindo o dinheiro e que tinha falhado. O que aconteceu?

Rodrigo – Você promete que não vai brigar comigo?

Camila – Prometo.

Rodrigo – Foi o João. Ele apareceu lá em casa. Tava encrencado. Precisava da grana.

Camila – Você deu o dinheiro do nosso casamento para um drogado? Você tá maluco, Rodrigo? Que uso você acha que ele vai fazer desse dinheiro? E além disso, você não vê o João há um tempão. Que grande amigo é esse que só aparece para pedir dinheiro?

Rodrigo – O João é meu melhor amigo de infância, Camila. Você sabe disso. Ele tava lá do meu lado quando ninguém mais tava. Eu dei o dinheiro para ele e daria de novo. Você sabe o quanto me dói ver ele perdido assim na vida? Podia ser comigo. E eu sei que ele faria a mesma coisa por mim. Eu dei a grana para ele. Ele estava devendo. Corria risco de vida. Você sabe como são essas coisas. Mas não dei de graça não. A gente foi lá, pagou a dívida e depois fomos juntos para a clínica. Ele tá internado. Tem três meses já. Tá se recuperando muito bem. To feliz por ele.

Camila – E por quê você não me contou isso? Olha, se a gente vai mesmo casar tem que começar a dividir mais as coisas. Confia em mim, tá? O que você fez foi certo. To orgulhosa de você. Você é um cara mesmo muito especial.

Cláudia, uma das irmãs da mesa 4 se aproxima de mesa 5 emocionada pela história e pelos drinks tomados sem refeição.

Cláudia – Com licença. Desculpem mas eu não pude evitar de ouvir a conversa de vocês. Vocês são um casal tão fofo!!!! Ooops, foi mal eu bebi um pouco demais. Eu não pude evitar de vir aqui dar os parabéns. E tem mais uma coisa. Eu e a minha irmã acabamos de abrir um novo negócio. É uma casa de festas aqui pertinho. Não é nada muito luxuoso, mas precisamos de uma primeira festa para podermos usar de divulgação e ouvindo a história de vocês achamos que não teria inauguração melhor do que o casamento de vocês. Nós queremos oferecer o espaço e a decoração, por nossa conta. Em troca, vocês autorizam o uso das fotos e da história de vocês. Que tal?

Camila – Uau!

Rodrigo – Isso é bem inesperado. Nós podemos pensar um pouco? Como é o seu nome mesmo?

Cláudia – Cláudia.

Camila – A gente aceita.

Rodrigo – Se a noiva diz... Muito obrigado, dona Cláudia.

Cláudia – Aqui está o meu cartão.

Aliviado por toda a confusão ter se resolvido bem, o dono do restaurante, Francis, que participava da reunião de negócios na mesa 2 e sua mulher, Denise, ainda mais sensível pela maternidade recente, também se aproximaram da mesa 5.

Francis – Deixem eu me apresentar. Eu sou o Francis. Dono do estabelecimento. Em primeiro lugar, em meu nome e da minha equipe, sentimos muito pelo ocorrido. E como uma forma mínima de compensação...

Denise – Gostaríamos de oferecer o buffet do casamento de vocês! Ai, vocês vão ser tão felizes! Parabéns, Camila! Você tem um homem e tanto! Com todo respeito, claro.

Francis – É isso mesmo. Teremos muito prazer em participar de alguma maneira dessa celebração. Me procurem aqui na quarta que vem para discutirmos as opções de menu e quantidade de convidados.

Na volta para a mesa 2, Francis e Denise conseguem fechar o negócio que tentavam há horas. Os interessados em abrir uma franquia na Europa ficaram impressionados com a generosidade dos dois e acharam que seria uma boa iniciar a sociedade. Na mesa 1, José, o pai de família que comemorava sua promoção, se empolga e fica pensando em como poderia contribuir também para essa união. Lembra de um detalhe que ouviu na conversa.

José – Acho que a esse ponto vocês já perceberam que todos nós ouvimos a conversa de vocês. Eu gostaria de poder ajudar também. Rodrigo, você é professor de que?

Rodrigo – Eu? Dou aula de história para Ensino Médio.

