Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
De qualquer forma, nada é igual.
Aqui cada dia é dia de um texto diferente.
Quer sair da rotina? Fica com o Salada!

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

E tudo terminou diante de um teatro lotado

Por Amanda Leal 


O clima estava pesado ao redor de Estela. Uma perda irreparável, o sumiço de Krya e agora uma ameaça de morte. Apesar de tudo, Estela, não estava desesperada e depressiva, no fundo ela estava mais preocupada em provar que não tinha sido pelas suas mãos que o marido havia morrido.A polícia ainda não havia descartado a participação de Estela no crime, suas digitais foram as únicas (além da de Francesco) a serem encontradas no local, exceto um fio de cabelo marrom que não era nem de Estela e nem do marido e muito menos dos funcionários da casa.

Estela optou por mudar mais uma vez de hotel. E dessa vez os policiais resolveram ficar de olho, mas não como deveriam. Uma patrulha na porta do hotel não é capaz de muita coisa, é? No fundo ela sabia que deveria tomar menos remédios, fumar menos e prestar bastante atenção em tudo ao seu redor. Deveria estar atenta e dormir o mínimo possível.Dessa vez, ela fez um mini-altar perto do frigobar e dessa forma se sentia protegida. Pedia ao seu Deus que a conservasse viva para que pudesse ainda nessa vida ser feliz. Um tanto poético esse pedido para uma pessoa que parecia ser tão prática e bem resolvida. Mas, Estela era assim surpreendia pelos gestos, atitudes e decisões.

Por volta das dez horas resolveu descansar, ligou a tevê e tomou um gole do seu vinho preferido. Ela estava de saco cheio daquilo tudo e como já estava evitando o cigarro e os remédios para dormir achou melhor ter algo que a ajudasse a relaxar. Seria apenas uma pequena taça, mas o tédio a perseguia e com isso toda a ansiedade por tentar entender o que estava acontecendo ao seu redor. Foram duas garrafas. Duas garrafas até a meia-noite. E a insônia se despediu rapidamente deixando nossa estrela tão desmaiada quanto a Bela Adormecida.

Os dois seguranças de Estela resolveram se ausentar da porta do quarto para poder lanchar no restaurante do hotel. E como já era muito tarde,  imaginaram que ninguém se aproximaria dali de madrugada. Foi ai, justamente ai que a coisa começou a se complicar. Uma mistura de burrice e incompetência pode transformar uma situação de segurança numa tragédia anunciada. E Estela dormia tranquilamente um sono profundo. Foi tudo muito rápido, ela dormia, os dois seguranças saíram para jantar e alguém entrou no quarto.

Passos lentos e muito cuidado para averiguar a situação. Afinal, o bandido era esperto e sabia que devia estar preparado para tudo. A cena era de cortar o coração: uma mulher dormindo na cama e duas garrafas de vinho vazias. Vítima vulnerável e sem poder de defesa.  Krya, que estava ao seu lado, avistou a pessoa e soprou como se a conhecesse e não gostasse de quem estava vendo. Estela não se mexeu.

A figura de roupas negras e gorro preto (tampando o rosto), nos mostrava apenas seus olhos negros e frios, agarrou o pescoço de Estela como quem agarra um peixe para tentar lhe tirar o anzol, imediatamente ela reage, se sacode e tira de baixo do travesseiro uma faca que o coitado do bandido jamais poderia imaginar que ela teria. Sem pensar muito, no auge da adrenalina e fazendo uma força absurda para respirar ela crava a faca na barriga da figura negra, que imediatamente solta o pescoço de Estela. Ela volta a si por um minuto e tenta buscar o ar de todas as formas, o bandido já está deitado agonizando numa cama ensanguentada quando Estela lhe tira o gorro e reconhece quem está por trás daquilo tudo.

Ela quase foi morta pelo próprio irmão. A partir dai muitas coisas começaram a passar pela sua cabeça: “- Será que eu estava sonhando e ele veio aqui apenas falar comigo? Mas e essa roupa? Esse gorro? Ele apertou o meu pescoço, eu senti.”. No meio de tantas indagações, Estela começou a gritar, pediu socorro e seus seguranças num ato desesperado invadiram o quarto e controlaram a situação. A ambulância foi chamada e a polícia também.


O irmão de Estela agonizava na cama do hotel, ela se aproximou dele e perguntou: - Por quê? E ele disse: - Porque você tinha tudo.  Estela começou a chorar e saiu de perto dele, a ambulância chegou, mas já era tarde. Por mais que ela não fosse culpada por tudo que lhe havia acontecido antes, agora carregava o maior dos pesos: o peso de ter tirado a vida do irmão. Mesmo que sem querer, ela sabia que era ou matar ou morrer. E apesar disso tudo a vida precisava continuar. Estela mandou avisar ao seu empresário que amanhã terá espetáculo sim. E quanto a ser feliz? Talvez ainda não esteja na hora.



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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Salada de Amigos

Por Marcela de Holanda


Faço amigos com a maior facilidade. Primeiro eu os escolho de acordo com quem os criou, por indicação de outros amigos ou pelo visual mesmo. Aí, separo um tempo por dia para ir os conhecendo melhor aos poucos. Quando me dou conta, eles já fazem parte da minha vida. Me fazem companhia, me contam histórias interessantes, me confessam o inconfessável como se me conhecessem há anos. Eles me levam para lugares onde nunca estive antes, me fazem refletir, às vezes me fazem viajar no tempo ou na maionese, me fazem rir e chorar. Torço pela felicidade deles e me sinto culpada se algo de mal lhes acontece. Sei que mais cedo ou mais tarde vai chegar a hora do adeus e nos afastaremos para novos amigos se aproximarem. Mas, por mais que eu saiba, sempre é um pouco triste quando acaba. Em algum lugar, eles continuam existindo aqui dentro de mim. Sou muito grata a todas as mentes criativas que escreveram e escrevem tantos bons amigos. Melhor ainda é quando posso compartilhar esses amigos com outros tantos amigos não inventados. Ler não é só maravilhoso, é fundamental. Assim como ter amigos.



