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sábado, 9 de agosto de 2014

A Noviça

Por Rodrigo Amém


Foi só depois de grande que Lúcia compreendeu o próprio infortúnio. Naquele tempo, tudo parecia corriqueiro, como sempre fora. Nem era uma questão de conformismo.Era só hábito.Todo fim de semana, as irmãs arrumavam Lúcia da melhor maneira possível, assim como o resto das crianças. Aí chegavam os visitantes. A cada ano, a interação entre Lúcia e os adultos diminuía. Ela se recorda de quando era menor. Eles vinham, pegavam no colo, davam beijo. E iam embora. Lúcia ficava. E a cada ano, a interação diminuía. No ano seguinte, já não a pegavam mais. Era só cafuné, quase um cascudo de tão ríspido. No ano seguinte, só olhavam e sorriam. Até quando Lúcia virou invisível.

E não é que Lúcia gostasse, ou tivesse medo. Era só o que ela conhecia. Foi um bebê ali. Foi uma criança ali. Virou mocinha ali. Quando deu por si, já era quase uma das irmãs. Já conduzia as visitas. Já arrumava as outras crianças. Já torcia para que fossem escolhidas. Já não era ela. Eram as crianças. E Lúcia não era mais criança. Catorze anos é muita coisa.
Lúcia agora tinha que trabalhar, dizia a Madre. Lavar fraldas, banheiros, lençóis, tudo era meio mecânico, meio feito à distância, cabeça lá longe. Mas tinha as sextas-feiras e o mercado. O ponto alto da semana de Lúcia. O momento em que ela pisava fora do Lar e sentia a brisa, o cheio das frutas, o som da vila. E Lúcia escolhia cada tomate como se fosse pérola. E Tobias, da banca de queijos, sempre dava uma nesga. “Bom dia, noviça!” “Deus te abençoe, Tobias!”.

A feira de sexta reabastecia de cores o mundo de Lúcia, normalmente assolado de lençóis brancos e fraldas nem tanto. Não fosse a feira, talvez Lúcia nem fosse feliz. Mas, se os adultos de domingo não vinham visitá-la, a feira de sexta era só pra ela.
Uma correria, aquele dia. Um tal de pega daqui, pega de lá. Joaquim passou por Lúcia feito um raio peludo e esbaforido. Quase derruba a dúzia de ovos caipiras que Abelardo acabara de entregar à noviça. Quando caiu em si, Lúcia já estava no encalço do velho português que havia cruzado a esquina em direção à ponte. Depois da curva, ela se deparou com Joaquim já voltando, limpando o suor da testa.

- Um pivete sujismundo me afanou um corte de churrasco! Não se pode mais ter sossego nesta vida! - E lá se foi Joaquim resmungando, rua acima. Lúcia deixou que ele seguisse seu caminho. E foi para a ponte.

Fosse menos afobado, Joaquim teria percebido o que Lúcia viu com a facilidade de quem passa a vida a brincar de esconde-esconde com os pequeninos do Lar. Pegadas na margem do rio, embaixo da ponte. Pé ante pé, a noviça – a essa hora da vida já alta e esguia – arqueou o corpo e avistou um bichinho acuado roendo um pedaço fumegante de carne.

- Boa tarde, meu filho. – disse Lúcia, pedindo licença.

O moleque se agitou, como se fosse correr.

- Não precisa. Não vou te entregar. Fica calmo. Como é o seu nome?

Edgard não respondeu. Ficou olhando a santa, atônito.

- Minha nossa senhora! Sua mão! Isso não pode ficar assim, menino!

Edgard se deu conta da queimadura. Sim, doía. Mas não tanto quanto a fome. Mas agora que a fome tinha dado um descanso, a pele queimada começava a latejar.
Lúcia prometeu voltar com curativos e, se Edgard esperasse por ela, comida. Edgard fez que sim com a cabeça, aturdido. A noviça voltou, tratou a mão dele. Deu-lhe alimento. E foi assim que Lúcia conheceu seu algoz. 


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