José – E o seu horário está todo preenchido?

Rodrigo – Não, não. Dou aula só duas vezes por semana. Tá difícil o mercado. Sabe como é?

José – Que maravilha! Então acho que também posso contribuir. Sou professor de história também e acabei de ser promovido a diretor da escola onde trabalho. Vou precisar de alguém para me substituir. Esse é o meu e-mail. Por favor, me envie o seu currículo e marcaremos uma entrevista para assim que possível. Com licença. Ah, e parabéns o casal.

Camila – Obrigada.

Rodrigo – Caraca, amor. Que demais! Viu só? Deus é mesmo muito bom. Você não sabe o quanto fico aliviado de saber que você vai ter pelo menos uma parte do que merece. Obrigado por me aceitar apesar de tudo. Eu te amo.

Camila – Eu também te amo.

Bruno paga a conta e levanta da sua mesa para ir embora. Antes de sair, passa pela mesa 5.

Bruno – Com licença, senhorita. Mas acho que isso te pertence. Espero que o cavalheiro não se incomode e não me entenda mal. Mas acho que ele estava destinado a pertencer a ela desde o início.

Bruno deixa o anel em cima da mesa e sai pensando em ligar para Aline e no quanto  a vida é mesmo imprevisível. Camila olha para Bruno buscando aprovação.

Camila – Posso?

Bruno – É como ele disse. Não existe mulher no mundo que mereça mais do que você. Ou que fique mais bonita com ele.

Camila coloca de volta o anel. Seus sonhos foram devolvidos de uma maneira louca. Custava a acreditar que aquilo tudo era real. Mas o real não era mesmo muitas vezes inacreditável? Das surpresas que o futuro lhe reservaria ou quanto tempo ainda teria nessa vida, ela nada sabia. Mas de uma coisa tinha certeza. Nunca esqueceria aquele jantar.

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terça-feira, 29 de julho de 2014

Estava de dia e as luzes da rua ainda estavam ligadas

Por Rec Haddock

Acordei sozinho. Ela tinha dormido comigo, mas isso não era mérito. Ela só dormiu aqui porque não tinha como voltar para a casa da mãe.

Uma fresta na janela deixava um feixe fraco de luz entrar para denunciar a poeira que voava no quarto. A casa realmente estava suja demais. A poeira dançava e dançava, e me perguntei porque o meu nariz não coçava.

Não podia afirmar que a culpa era só dela, mas era principalmente. Ontem, quando cheguei em casa encontrei a cama feita só do lado dela. Apenas a louça que ela usou estava lavada, apenas as roupas dela estendidas.

Ela deve ter ido embora, pensei.

Acabou.

Mas ninguém sabe do futuro, e a esperança é a última que morre porque preferimos viver em um futuro virtual do que nos relacionarmos com o duro presente de ausência. Sei lá.


Choveu no futuro?



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sábado, 26 de julho de 2014

O Açude

Por Rodrigo Amém



Nos dias mais quentes, Edgar e seus amigos costumavam nadar numa represa nas vizinhanças do bairro. Ele se lembrava da sensação de estar debaixo d’água. A visão turva, embaçada. O mundo em câmera lenta, distante, o som grave ao seu redor, os membros pesados. Coração acelerando, pulmões ardendo. Até que o corpo se rende e ganha a superfície. Num instante, luz, som, ar, tudo volta. A vida volta. 

Era assim que Edgar se sentia. Mergulhado no açude. Visão turva, sons distantes, corpo pesado. A fome tinha mergulhado o garoto num universo só dele. Arrastava os pés, respiração ofegante, joelhos fracos. Engraçadas as coisas que vêm à tona na mente confusa. Edgar lembrou-se de cada migalha caída nos lanches da tarde. Nunca teve muito, mas tinha o bastante para o desperdício. Pensou em sua mãe. O abraço dela. Por onde andaria sua mãe?

O cheiro atingiu-lhe as narinas como um soco no frágil estômago. Na esquina, um homem de braços peludos jogava pedaços de carne sobre um braseiro. A fumaça subia e o cheiro hipnotizante ganhava força. Quando deu por si, Edgar estava a dois passos do churrasco. Pálido.