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terça-feira, 26 de agosto de 2014

Pragmática. No fim, até a morte é cartesiana.

Por Rec Haddock 

É sabido que um ator famoso tirou a própria vida, recentemente. A família encontrou um texto que ele escrevera antes e depois de morrer, que veio parar em minhas mãos. Publico-o em respeito aos fãs, e à vontade do artista, que parece ter o escrito para que estes o lessem. O texto dizia o seguinte:

Ficam-se o tempo todo se perguntando o sentido da vida, e não o acham, no entanto. Até o fim. E quando cada um chega ao fim (a luz de plateia acende, revelando um espelho no fundo do palco, onde a plateia se vê.) vê uma multidão de pessoas às suas costas. Uma multidão que não vale nada. Todas as pessoas que você foi e já deixou pra trás. Todas as pessoas escrotas que você foi, que gostariam de ser outras pessoas. Idiotas, como você.

E então, tudo o que resta é o vazio. O não ser. De que vale viver então? Para existir procurando a razão que não há, da existência que não há, senão para acabar?

Como suportar a existência sabendo que o seu reflexo pode ressuscitar, mas você não? Que você, então, é menos que um reflexo?


Já, a minha sorte foi diferente. Provei da não-existência e voltei. Incontáveis vezes nos últimos dias. Aprendi a apagar a luz e a acendê-la. E como é dura a possibilidade da eternidade. Você será melhor do que jamais foram. Cada fim será um novo começo para você. Boa sorte.


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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O casebre no bairro triste

Por Rodrigo Amém

A pior coisa de ser criança largada é que ninguém liga. A melhor coisa de ser criança largada é que ninguém liga. Enquanto não tinham nada, dormiram por aí, nos escombros da cidade. Edgard lavava vidraças, fazia entregas, carregava pacotes. Com o dinheiro, comprava comida, água e remédio para as feridas de Lúcia. A ex-noviça ardia de febre e medo, mas estipulou condições. Das feridas, cuidava ela. Não permitira que Edgard a visse exposta, nua, mutilada. 

O sol se punha entre as ferragens, o vento esfriava a cada segundo. Edgard preparava um fogo dentro de um vagão sem rodas. 

- Quer chegar mais perto? – o menino perguntou.

Lúcia não respondeu. Não porque não quis. A voz falhou, tremida, seca. Edgard foi até ela. 

- Toma. – A canequinha com água tocou os lábios rachados de Lúcia. 

- Você não devia ter feito aquilo – disse Edgard. 

- Me ajuda...– ela respondeu, pedindo para levantar.

Aos poucos, Edgard levantou Lúcia como quem segura um tecido frágil. Cada centímetro era saudado com grunhidos sussurrados.  Finalmente de pé, Lúcia começou a corrigir sua postura arqueada. Edgard imaginava as feridas recém fechadas se rasgando naquele exercício de orgulho despropositado. Uma lágrima correu do rosto da garota. Ela se virou, pegou alguns restos de legumes, uma lata com água e começou a fazer uma sopa. 

Os dois comeram em silêncio. Ainda repetiriam esse ritual por muitas noites. 

Lúcia virou domestica, Edgard entregava jornais. Aonde quer que a conveniência da mão de obra barata se sobrepunha a repugnância da exploração do trabalho infantil, Lúcia e Edgard prosperavam, entre um tapa e outro, um abuso e outro, uma esmola e outra. E juntos alugaram um barraco num bairro triste. 

Edgard tinha quase treze quando Lúcia quebrou sua promessa. Ele abriu a porta e a encontrou se lavando, sob a luz do lampião. Ela parou. Os olhos confusos do garoto brilharam. Lúcia respirou fundo e deixou que a chama repousasse sobre a cicatriz. Edgard observou o corpo da mulher. O beijo do terço cobria Lúcia do peito ao ventre. Ao seio mutilado faltava um mamilo. O outro pousava como a joia imponente de uma coroa. A surpresa, para Edgard, não era a cicatriz, que ele imaginara até pior. Mas as formas sinuosas esculpidas ao redor dela, como uma declaração de resistência, coragem e força. Edgard não conseguia não memorizar cada centímetro daquela escultura que iluminava a penumbra do casebre no bairro triste. Então Lúcia lhe estendeu a mão. E nada mais foi como antes.



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sexta-feira, 22 de agosto de 2014

E tudo parecia calmo diante de um teatro lotado

Por Amanda Leal


Depois de tudo, Estela, ainda brilhava todas as noites em seu show. É irônico pensar que seu espetáculo fazia tanto sucesso logo nessa fase tão complicada de sua vida. As pessoas gostam de ver de perto certas tragédias e assistir, Estela dançar é o que as deixava mais perto dos acontecimentos dos últimos dias. Analisar sua expressão, sentir o clima pesado do ar, comentar sobre sua postura nos agradecimentos, isso tudo fazia parte da cruel investigação do público sobre a vida alheia. 

