Por
muito tempo, Edgard viveu nos fundos do orfanato, escondido. Como apenas a
noviça lidava com os porcos, o casebre ao lado do chiqueiro, uma espécie de
depósito de materiais de jardinagem e limpeza, era o refúgio mais seguro. Lúcia
tentaria trazer o garoto para dentro, mas conhecia a Madre Superiora. Edgard
era velho demais. Estava mais perto da idade de sair do que de chegar. E era
muito judiado. Aquela mão marcada poderia colocar o tratamento aos órfãos em
suspeição. A Madre prontamente recomendaria Edgard a um reformatório e Lúcia já
conhecia histórias daquele lugar horrível. Até mesmo por iniciativa das irmãs,
como uma forma de ameaça velada. “Quem já é grande e não se comporta vai para o
reformatório. Você tem sorte, Lúcia. Devia pensar bem nisso”. Ninguém é
perfeito, mas irmã Dalva era de dar arrepios.
No
começo, Edgard tinha medo de tudo. Tremia com o balançar das árvores sobre o
telhado quebradiço. Passaram dias, meses. O menino se acostumou. Durante a
noite, a noviça vinha e trazia comida, trocava curativos, trazia roupas. Ela
ofereceu livros, mas Edgard quase não lia. Não gostava. Não sabia.
A
maior parte do dia era passada dormindo. No começo, os pesadelos assustavam e
Edgard tinha medo de gritar sem querer, no meio da noite. O garoto forçava a
vigília para evitar ser traído pelo sono. E, por uma pequena janela lateral,
Edgard notou que tinha uma visão privilegiada dos seus vizinhos, os porcos. Num
primeiro momento, eram todos iguais. Aos poucos, suas características e personalidades
dos futuros toucinhos passaram a saltar-lhe os olhos.
O
porco maior, gordo e malhado, movia-se como se o tempo, para ele, passasse mais
devagar. Os leitõezinhos corriam frenéticos ao redor do malhado. Ele parecia
tolerar o desperdício de energia dos menores. A leitoa toda branca, rosada, era
grande, mas menor que o malhado. Quando não estava comendo e dando de mamar aos
leitões, a branca estava perseguindo os pequenos, conduzindo-os para o cocho,
para a água, para a sombra. O malhado observava a interação com desinteresse.
Edgard
tinha seu porco favorito. Era o maior dos pequenos. Provavelmente o irmão mais
velho. Todo pretinho. Sempre que havia uma briga entre os pequenos, podiam
contar com o pretinho para botar ordem no chiqueiro. Umas cabeçadas para cá,
outras pra lá, e pronto. A paz voltava a reinar. Sensação de dever cumprido,
pretinho se remetia ao grande malhado como quem diz: “- Viu pai? Eu dei um
jeito nesses bagunceiros!”. O malhado desviava o olhar, desinteressado. O
desdém paterno do malhado era irritante para o observador do casebre vizinho.
Edgard
acordou com um grito. Levou a mão à boca. Teria sido ele? Será que alguém
ouviu? Os gritos continuaram. Eram gritos de criança pequena. Atordoado, foi
até a pequena janela. A vista demorou a conformar a luz da manhã. Dentro do
chiqueiro, um rebuliço. Os pequenos corriam de um lado para o outro. A mãe
branca se sacudia. Até o grande malhado parecia nervoso. Do lado de fora da
cerca, pretinho tinha as patas traseiras amarradas numa corda presa a um galho
alto da mangueira. O pequeno se contorcia em desespero tentando se livrar
daquela forca invertida. Embaixo dele, um balde de metal.
A
porta dos fundos do orfanato se abriu e Lúcia apareceu com uma faca e o que
parecia um lençol enrolado na outra mão. Por um momento, Edgard se permitiu a
esperança de imaginar Lúcia em uma missão de resgate, usando a faca para
libertar o pretinho. Foi só quando a garota abriu o pano, que se revelou um
avental de açougueiro, que a realidade esbofeteou Edgard.
O garoto
viu Lúcia vestir o avental. E viu a faca afiada e precisa desenhar um corte
vermelho e profundo no pescoço do pretinho, afogando aos poucos o grito de
criança assustadoramente humano que ele emitia. Viu o fio algumas gotas de
sangue grosso respingar no avental branco a caminho do balde. E então Edgard
viu o segundo corte, que se uniu ao primeiro formando uma cruz de sangue na
barriga do pretinho. A faca abria o caminho pelo corpo do animal, as contorções
cessavam. Ao fim dessa cruz invertida, o corte se abriu em vísceras que
escorreram viscosas para dentro do balde.
Edgard
sentiu vertigem e desviou o olhar de volta ao chiqueiro. Encontrou os olhos de
malhado. Edgard imaginou quantos filhos malhado viu morrer. O menino deixou a
janela e foi chorar num canto do depósito.
De
noite, Lúcia veio trazer o jantar e não entendeu o olhar de fúria de Edgard
diante das tiras de bacon no seu prato. O garoto comeu apenas pão naquela
noite. Ao sair, Lúcia perguntou se havia algo mais que ela pudesse fazer por
ele.
-
Tem algum livro sobre porcos? – disse Edgard.
Lúcia
revirou a biblioteca das irmãs procurando algo sobre suínos. Dizem que não
devemos julgar um livro pela capa, mas Lúcia também não tinha o hábito da
leitura ou alguém a quem recorrer. Então, foi obrigada a desobedecer à
sabedoria popular e levou para Edgar um livro velho que achou no sótão e trazia
a ilustração de um porco na capa. Aquele livro acabou por despertar a fome de
Edgard para letras. O título: a revolução dos bichos.
E
Edgard nunca mais foi o mesmo.
Gostou do que leu? Esse texto é de autoria de Rodrigo Amém e sua reprodução total ou parcial dependem de prévia autorização do autor. Entre em contato conosco para maiores informações.
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