O homem usou em Edgar o mesmo gesto que dedicava às moscas. Andando de costas, o garoto não tirou os olhos dos bifes suculentos. A boca, seca e rachada, agora se enchia de água. Uma senhora passou, deu algumas moedas ao homem e levou a mão direita à altura do rosto, aproximando o polegar e o indicador. O homem sorriu e seus braços peludos alcançaram um facão e tiraram um pedaço de um dos bifes mais mal passados. O vermelho do interior da carne escorreu numa gota de sangue que evaporou no contato com a brasa. Com a ponta da faca, o homem jogou o pedacinho cortado para o ar, fazendo uma parábola que levava até os pés da senhora. Só então Edgar percebeu o cachorrinho da senhora, praticamente uma micro ovelha, um chumaço de algodão com patas. O cachorrinho se aproximou, cheirou a carne e a abocanhou.  A senhora agradeceu ao homem e puxou a coleira do chumaço branco, voltando de onde vieram, passando por Edgar.

Edgar estendeu a mão, envergonhado. A mulher ignorou sua presença. O cachorro também. E o senhor com o filho gordinho que comprou o próximo bife inteiro, também. E as duas mulheres espalhafatosas que levaram dois bifes ao ponto, também. E o velhinho que passou com o bife debaixo de um braço e uma bengala na outra também. E todas as pessoas. E todos os bifes. Ninguém via e ouvia os apelos de Edgar, de dentro do seu açude de fome. 

Sobrara um corte esturricado. Mais sebo que carne, no canto da grelha. Edgar cerrou os dentes. Virado bicho, aproveitou que o homem levantou os braços peludos para acenar a um conhecido que passava no outro lado da esquina. Correu. Correu meio sem sentir, pontos pretos embaralhando a vista. Meteu a mão e agarrou o sebo esturricado. Correu mais. Ouviu o homem urrando “moleque”, “ladrãozinho”, “pega”. Edgar não parou. Não sentia as pernas, não ousava olhar pra trás. Correu pelas ruelas, becos, por debaixo das pontes. Tropeçou, ralou o joelho. Do jeito que caiu, levantou e seguiu. 

Quando não conseguiu mais correr, entrou debaixo de um canto e se encolheu, prendendo o fôlego para não ser ouvido. Coração disparado, pulmões ardendo. Como no açude. 


Quando se acalmou, abriu o punho cerrado e olhou sua mão. As queimaduras do contato com a grelha fizeram bolhas e marcas. Ardiam. Na sua palma, o sebo esturricado, duro, sujo de terra e suor. Edgar comeu cada pedaço sôfrego, entre envergonhado e agradecido. Lembrou-se de sua mãe. Onde andaria sua mãe?


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quinta-feira, 24 de julho de 2014

Justiça

Por Bernardo Sardinha

Com raiva da vida, peguei uma faca e exagerei na geleia. Era de morango, a minha favorita. Tenho certeza que se meu clínico a visse, iria se sentir afrontado. “- Você tem que emagrecer! Como você pode ser tão negligente consigo?!" ­ berraria o hipócrita que ostenta um cinzeiro cheio de guimbas de Marlboro em seu consultório. Lambuzei a faca mais uma vez e espalhei delicadamente aquele sumo vermelho vivo e voilá! No meio da torrada, um planalto vermelho de 800 calorias.

"- Cê tá brincando né? Devolve parte dessa geleia para o pote ou divide comigo!" ­ exclamou minha senhora sentada do outro lado da pequena mesa da cozinha. Normalmente, eu aturaria ser repreendido como um moleque, mas hoje estou abusado, então vou aproveitar.

“- Quer? É toda sua!" ­ e atirei a torrada na mesa. A violência foi tamanha que a torrada girou em torno de si mesma, como se estivesse praticando um esporte radical e se exibindo para uma multidão.

Se existisse justiça neste mundo, as chances eram de 50% de a torrada cair com a geleia para baixo. Meio a meio. Se caísse para cima, eu seria um herói atrevido, se caísse para baixo, eu levaria uma bronca, e com razão. “- Ô DEUS! Ouça meu clamor e faça esse manjar, essa obra de arte de comida sobreviver à minha ousadia!”.