Muitos não entendiam de onde ela tirava forças para seguir em frente, muitos diziam que a frieza de Estela era sinal de culpa. Julgar, julgar, julgar...Quando você tem a sociedade toda por perto, muitas vezes, você não precisa de juiz. E o júri era dividido mesmo, uns diziam: 
"- Tá na cara que foi ela" e outros a defendiam ferozmente. Apesar de tantos julgamentos e indagações sobre a sua vida, a verdade era que Estela sabia que não podia e não devia parar de dançar. 

Era uma sexta-feira, a segunda sexta-feira após a tragédia que marcaria a sua vida para sempre. Após a apresentação com casa cheia, Estela voltou para o seu camarim e lá dentro havia um lindo buquê de rosas roxas.Ela estranhou, pois não era comum receber flores. Na verdade, o único que as mandava com frequência era o seu falecido marido. Segurou o buquê com certo pânico, pois sentia algo muito esquisito vindo daquelas flores. Abriu imediatamente o cartão e lá estava escrito: " Você será a próxima.".

Em um ataque de fúria, medo e desespero Estela quebrou o camarim inteiro e teve que ser contida pelo seu empresário e dois seguranças que a acompanhavam desde a tragédia. Estela parecia saber do que tudo aquilo se tratava, ela parecia saber que as coisas eram mais sérias e profundas do que aparentavam, mas nós que acompanhávamos de fora não tínhamos a menor noção do que realmente estava acontecendo.


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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Borracha

Por Marcela de Holanda


 Hoje eu acordei cheia de coragem. Pensei mesmo que podia fazer tudo diferente. Não seria só mais um dia naquela mesma agonia. Tomei meu café pensando nele e me jurei terminar o dia mais próxima do meu objetivo. Cheguei cedo para sentar na carteira ao lado daquela que ele sempre senta. Planejei mil maneiras, penteei o cabelo 50 vezes. Pintei a unha de vermelho. Escondi meu lápis de pluma rosa e meu estojo da Hello Kitty. Não fiz nenhuma pergunta na aula de matemática mesmo não tendo entendido nada. Esqueci de propósito os óculos em casa. Pedi para minha melhor amiga me chamar pelo nome algumas vezes bem alto pra ver se ele gravava. Deixei a caneta cair. E peguei. E deixei cair. E peguei. E deixei cair. E peguei. Nenhum olhar. Só aquele sorriso maravilhoso. Que não era pra mim. Ainda. De repente, se eu fingir passar mal ele se preocupa e ajuda. Mas não quero que ele pense que sou uma fraca ou fresca. Deus me livre disso. O que dizer? O que fazer? Como serão os nossos filhos? Será que ele é gato demais para mim? Claro que é. As aulas estão quase acabando. Vai ser mais um dia sem nenhum avanço. Mas eu me prometi. Eu jurei. Me empresta a borracha? Foi tudo que eu consegui dizer no desespero do final do último tempo. E eu corei. Quase morri. Porque ele respondeu com aquele sorriso que dessa vez era para mim: “Só se você me prometer não apagar meu nome do seu caderno”.



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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Equação

Por Rec Haddock


Anne- Você veio.

Alice- Vim. O que você quer?

Anne- Tudo bem? Você parece meio abatida.

Alice- Tô cansada. Enfim. Por que você me chamou aqui?

Anne- Eu queria que você me ajudasse com o papai. Ele ta muito doente, Alice. Ele esquece as coisas, confunde as pessoas.

Alice- Confunde as pessoas?

Anne- É. Ele fala comigo achando que eu sou você, ou a mamãe. Às vezes ele me chama de Vitória, também.

Alice- Vitória?

Anne- É. Você conhece?

Alice- Não. Não sei. Acho que não.

Anne- Tem certeza? Parece que ele gosta muito dessa mulher.

Alice- Ai, Anne. Eu não to com tempo pra essas suas teorias não. Vai ver que é uma cachorrinha que ele tinha quando era criança. Vamos ser práticas. O que exatamente você quer que eu faça pelo papai? Você quer que eu contrate uma enfermeira?

Anne- Como você consegue ser tão pragmática, Alice? Enfermeira? Você não visita ele há três meses. Ele sente a sua falta.

Alice- Ai, Anne. Ta bom. Semana que vem eu passo na sua casa.
Anne- Como você pode ser tão fria? Você chega aqui sem nem perguntar como eu estou. A gente não se vê faz eras e você chega me dizendo de contratar uma enfermeira pro papai sem nem olhar pra ele? O que eu te fiz pra você me tratar assim? Deixa de ser babaca, Alice.

Alice- É a sua mãe.

Anne- Quê?

Alice- Vitória. É a sua mãe. O seu pai traiu a minha mãe com essa Vitória, e nove meses depois você apareceu. Você achava que era adotada, que tinha sido escolhida. A sua mãe te largou no meio da nossa família e fugiu. Você acha o seu pai tão generoso, né? Ele é um canalha. Eu não visito ele há três meses, porque não suporto ficar perto dele.

Anne- Você sempre soube disso?


Alice- A minha mãe te acolheu como a uma filha e perdoou o meu pai. Pra todos os efeitos você é a minha irmãzinha mais nova. A geniazinha que conseguia fazer qualquer conta e queria ser matemática que nem o papai. Faz essa conta, agora. Uma enfermeira a mais e uma filha a menos. O resultado pro papai é positivo ou negativo?


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O Terço

Por Rodrigo Amém

A irmã abriu o armário de madeira escura. Um cheiro ocre saiu de dentro, junto com o rangido choroso das dobradiças velhas.

