Por Rodrigo Amém
A
irmã abriu o armário de madeira escura. Um cheiro ocre saiu de dentro, junto
com o rangido choroso das dobradiças velhas.
- Eu
não nasci velha, minha filha. – Irmã Dalva projetava a voz sem se virar,
encarando o fundo o armário. – Eu sei como é. O caminho é árduo. As tentações
sequestram os corações mais fracos. Acho que o terço é adequado, não acha? O
que o seu coração de pecadora diz?
Lúcia ofegava ajoelhada no tapete de milho. Já iam duas horas de interrogatório. Nua, a pele tremia ao toque do ar frio. As vibrações da hipotermia empurravam as sementes pontiagudas carne adentro. A vergonha já era uma memória distante face ao medo. Medo da própria fraqueza, medo de trair Edgard. Até quando aguentaria?
-
Nossa Senhora é testemunha, menina. Testemunha da minha paciência. Salomão foi
menos paciente e ele está sentado à direita de Deus Pai, Todo Poderoso. Imagina
o que Salomão faria com uma ladrazinha como você, minha filha? – Dalva
acariciava lentamente os inúmeros instrumentos cuidadosamente dispostos dentro
do armário escuro.
Dalva
se virou e encarou sua pecadora. Pálida, nua, trêmula. Dalva quase não sorriu.
Seu pisar leve sob o longo hábito dava a impressão de que a irmã flutuava como
uma sombra negra em direção à vítima. Dalva trouxe seu nariz adunco para perto
do rosto de Lúcia, que desviou o olhar. Então, seus olhos azuis minúsculos
escrutinaram a pele da noviça. A pelugem eriçada, os poros arrepiados. Os dedos
gélidos e enrugados da irmã contornaram o mamilo ereto da noviça. Com as mãos
atadas às costas, Lúcia esboçou esquivar-se em repulsa, e Dalva cravou-lhe as
unhas no seio. Lúcia gritou, Dalva mostrou os dentes.
-
Você percebe a dor, menina? Percebe a dor que você provoca a essa congregação?
Você foi recebida em nosso seio, alimentada, educada, protegida. Mas na
primeira oportunidade que teve cravou suas garras imundas no que é nosso.
Roubou o que é de Deus.
- Eu
não... – a mão esquelética de Dalva calou a lamúria de Lúcia com um tapa que
ecoou nas vigas empoeiradas da sacristia. A noviça engoliu as palavras enquanto
o rosto latejava.
- Eu
sei que você tem roubado comida do orfanato. Não sei bem porque ou pra que. Não
sei que tipo de doente rouba comida de órfãos. Mas sei o que Nosso Senhor tem
reservado para gente como você. Garanto que você vai sentir saudade de mim
quando chegar no inferno. A menos, é claro, que você confesse seus pecados.
Deus perdoa quem busca perdão, minha filha. Abra seu coração e Ele te perdoará.
Lúcia
acreditava no perdão de Deus. Mas tinha certeza absoluta da vingança de Dalva.
E sabia que ela não toleraria a presença secreta de Edgard. O que quer que
Dalva fizesse com ela, não seria melhor se também envolvesse o castigo de um
menino.
-
Muito bem. O terço, então. – Decidiu Dalva, flutuando de volta para o armário
negro.
Finalmente
a noviça se deu conta de que o “terço” em questão se tratava de um chicote de
couro com três pontas de metal em sua extremidade. O instrumento de
“penitência” favorito de Dalva, não só pelas marcas definitivas que permaneciam
como “estigma do pecado”, mas também pelo macabro jogo de palavras em
referência ao inocente colar de contas de oração. Lúcia se lembrava de
Catarina, uma das meninas do orfanato. Acidentalmente, Catarina teria deixado o
Ostensório cair no chão e se partir em mil estilhaços. Dalva não expressou
indignação, nervosismo, contrariedade. Dalva estendeu-lhe a mão e a levou para
a sacristia. Ouviram-se pedidos de misericórdia, um estalo rasgando o ar, um
grito. Silêncio. Duas semanas mais tarde, Catarina voltou ao convívio das
outras crianças. Ela usava um tapa-olho de veludo sobre a vista esquerda. Três
cicatrizes paralelas espreitavam por debaixo do pano, vermelhas, chegando ao
maxilar. Catarina jamais contou a ninguém como perdera o olho, ou o que havia
acontecido na sacristia naquela tarde. “Ela me levou pra rezar o terço. Glória
a Deus”, dizia.
O
primeiro golpe do terço atingiu o tórax nu de Lúcia. Para um golpe desferido
por uma anciã, os danos foram aterradores. Uma das pontas de metal dilacerou o
mamilo direito de Lúcia como uma navalha as outras duas criaram linhas
paralelas vermelhas em seu tronco, como garras de um tigre. Lúcia urrou como um
animal ferido e desmoronou sobre o próprio peso, expondo as costas. Dalva
admirou o novo alvo como uma tela branca à espera do artista. Então ela ouviu
passos.
A
porta se abriu e um garoto de mais ou menos 11 anos parou no batente. Usava
roupas sujas, não o uniforme do orfanato. Cabelos pretos, olhos fundos. Uma
pedra na mão esquerda. Antes que tivesse tempo de erguer o terço, a pedra já
cortava o ar em direção ao olho da irmã, impulsionada com a pontaria certeira
de um milhão de bolas de lama de prática. O projétil esmigalhou o globo ocular
e fraturando parte dos ossos de face de Dalva, que caiu desacordada, terço
ainda em mãos.
Quando
voltou a si, Lúcia estava envolta num pedaço de tapeçaria. Corpo ardendo, dores
lancinantes. Edgard reunia roupas, comida e o que mais conseguisse encontrar de
valor em uma bolsa grande. A noviça se levantou com dificuldade, joelhos
tremendo, e quase caiu ao ver Dalva jogada no canto, um olho a menos. Deus
enviou um anjinho para salvá-la, pensou. Lembrou-se de Catarina. Dente por
dente.
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