Mas o mundo não é justo. E Deus não existe. Hoje eu durmo no sofá.



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quarta-feira, 23 de julho de 2014

O Jantar – Parte 3

Por Marcela de Holanda



Na cozinha, Wagner preparava novamente a surpresa da mesa 3, rezando para que ninguém mais percebesse o que tinha acontecido. Mas na mesa 5, Camila começava a se descontrolar.

Camila (entre lágrimas) – Eu. Não. To. Conseguindo. Segurar. Rodrigo. Por que você não falou nada? Me. Deixou. Fazer esse papelão! Eu nunca me senti. Tão. Envergonhada. Eu não mereço isso. Você achou o quê? Que era brinde do restaurante? Você. Não. Foi. Homem o suficiente. Para admitir que você não quer casar comigo. Coisa nenhuma. Que eu sou uma boba. De pensar isso. Você me ama, Rodrigo? Como você me deixou passar por essa situação e não teve a coragem de dizer nada?!? Me deixou colocar o anel de outra! Fala alguma coisa, Rodrigo!

A essa altura, as pessoas nas mesas em volta, disfarçadamente prestavam atenção no que eles falavam e tentavam entender a situação. Wagner, sai da cozinha com o bolinho de chocolate e vai entregar na mesa 3.

Wagner – Com licença, senhor. Perdoe-me pela demora. A sua senhora foi ao toilette? Prefere que eu venha depois quando ela tiver voltado ou já posso deixar a surpresa aqui?

Bruno, ainda chocado com o que tinha acontecido, nem consegue responder. Só faz um gesto para que o garçom deixe em cima da mesa mesmo. Nesse momento, os últimos anos da sua vida passam pela sua cabeça e ele tenta entender o que pode ter acontecido que não percebeu. Entre as muitas lembranças da sua relação com Roberta, surgem de vez em quando memórias ainda mais antigas. Aline. Há quanto tempo ele não se permitia pensar nela? Mas agora o seu rosto aparecia nítido como se tivessem acabado de se despedir. Por onde ela andaria? E aí se lembrava que deveria pensar em Roberta e no quanto estava sofrendo pelo que ela tinha feito. Mas não sabia se sofria de verdade ou se só achava que esse era o sentimento apropriado para o momento.

Rodrigo, que daria tudo para voltar o tempo em algumas horas e escolher outro restaurante, não vê outra saída a não ser falar tudo que estava no seu coração. Mesmo já tendo notado que algumas pessoas os observavam.


Rodrigo – Calma, meu amor. Calma. Respira, por favor. Me desculpa. Você tem toda razão. Eu fui um covarde. Não devia ter te deixado passar por isso. Mas quando eu percebi o que estava acontecendo já era tarde demais. Você tem ideia de como eu me senti de saber que aquele sorriso que eu devia ter colocado no seu rosto, não tinha sido provocado por mim de verdade? O que eu podia dizer? Que na verdade eu sou um ninguém que nunca vai poder te dar um anel daquele? Que você merece um homem que possa te dar muito mais do que eu posso te dar? Você pode ter o homem que quiser. Na hora que quiser. Eu nem sei o que você ainda está fazendo comigo. Se eu te amo? É óbvio que eu te amo! Só se eu fosse um completo idiota para não amar você. E é justamente porque eu te amo que não fui capaz de falar nada. Como você acha que eu me sinto de te ver chorar assim? Eu falhei com você. Não só por não falar nada. Eu falhei porque já devia ter te pedido em casamento há muito tempo. Mas eu não queria que fosse de qualquer jeito. Eu queria que você tivesse tudo que você tem direito. Eu economizei durante os últimos dois anos planejando o dia em que você me aceitaria para sempre na sua vida. E eu estava perto de conseguir o que achava que precisava. Mas como eu disse. Eu falhei com você. Não tenho mais nada para te oferecer agora. Só o meu amor. 