- Eu não nasci velha, minha filha. – Irmã Dalva projetava a voz sem se virar, encarando o fundo o armário. – Eu sei como é. O caminho é árduo. As tentações sequestram os corações mais fracos. Acho que o terço é adequado, não acha? O que o seu coração de pecadora diz?

Lúcia ofegava ajoelhada no tapete de milho. Já iam duas horas de interrogatório. Nua, a pele tremia ao toque do ar frio. As vibrações da hipotermia empurravam as sementes pontiagudas carne adentro. A vergonha já era uma memória distante face ao medo. Medo da própria fraqueza, medo de trair Edgard. Até quando aguentaria?

- Nossa Senhora é testemunha, menina. Testemunha da minha paciência. Salomão foi menos paciente e ele está sentado à direita de Deus Pai, Todo Poderoso. Imagina o que Salomão faria com uma ladrazinha como você, minha filha? – Dalva acariciava lentamente os inúmeros instrumentos cuidadosamente dispostos dentro do armário escuro.

Dalva se virou e encarou sua pecadora. Pálida, nua, trêmula. Dalva quase não sorriu. Seu pisar leve sob o longo hábito dava a impressão de que a irmã flutuava como uma sombra negra em direção à vítima. Dalva trouxe seu nariz adunco para perto do rosto de Lúcia, que desviou o olhar. Então, seus olhos azuis minúsculos escrutinaram a pele da noviça. A pelugem eriçada, os poros arrepiados. Os dedos gélidos e enrugados da irmã contornaram o mamilo ereto da noviça. Com as mãos atadas às costas, Lúcia esboçou esquivar-se em repulsa, e Dalva cravou-lhe as unhas no seio. Lúcia gritou, Dalva mostrou os dentes.

- Você percebe a dor, menina? Percebe a dor que você provoca a essa congregação? Você foi recebida em nosso seio, alimentada, educada, protegida. Mas na primeira oportunidade que teve cravou suas garras imundas no que é nosso. Roubou o que é de Deus.

- Eu não... – a mão esquelética de Dalva calou a lamúria de Lúcia com um tapa que ecoou nas vigas empoeiradas da sacristia. A noviça engoliu as palavras enquanto o rosto latejava.

- Eu sei que você tem roubado comida do orfanato. Não sei bem porque ou pra que. Não sei que tipo de doente rouba comida de órfãos. Mas sei o que Nosso Senhor tem reservado para gente como você. Garanto que você vai sentir saudade de mim quando chegar no inferno. A menos, é claro, que você confesse seus pecados. Deus perdoa quem busca perdão, minha filha. Abra seu coração e Ele te perdoará.

Lúcia acreditava no perdão de Deus. Mas tinha certeza absoluta da vingança de Dalva. E sabia que ela não toleraria a presença secreta de Edgard. O que quer que Dalva fizesse com ela, não seria melhor se também envolvesse o castigo de um menino.

- Muito bem. O terço, então. – Decidiu Dalva, flutuando de volta para o armário negro.

Finalmente a noviça se deu conta de que o “terço” em questão se tratava de um chicote de couro com três pontas de metal em sua extremidade. O instrumento de “penitência” favorito de Dalva, não só pelas marcas definitivas que permaneciam como “estigma do pecado”, mas também pelo macabro jogo de palavras em referência ao inocente colar de contas de oração. Lúcia se lembrava de Catarina, uma das meninas do orfanato. Acidentalmente, Catarina teria deixado o Ostensório cair no chão e se partir em mil estilhaços. Dalva não expressou indignação, nervosismo, contrariedade. Dalva estendeu-lhe a mão e a levou para a sacristia. Ouviram-se pedidos de misericórdia, um estalo rasgando o ar, um grito. Silêncio. Duas semanas mais tarde, Catarina voltou ao convívio das outras crianças. Ela usava um tapa-olho de veludo sobre a vista esquerda. Três cicatrizes paralelas espreitavam por debaixo do pano, vermelhas, chegando ao maxilar. Catarina jamais contou a ninguém como perdera o olho, ou o que havia acontecido na sacristia naquela tarde. “Ela me levou pra rezar o terço. Glória a Deus”, dizia.

O primeiro golpe do terço atingiu o tórax nu de Lúcia. Para um golpe desferido por uma anciã, os danos foram aterradores. Uma das pontas de metal dilacerou o mamilo direito de Lúcia como uma navalha as outras duas criaram linhas paralelas vermelhas em seu tronco, como garras de um tigre. Lúcia urrou como um animal ferido e desmoronou sobre o próprio peso, expondo as costas. Dalva admirou o novo alvo como uma tela branca à espera do artista. Então ela ouviu passos.

A porta se abriu e um garoto de mais ou menos 11 anos parou no batente. Usava roupas sujas, não o uniforme do orfanato. Cabelos pretos, olhos fundos. Uma pedra na mão esquerda. Antes que tivesse tempo de erguer o terço, a pedra já cortava o ar em direção ao olho da irmã, impulsionada com a pontaria certeira de um milhão de bolas de lama de prática. O projétil esmigalhou o globo ocular e fraturando parte dos ossos de face de Dalva, que caiu desacordada, terço ainda em mãos.


Quando voltou a si, Lúcia estava envolta num pedaço de tapeçaria. Corpo ardendo, dores lancinantes. Edgard reunia roupas, comida e o que mais conseguisse encontrar de valor em uma bolsa grande. A noviça se levantou com dificuldade, joelhos tremendo, e quase caiu ao ver Dalva jogada no canto, um olho a menos. Deus enviou um anjinho para salvá-la, pensou. Lembrou-se de Catarina. Dente por dente.  



