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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A cruz vermelha

Por Rodrigo Amém

Por muito tempo, Edgard viveu nos fundos do orfanato, escondido. Como apenas a noviça lidava com os porcos, o casebre ao lado do chiqueiro, uma espécie de depósito de materiais de jardinagem e limpeza, era o refúgio mais seguro. Lúcia tentaria trazer o garoto para dentro, mas conhecia a Madre Superiora. Edgard era velho demais. Estava mais perto da idade de sair do que de chegar. E era muito judiado. Aquela mão marcada poderia colocar o tratamento aos órfãos em suspeição. A Madre prontamente recomendaria Edgard a um reformatório e Lúcia já conhecia histórias daquele lugar horrível. Até mesmo por iniciativa das irmãs, como uma forma de ameaça velada. “Quem já é grande e não se comporta vai para o reformatório. Você tem sorte, Lúcia. Devia pensar bem nisso”. Ninguém é perfeito, mas irmã Dalva era de dar arrepios. 

No começo, Edgard tinha medo de tudo. Tremia com o balançar das árvores sobre o telhado quebradiço. Passaram dias, meses. O menino se acostumou. Durante a noite, a noviça vinha e trazia comida, trocava curativos, trazia roupas. Ela ofereceu livros, mas Edgard quase não lia. Não gostava. Não sabia.

A maior parte do dia era passada dormindo. No começo, os pesadelos assustavam e Edgard tinha medo de gritar sem querer, no meio da noite. O garoto forçava a vigília para evitar ser traído pelo sono. E, por uma pequena janela lateral, Edgard notou que tinha uma visão privilegiada dos seus vizinhos, os porcos. Num primeiro momento, eram todos iguais. Aos poucos, suas características e personalidades dos futuros toucinhos passaram a saltar-lhe os olhos.

O porco maior, gordo e malhado, movia-se como se o tempo, para ele, passasse mais devagar. Os leitõezinhos corriam frenéticos ao redor do malhado. Ele parecia tolerar o desperdício de energia dos menores. A leitoa toda branca, rosada, era grande, mas menor que o malhado. Quando não estava comendo e dando de mamar aos leitões, a branca estava perseguindo os pequenos, conduzindo-os para o cocho, para a água, para a sombra. O malhado observava a interação com desinteresse.

Edgard tinha seu porco favorito. Era o maior dos pequenos. Provavelmente o irmão mais velho. Todo pretinho. Sempre que havia uma briga entre os pequenos, podiam contar com o pretinho para botar ordem no chiqueiro. Umas cabeçadas para cá, outras pra lá, e pronto. A paz voltava a reinar. Sensação de dever cumprido, pretinho se remetia ao grande malhado como quem diz: “- Viu pai? Eu dei um jeito nesses bagunceiros!”. O malhado desviava o olhar, desinteressado. O desdém paterno do malhado era irritante para o observador do casebre vizinho.

Edgard acordou com um grito. Levou a mão à boca. Teria sido ele? Será que alguém ouviu? Os gritos continuaram. Eram gritos de criança pequena. Atordoado, foi até a pequena janela. A vista demorou a conformar a luz da manhã. Dentro do chiqueiro, um rebuliço. Os pequenos corriam de um lado para o outro. A mãe branca se sacudia. Até o grande malhado parecia nervoso. Do lado de fora da cerca, pretinho tinha as patas traseiras amarradas numa corda presa a um galho alto da mangueira. O pequeno se contorcia em desespero tentando se livrar daquela forca invertida. Embaixo dele, um balde de metal.

A porta dos fundos do orfanato se abriu e Lúcia apareceu com uma faca e o que parecia um lençol enrolado na outra mão. Por um momento, Edgard se permitiu a esperança de imaginar Lúcia em uma missão de resgate, usando a faca para libertar o pretinho. Foi só quando a garota abriu o pano, que se revelou um avental de açougueiro, que a realidade esbofeteou Edgard.

O garoto viu Lúcia vestir o avental. E viu a faca afiada e precisa desenhar um corte vermelho e profundo no pescoço do pretinho, afogando aos poucos o grito de criança assustadoramente humano que ele emitia. Viu o fio algumas gotas de sangue grosso respingar no avental branco a caminho do balde. E então Edgard viu o segundo corte, que se uniu ao primeiro formando uma cruz de sangue na barriga do pretinho. A faca abria o caminho pelo corpo do animal, as contorções cessavam. Ao fim dessa cruz invertida, o corte se abriu em vísceras que escorreram viscosas para dentro do balde.

Edgard sentiu vertigem e desviou o olhar de volta ao chiqueiro. Encontrou os olhos de malhado. Edgard imaginou quantos filhos malhado viu morrer. O menino deixou a janela e foi chorar num canto do depósito.

De noite, Lúcia veio trazer o jantar e não entendeu o olhar de fúria de Edgard diante das tiras de bacon no seu prato. O garoto comeu apenas pão naquela noite. Ao sair, Lúcia perguntou se havia algo mais que ela pudesse fazer por ele.

- Tem algum livro sobre porcos? – disse Edgard.

Lúcia revirou a biblioteca das irmãs procurando algo sobre suínos. Dizem que não devemos julgar um livro pela capa, mas Lúcia também não tinha o hábito da leitura ou alguém a quem recorrer. Então, foi obrigada a desobedecer à sabedoria popular e levou para Edgar um livro velho que achou no sótão e trazia a ilustração de um porco na capa. Aquele livro acabou por despertar a fome de Edgard para letras. O título: a revolução dos bichos.


E Edgard nunca mais foi o mesmo.

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