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terça-feira, 22 de julho de 2014

Os pesadelos também se realizam

Por Rec Haddock

INT. ESTÚDIO DE UM PROGRAMA DE AUDITÓRIO. NOITE.

Vemos a gravação do programa Blah Show com David Grupanabolos, um talk show noturno. DAVID, o apresentador, está fantasiado de borboleta, e o CONVIDADO tenta pegá-lo com uma rede de caçar borboletas gigantesca.

DAVID
Normalmente é mais fácil do que isso?

CONVIDADO
Bem mais.

O convidado tropeça em um fio no estúdio e cai, deixando escapar a rede. David a pega, e ajuda o convidado a levantar, apenas para enredá-lo.

CORTA PARA

INT. QUARTO DE RODRIGO. NOITE.

Vemos o programa passando na TV. Ao lado da televisão vemos um grande pôster de um álbum do Johnnie Cash.

Na TV, vemos David arrancar as suas anteninhas de borboletas e mordê-las numa demonstração risível de força.

Vemos RODRIGO, apenas de cueca samba-canção sentado em sua cama - as costas apoiadas na cabeceira - lendo um livro. Sua cama é enorme para um homem solteiro, e ele parece pequeno nela. Em seu criado mudo vemos uma luminária feita de peças de Lego, que lança uma luz fraca demais para que ele leia qualquer coisa sem fazer esforço. Ao lado da luminária, um porta retrato com uma foto de Emma vestida de Pequena Sereia.

DAVID (O.S.)
E acharam que eu tava na pior!

Ouvimos risos da plateia.

Rodrigo fecha o livro e lança um olhar de reprovação divertida para a TV.

Vemos David jogando as anteninhas para o público.

DAVID (CONT’D)
Eu sou muito mais durão do que vocês imaginam.

Ao som de mais risadas da plateia, vemos Rodrigo pegar o controle remoto e desligar a TV.

RODRIGO
OK. Chega por hoje.

Rodrigo apoia o livro no criado mudo e desliga a luminária, deitando-se.

Enquadramos os olhos de Rodrigo se fechando.

Fade out.

RODRIGO (O.S.) (CONT’D)
Boa noite, Emma. Boa noite, pai. Boa noite, mãe. Boa noite, Laura. Amo vocês.

CORTA PARA

INT/EXT. TUBULAÇÃO ESCURA. NOITE.

RODRIGO está engatinhando lentamente por uma tubulação de paredes transparentes, envolta por água escura por todos os lados.

Vemos que o chão da tubulação está um pouco molhado.

Enquadramos Rodrigo cada vez menor, mais distante, sempre engatinhando em nossa direção.

Percebemos um som de gotejamento. A quantidade de água no chão da tubulação parece aumentar aos poucos.

Soa um click e uma luz acende, revelando o rosto nervoso de Rodrigo, já bem próximo. Ele ilumina a parede da tubulação.

Através dela, vemos grandes cardumes de peixes-gato de vidro e basslets, nadando em volta de uma figura humana, até que o foco de luz da lanterna se perde.

Um ângulo invertido nos mostra o rosto mais nervoso de Rodrigo, dentro da tubulação, com a água na altura de suas coxas.

Vemos a figura humana atrás de Rodrigo, dentro d’água, fora do tubo. Ela é uma mulher. Ela bate no tubo e Rodrigo se vira para vê-la. Ela pega um canivete e começa a cortar seu braço, o sangue se espalhando vermelho pela água.

Vemos Rodrigo segurando o próprio braço, com dor.

Desesperado, ele luta para respirar, já com a água na altura do pescoço.

Vemos que a mulher está escrevendo alguma coisa no seu braço, com os cortes de canivete: “Nunca te...

Vemos as mesmas palavras sendo cortadas no braço de Rodrigo. “Nunca te abandonei. Fi...

Vemos a tubulação já completamente cheia d’água e Rodrigo lutando para segurar o ar. A mulher termina de escrever no seu próprio braço: “Nunca te abandonei. Fique sempre alerta.”

Vemos Rodrigo olhando no seu próprio braço a mesma frase escrita, e sangrando. Ele não aguenta e abre a boca para puxar ar, mas puxa água.