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sexta-feira, 15 de agosto de 2014

E tudo parecia sob controle diante de um teatro lotado

Por Amanda Leal

Estela terminou sua apresentação que nessa altura do campeonato, estava lotando todos os dias e foi para um hotel, onde ficaria até tudo isso terminar. Preferiu jantar sozinha no quarto e diante de uma garrafa de vinho começou a refletir sobre sua vida. Estava abalada com tudo o que havia acontecido, afinal, havia perdido o marido. Fosse ela a culpada ou não, em algum momento (penso eu) a consciência pesaria e a dor viria.  

Refletiu ali sentada, em frente a uma taça já vazia. Se perguntava se não teria sido melhor ter filhos e que talvez, agora, num momento como esse não estivesse se sentindo tão sozinha. Se ao menos sua cobra não tivesse desaparecido (isso acontecera desde o dia do crime) ela teria alguém para quem desabafar. 

O tempo foi passando, a garrafa esvaziando e Estela adormeceu ali. Recostada na mesa, acordou apenas quando sentiu algo gelado se enroscar em sua perna. Abriu os olhos num desespero absurdo e quando recuperou os sentidos pós - sono, vinho e susto, avistou Krya, a cobra.

Vasculhou o quarto procurando alguém, numa mistura de desespero com coragem e imediatamente pegou o telefone e ligou para a polícia. Depois disso, Estela, não conseguiu mais dormir.

Continua...


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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O último cigarro

Por Bernardo Sardinha


“- Pare de fumar. Agora.” Disse a pessoa diante do espelho que suspirou derrotada.

“- Não vou me convencer nesse estado. Preciso de alguém mais firme, bem sucedido e menos como eu.” O sujeito se atirou em um banho revitalizador, digno de comercial de sabonete. A barba, que cresceu por puro desleixo, foi feita com capricho e atenção. Penteou os cabelos para trás no melhor estilo lobo de wall street e vestiu uma camisa preta para disfarçar a gordurinha que teimava em ficar. Escovou os dentes até a gengiva sangrar e bochechou com Listerine até as lagrimas verterem pelo seu rosto. Diante do espelho, de peito erguido disse firme: “- Pare de fumar. Agora!” – e completou ainda com um “- Seu merda.”

A pessoa que estava diante do espelho, jamais poderia convencê-lo. Era um merda de marca maior.


Estava prestes a se rastejar para mais um dia de trabalho, quando foi surpreendido por um estalo na orelha. Era sua mulher, dando aquele beijo estalado, daquele que ele odiava. Ela o abraçou por trás e ficou admirando o maridão pelo espelho do banheiro. Ela sorria. Um belo sorriso levado de menina e quando se deu conta, estava pelado na cama com sua mulher e atrasado para o trabalho. Como de praxe pegou o fantástico cigarro pós-coito, quando escutou dela um: “- Para de fumar?” transformador.


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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Quarta?

Por Marcela de Holanda

Se você veio aqui buscando uma história com desfecho feliz ou triste, melhor não ler essa. Dessa história eu não sei o final. Apenas sei o que me relataram. Foi um amigo meu terapeuta que não posso revelar o nome e que também não me revelou o nome dela. Então a chamarei de ela mesmo.

Pois a vida dela caminhava assim: domingo, segunda, terça, quinta, sexta e sábado. Como assim? Veremos. A questão começou a ser notada, pois ela parou de aparecer nas quartas-feiras para trabalhar. Ninguém tinha coragem de questionar ou reclamar com ela. Afinal, ela parecia surpreendentemente bem nos outros dias. Bem demais para quem tinha passado pelo que ela tinha passado. E como parecia bem, ninguém tocava no assunto.

Mas, às quartas, ela sumia. Resolveram dar um tempo para ela. Depois de seis quartas, um colega de trabalho perguntou como quem não quer nada o motivo dela não ter aparecido no dia anterior. E ela respondeu, sem hesitar, que não sabia do que ele estava falando. Ela tinha ido trabalhar no dia anterior e sabia que ele a tinha visto. Os dois tinham conversado como sempre. Ele estranhou, mas não quis levar a discussão adiante. Preferiu dizer que devia ter se confundido. A fofoca se espalhou pelo escritório. Por quanto tempo ela continuaria faltando o trabalho e negando?

Sem coragem de conversar diretamente com ela, mas preocupada com a situação, uma amiga do escritório mais próxima, que sabia que ela estava fazendo terapia, pois ela mesma tinha indicado, resolveu procurar seu terapeuta. Queria saber como ela estava reagindo e se essas faltas dela tinham relação com a tragédia. E qual foi a sua surpresa ao descobrir que o terapeuta não tinha ideia do que tinha acontecido. Ela nunca tinha mencionado nada sobre o acidente. Nem sobre o marido e muito menos sobre a filha. Tinha entrado na terapia há algumas semanas, mas dizia que não sabia bem o motivo.

Na consulta seguinte, ele tentou induzi-la a contar de várias maneiras. Mas ela não falava nada. Era como se eles não tivessem existido na vida dela. Aparentemente, a cabeça dela tinha bloqueado todas as lembranças relacionadas aos dois. Para tentar acabar de montar o quebra-cabeça, o terapeuta ligou para ela numa quarta-feira. Ninguém atendeu. Ligou para o trabalho e ela não tinha ido trabalhar como em todas as quartas. Preocupado, abriu uma exceção e apareceu na casa dela. Estava com uma sensação estranha e tocou a campainha inúmeras vezes até ela abrir. Mas não foi bem ela que abriu. O corpo era dela, mas ela não estava lá. Não o reconheceu, não sabia quem ela era nem onde estava, não sabia nada de nada. E assim, ficou sentada o dia todo. Ele passou a quarta inteira lá ao lado dela, observando o seu silêncio até ela adormecer sentada. Na manhã seguinte, ela parecia normal de novo. Foi como se a quarta não tivesse existido.


O terapeuta conversou novamente com a amiga dela para saber detalhes do ocorrido. Tinha sido numa quarta-feira. O marido pegou a filha na escola e os dois foram juntos buscá-la no trabalho. Mas nunca chegaram lá. Um ônibus bateu no carro e os dois morreram na hora. Ela enterrou os dois e depois os apagou da memória. Domingo, segunda, terça, quinta, sexta e sábado, eles nunca tinham existido e ela seguia sua vida feliz. Já nas quartas, ela não existia. Apenas havia a dor ali. Uma dor de nem saber existir.



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terça-feira, 12 de agosto de 2014

Presidente da nação - Parte dois

Por Rec Haddock


Abri a porta e vi um rato, com muitos documentos na mão, que prontamente se apresentou:

- Olá, bom dia. Meu nome é Iko Nutsamura. Pode segurar isso para mim, por favor? Ele me deu os documentos que segurava, se serviu do café dormido que eu guardava para este tipo de situação, sobre a mesa da sala, e continuou. Sou um oficial do Ministério de Prevenção de Plágios à Obras Literárias Internacionais. Você, por acaso, já sabe a linha da sua defesa? Se você...

Eu, na verdade, estava mais preocupado em me transformar em humano, novamente, mas acho que já restava muito pouca humanidade na Terra, já naquele tempo. Mas como todos nós temos a tendência a almejar o inalcançável, nenhum de vocês, leitores, podem me condenar.

- Obviamente, - a ladainha do rato continuava - eu não vim aqui para te atacar. Não ainda, pelo menos. Mas você tem que entender a posição do ministério: o governo tem a obrigação moral de impedir que você seja o que quer que você queira ser. De modo que estou aqui para me certificar do que você quer, para depois poder te atacar com propriedade. Ninguém pode afirmar que o governo não joga dinheiro fora com pesquisas o tempo todo, de qualquer modo. Alguma dúvida até ai?

Tentando entender se poderia utilizar-me do direito de ficar calado simplesmente, calei-me.

- Pois bem. Se a sua intenção é não cooperar.

A porta da minha casa foi arremessada através da sala e caiu na rua, pela janela. Um urso com um cassetete enorme nas patas estava parado, de pé, onde deveria estar a porta da minha casa. A luz do corredor estava totalmente acesa, enquanto a da minha sala estava totalmente apagada, de modo que o urso surgiu em uma contra-luz cinematograficamente: BAM!

Tudo o que eu consegui pensar naquela fração de segundo foi “fodeu”, o que expressa coisa pra caralho. No caso, queria expressar que a porta da minha casa que já tinha encontrado outra porta de outra casa na rua com a qual já passeava de mãos dadas, sempre cumpre mais a função de me deixar vulnerável do que me proteger, como deveria.

O urso se apresentou.

- Bom dia. Sou Oliver Jackson e trabalho como um oficial do Ministério de inComunicações Diárias Não Necessariamente Planejadas. Tenho aqui em minhas mãos uma ordem judicial – me entregou um papel. Se serviu da jarra de mel que eu guardava ali, para este tipo de situação, enquanto eu lia o papel que estava em minhas mãos. Era um papel higiênico recheado do que eu assumia que fosse adubo orgânico, como quase tudo que vem das mãos dos juízes brasileiros. Ele continuou. Minha função é fazer você falar, rapazinho. E a não ser que você queira começar a perder patas.

- Não seja tão grosseiro, por favor. Disse o rato, que, pelo menos, parecia educado. De qualquer forma ficou claro que os ministérios não se entendiam.

- Se você não quiser usar o consolo – o urso levantou seu cassetete – eu não preciso fazer você chorar.

Eu só conseguia imaginar a quem aquele instrumento ministerial consolaria, ao governo ou a mim, cidadão. De tanto pavor, não abri a boca, e o urso começou a andar na minha direção.


FINAL DA PARTE DOIS


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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A cruz vermelha

Por Rodrigo Amém

Por muito tempo, Edgard viveu nos fundos do orfanato, escondido. Como apenas a noviça lidava com os porcos, o casebre ao lado do chiqueiro, uma espécie de depósito de materiais de jardinagem e limpeza, era o refúgio mais seguro. Lúcia tentaria trazer o garoto para dentro, mas conhecia a Madre Superiora. Edgard era velho demais. Estava mais perto da idade de sair do que de chegar. E era muito judiado. Aquela mão marcada poderia colocar o tratamento aos órfãos em suspeição. A Madre prontamente recomendaria Edgard a um reformatório e Lúcia já conhecia histórias daquele lugar horrível. Até mesmo por iniciativa das irmãs, como uma forma de ameaça velada. “Quem já é grande e não se comporta vai para o reformatório. Você tem sorte, Lúcia. Devia pensar bem nisso”. Ninguém é perfeito, mas irmã Dalva era de dar arrepios. 

No começo, Edgard tinha medo de tudo. Tremia com o balançar das árvores sobre o telhado quebradiço. Passaram dias, meses. O menino se acostumou. Durante a noite, a noviça vinha e trazia comida, trocava curativos, trazia roupas. Ela ofereceu livros, mas Edgard quase não lia. Não gostava. Não sabia.