CORTA PARA

INT. QUARTO DE RODRIGO. NOITE.

Rodrigo abre a boca e tosse, cuspindo água.

De um outro ângulo, vemos a cama de Rodrigo completamente molhada, com vários peixes-gato de vidro e basslets se debatendo por ar, na cama.

Rodrigo olha o braço, e vê a frase escrita nele, com batom vermelho.

Rodrigo levanta, alerta.

CORTA PARA

INT. QUARTO DE EMMA. NOITE.

RODRIGO abre a porta do quarto de Emma.

Vemos EMMA dormindo tranquilamente em sua cama.

Rodrigo fecha a porta, silenciosamente.



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sábado, 19 de julho de 2014

Três Dias

Por Rodrigo Amém

 
Três dias. Esse foi o tempo que a fome levou para quebrar Edgar.

Durante um tempo, Maurício e Galeto ajudaram o amigo foragido. Levavam pão, leite e biscoitos para a fábrica abandonada onde ele achou refúgio. Galeto não se sentia confortável com essa situação toda. Desde a primeira vez em que Edgar os procurou depois que sua mãe foi presa. Não é que Galeto não se importasse com seu amigo. Mas Galeto tinha medo. Quem é de Palmira tem dois caminhos pra seguir na vida. Ou segue a lei ou vira bandido. Não cabe relativismo moral num lugar onde as pessoas se ocupam de contestar ou confirmar os preconceitos de quem é de fora. E a mãe de Galeto era categórica. 


- Ou você anda na linha ou anda pra longe, guri. Filho meu não é vagabundo, não. 


No fundo, Galeto não entendia direito o que havia acontecido com a família de Edgar. E se o amigo tivesse algo a ver com a morte do pai? Isso faria de Galeto um cúmplice? Pelo menos nos filmes é assim que acontece. Mas Galeto não era cúmplice de nada. Ele não era vagabundo!

Maurício, não. Maurício era passional. Além do mais, ele conhecia de perto a experiência de perder amigos em decorrência de circunstâncias alheias ao seu controle. Maurício tinha estudado em boas escolas e tinha lá seus bons amigos. Mas aí o pai perdeu o emprego, perdeu a as economias, perdeu a casa. Em algum lugar no processo, Maurício também perdeu sua escola, seu quarto, a maior parte dos seus brinquedos. E todos os seus amigos.

Não fosse por Edgar - e por extensão por Galeto - Vila Palmira seria um exílio. Graças aos guris, foi um recomeço. Foram eles que ensinaram Maurício a andar e por onde andar, como falar e com quem falar, pra quem sorrir e de quem ter medo.


Meio pra retribuir, meio por saudosismo, Maurício contava coisas da sua antiga vida para os dois novos amigos. Contava sobre seus brinquedos, sobre sua escola. Contava as coisas que aprendia nas aulas, o que comia na hora da merenda. Galeto vibrava, vivendo vicariamente as delícias daquela vida farta. Edgar apenas ouvia. Sua expressão aturdida parecia misturar incredulidade e fascínio. Ele acompanhava cada causo do amigo com olhos fixos de quem quer roubar cada palavra. 

De noite, era comum para Edgar visitar o Instituto Educacional São Bento. As minúcias das histórias do ex-garoto rico montavam um mosaico onde Edgar vivia em sonho. Os nomes dos professores, Maurício forneceu. Os rostos, o inconsciente de Edgar esculpiu. Enrolado numa coberta velha, Edgar se escondia no galpão de fábrica. Dormindo, o garoto viva a fantasia de ser aluno, graças ao amigo.

O barulho de uma porta de carro ecoou no teto alto do galpão e acordou Edgar.  Ele fechou um olho e encostou o aberto num buraco na parede carcomida. Dois policiais usavam um alicate enorme para cortar as correntes do portão da fábrica. Edgar juntou o que deu enquanto tentava entender como tinha sido descoberto. Incapaz de definir qual dos garotos o havia traído, optou por condenar ambos.

E foi assim que Edgar deixou para trás seu primeiro refúgio e seus últimos amigos.  Três dias depois, a fome.
 
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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Notas sobre mim

Por Amanda Leal

 

É madrugada. Chove.