A maior parte do dia era passada dormindo. No começo, os pesadelos assustavam e Edgard tinha medo de gritar sem querer, no meio da noite. O garoto forçava a vigília para evitar ser traído pelo sono. E, por uma pequena janela lateral, Edgard notou que tinha uma visão privilegiada dos seus vizinhos, os porcos. Num primeiro momento, eram todos iguais. Aos poucos, suas características e personalidades dos futuros toucinhos passaram a saltar-lhe os olhos.

O porco maior, gordo e malhado, movia-se como se o tempo, para ele, passasse mais devagar. Os leitõezinhos corriam frenéticos ao redor do malhado. Ele parecia tolerar o desperdício de energia dos menores. A leitoa toda branca, rosada, era grande, mas menor que o malhado. Quando não estava comendo e dando de mamar aos leitões, a branca estava perseguindo os pequenos, conduzindo-os para o cocho, para a água, para a sombra. O malhado observava a interação com desinteresse.

Edgard tinha seu porco favorito. Era o maior dos pequenos. Provavelmente o irmão mais velho. Todo pretinho. Sempre que havia uma briga entre os pequenos, podiam contar com o pretinho para botar ordem no chiqueiro. Umas cabeçadas para cá, outras pra lá, e pronto. A paz voltava a reinar. Sensação de dever cumprido, pretinho se remetia ao grande malhado como quem diz: “- Viu pai? Eu dei um jeito nesses bagunceiros!”. O malhado desviava o olhar, desinteressado. O desdém paterno do malhado era irritante para o observador do casebre vizinho.

Edgard acordou com um grito. Levou a mão à boca. Teria sido ele? Será que alguém ouviu? Os gritos continuaram. Eram gritos de criança pequena. Atordoado, foi até a pequena janela. A vista demorou a conformar a luz da manhã. Dentro do chiqueiro, um rebuliço. Os pequenos corriam de um lado para o outro. A mãe branca se sacudia. Até o grande malhado parecia nervoso. Do lado de fora da cerca, pretinho tinha as patas traseiras amarradas numa corda presa a um galho alto da mangueira. O pequeno se contorcia em desespero tentando se livrar daquela forca invertida. Embaixo dele, um balde de metal.

A porta dos fundos do orfanato se abriu e Lúcia apareceu com uma faca e o que parecia um lençol enrolado na outra mão. Por um momento, Edgard se permitiu a esperança de imaginar Lúcia em uma missão de resgate, usando a faca para libertar o pretinho. Foi só quando a garota abriu o pano, que se revelou um avental de açougueiro, que a realidade esbofeteou Edgard.

O garoto viu Lúcia vestir o avental. E viu a faca afiada e precisa desenhar um corte vermelho e profundo no pescoço do pretinho, afogando aos poucos o grito de criança assustadoramente humano que ele emitia. Viu o fio algumas gotas de sangue grosso respingar no avental branco a caminho do balde. E então Edgard viu o segundo corte, que se uniu ao primeiro formando uma cruz de sangue na barriga do pretinho. A faca abria o caminho pelo corpo do animal, as contorções cessavam. Ao fim dessa cruz invertida, o corte se abriu em vísceras que escorreram viscosas para dentro do balde.

Edgard sentiu vertigem e desviou o olhar de volta ao chiqueiro. Encontrou os olhos de malhado. Edgard imaginou quantos filhos malhado viu morrer. O menino deixou a janela e foi chorar num canto do depósito.

De noite, Lúcia veio trazer o jantar e não entendeu o olhar de fúria de Edgard diante das tiras de bacon no seu prato. O garoto comeu apenas pão naquela noite. Ao sair, Lúcia perguntou se havia algo mais que ela pudesse fazer por ele.

- Tem algum livro sobre porcos? – disse Edgard.

Lúcia revirou a biblioteca das irmãs procurando algo sobre suínos. Dizem que não devemos julgar um livro pela capa, mas Lúcia também não tinha o hábito da leitura ou alguém a quem recorrer. Então, foi obrigada a desobedecer à sabedoria popular e levou para Edgar um livro velho que achou no sótão e trazia a ilustração de um porco na capa. Aquele livro acabou por despertar a fome de Edgard para letras. O título: a revolução dos bichos.


E Edgard nunca mais foi o mesmo.

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sábado, 9 de agosto de 2014

A Noviça

Por Rodrigo Amém


Foi só depois de grande que Lúcia compreendeu o próprio infortúnio. Naquele tempo, tudo parecia corriqueiro, como sempre fora. Nem era uma questão de conformismo.Era só hábito.Todo fim de semana, as irmãs arrumavam Lúcia da melhor maneira possível, assim como o resto das crianças. Aí chegavam os visitantes. A cada ano, a interação entre Lúcia e os adultos diminuía. Ela se recorda de quando era menor. Eles vinham, pegavam no colo, davam beijo. E iam embora. Lúcia ficava. E a cada ano, a interação diminuía. No ano seguinte, já não a pegavam mais. Era só cafuné, quase um cascudo de tão ríspido. No ano seguinte, só olhavam e sorriam. Até quando Lúcia virou invisível.

E não é que Lúcia gostasse, ou tivesse medo. Era só o que ela conhecia. Foi um bebê ali. Foi uma criança ali. Virou mocinha ali. Quando deu por si, já era quase uma das irmãs. Já conduzia as visitas. Já arrumava as outras crianças. Já torcia para que fossem escolhidas. Já não era ela. Eram as crianças. E Lúcia não era mais criança. Catorze anos é muita coisa.
Lúcia agora tinha que trabalhar, dizia a Madre. Lavar fraldas, banheiros, lençóis, tudo era meio mecânico, meio feito à distância, cabeça lá longe. Mas tinha as sextas-feiras e o mercado. O ponto alto da semana de Lúcia. O momento em que ela pisava fora do Lar e sentia a brisa, o cheio das frutas, o som da vila. E Lúcia escolhia cada tomate como se fosse pérola. E Tobias, da banca de queijos, sempre dava uma nesga. “Bom dia, noviça!” “Deus te abençoe, Tobias!”.