Me olho no espelho do meu pó compacto após arrancar um pelinho saliente da sobrancelha com a pinça. Meu rosto está visivelmente mais magro. Bom pra mim.  Meu manequim mudou, minha alimentação, meu humor e minhas expectativas sobre mim mesma também mudaram. Os problemas também ganharam outra dimensão: antes o que era problema, agora, não mais o é. E o que era levado numa boa ganhou cara de problema.  

Eu mudei. As taxas do meu colesterol abaixaram e a vitamina D está em falta, o que me fez ser adepta de suplementos e fui obrigada a acordar cedo e aproveitar o sol da manhã. Isso tudo me fez ter outras responsabilidades, precisei crescer e ter mais disciplina comigo mesma. Ainda bem, assim a coisa não ganha um tom monótono e a vida ganha um colorido.

Como hoje em dia escrevo pouco usando a caneta, minha letra também já não é mais a mesma. A letra bonita e caprichada da escola ficou um pouco preguiçosa e “garranchuda”. Falta de exercício tem um preço. Digo isso em todos os sentidos. Para de ler por um tempo para você ver só! Fica sem malhar por um mês que seja, que ai quando você for subir uma escada vai entender bem o que eu digo.

Minha pele parece ter amadurecido juntinho com meu coração e algumas ruguinhas me fazem lembrar de preocupações que por um tempo eu já havia esquecido. Sou outra dentro de mim mesma. O cabelo certinho ganhou uma cara bacana, as roupas adequadas e monótonas foram enriquecidas com estilo e eu não fiquei rica, apenas sai da zona de conforto e aprendi a garimpar, procurar, criar... Ter uma aparência muito certinha, muito corretinha cansa e pode fazer com que você aparente algo “beeemm” esquisito e até um pouco chato. É necessário ter uma harmonia, o interior e exterior precisam se complementar.

Ah, com o tempo a gente percebe que ninguém é perfeito e que nem tudo precisa estar sob controle, descobri que para ter estilo o importante (em primeiro lugar) é agradar a mim mesma. Sem ser cafona, sem ser brega, mas também sem ser monótona e caxias. E hoje sou outra dentro de mim mesma. Uffa! Que bom. A mudança quando vem aos poucos gera menos expectativas e garante maior efetividade.

Esse ano a minha unha do pé caiu pela primeira vez e sim eu tive mais dores de cabeça e acne do que quando eu era adolescente. As responsabilidades aumentam e a chegada ao pódio parece se atrasar. E pra quem achava que viver era tranquilo a realidade te mostra o quão a vida pode ser cruel. Vai ver que é por isso que tem tanta gente louca por ai, gente que não consegue lidar com essa coisa confusa chamada de vida. Gente que não consegue se segurar e sai cambaleando e se quebrando por ai.

Nesse tempo de sobrevivência eu descobri algumas verdades: não há como viver sem o apoio do Criador, as pessoas vão te decepcionar o tempo inteiro e se você não fizer a sua vida acontecer, ninguém fará. Às vezes me sinto como em um naufrágio onde há apenas um barco, muitas coisas boiando em volta do meu corpo e muito de longe, bem lá no fundo e quase impossível de alcançar eu vejo terra. Nesse caso, aguardar resgaste nunca foi uma opção. É preciso lutar até o fim.

Sou outra dentro de mim mesma.

Eu já não caibo dentro de mim.

E cada dia que passa eu amo mais quem eu sou e descubro como é bom ser eu.

E isso não me impede de sofrer por sonhos não realizados, metas não cumpridas, sofro também por não exercitar a minha arte como gostaria, com as pedras no meio do caminho, com os tropeços e com as decepções. Mas como uma sobrevivente do naufrágio de mim mesma, eu diria de forma extremamente otimista que as coisas, agora, parecem estar se encaminhando.

Eu sou outra dentro de mim mesma e já não caibo mais dentro de mim.

Por isso é chegada a hora do florescer, do brotar e do voar por ai.

Me aguardem! Pois, eu estou longe de parar por aqui.

 

Ainda chove forte. O dia já está amanhecendo.
 
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