A feira de sexta reabastecia de cores o mundo de Lúcia, normalmente assolado de lençóis brancos e fraldas nem tanto. Não fosse a feira, talvez Lúcia nem fosse feliz. Mas, se os adultos de domingo não vinham visitá-la, a feira de sexta era só pra ela.
Uma correria, aquele dia. Um tal de pega daqui, pega de lá. Joaquim passou por Lúcia feito um raio peludo e esbaforido. Quase derruba a dúzia de ovos caipiras que Abelardo acabara de entregar à noviça. Quando caiu em si, Lúcia já estava no encalço do velho português que havia cruzado a esquina em direção à ponte. Depois da curva, ela se deparou com Joaquim já voltando, limpando o suor da testa.

- Um pivete sujismundo me afanou um corte de churrasco! Não se pode mais ter sossego nesta vida! - E lá se foi Joaquim resmungando, rua acima. Lúcia deixou que ele seguisse seu caminho. E foi para a ponte.

Fosse menos afobado, Joaquim teria percebido o que Lúcia viu com a facilidade de quem passa a vida a brincar de esconde-esconde com os pequeninos do Lar. Pegadas na margem do rio, embaixo da ponte. Pé ante pé, a noviça – a essa hora da vida já alta e esguia – arqueou o corpo e avistou um bichinho acuado roendo um pedaço fumegante de carne.

- Boa tarde, meu filho. – disse Lúcia, pedindo licença.

O moleque se agitou, como se fosse correr.

- Não precisa. Não vou te entregar. Fica calmo. Como é o seu nome?

Edgard não respondeu. Ficou olhando a santa, atônito.

- Minha nossa senhora! Sua mão! Isso não pode ficar assim, menino!

Edgard se deu conta da queimadura. Sim, doía. Mas não tanto quanto a fome. Mas agora que a fome tinha dado um descanso, a pele queimada começava a latejar.
Lúcia prometeu voltar com curativos e, se Edgard esperasse por ela, comida. Edgard fez que sim com a cabeça, aturdido. A noviça voltou, tratou a mão dele. Deu-lhe alimento. E foi assim que Lúcia conheceu seu algoz. 


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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

E tudo parece natural diante de um teatro lotado

Por Amanda Leal


Uma música mística toca na sala de paredes marrom e Estela está dançando para uma plateia lotada. A luz ambiente é bem fraca, como se estivesse iluminada por velas. Ela dança belamente o número ensaiado durante os últimos dois meses. Havia passado poucas e boas por causa desse número, seu coreógrafo a deixou no meio do caminho e precisou substituí-lo por um outro não tão qualificado. 

A dança mística que era feita pelo grupo de Estela era uma mistura de dança do ventre com ioga e ballet. Tudo acontecia de forma muito sedutora e misteriosa, tudo isso embalado por um músico que tocava ao vivo. Sem dúvida o grupo sabia muito bem o significado de superação, o espetáculo estava lindo e todos da plateia estavam inebriados com tamanho talento e técnica expressos pelos dançarinos. 

Estela era uma artista e como toda artista tinha suas esquisitices. Dormia colada com uma cobra enorme e tinha um altar gigante com a própria foto onde acendia velas e incensos para si mesma. Tamanha esquisitice eu nunca tinha visto em toda a minha vida como repórter, mas ao entrevistar Estela você logo percebe a atmosfera pesada que ela carrega. 

Abandonada pelos pais numa tribo cigana em Arraial do Cabo, Estela viajou o mundo com seus novos pais, ciganos. Na tribo, foi amada e bem cuidada por todos que a cercavam, mas um dia uma epidemia de dengue matou quase toda a sua família e Estela precisou caminhar com as próprias pernas. 

Os sobreviventes foram apenas ela, sua mãe adotiva e um irmão menor. Estela se estabeleceu na Itália após se casar com um italiano que a ajudou a se formar em dança numa das melhores escolas de Roma. Seu irmão e sua mãe ficaram no Brasil e ela os ajudava como podia e os dois, ainda hoje, levam uma vida tranquila morando numa casa confortável e simples em Arraial do Cabo, onde tudo começou. 

A estrela Estela já foi alvo de muitas situações estranhas em sua vida e muitas pessoas a criticam por sua esquisitices e rituais em que se envolve, mas o que nos traz hoje a falar dela é o último escândalo no qual se envolveu: a morte do marido, Francesco.

Ela nega e jura de pés juntos que não teve nada a ver com isso e que dormia enquanto o marido era assassinado ao seu lado na cama. Mas como Estela não teria escutado os gritos? E as manchas de sangue que invadiram o seu lado do colchão? O vidro da janela ao seu lado estava quebrado por um vaso de plantas e mesmo assim ela disse que não escutou nada e que só acordou quando sentiu o cheiro de queimado da cortina que havia sido atingida por uma vela que ficava na cabeceira da cama ao lado do marido. 

Essa mulher que hoje dança tranquilamente num teatro lotado, carrega uma bagagem enorme de sofrimento e agora, junto com tudo o que aconteceu, carrega também o peso da morte. E como ela mesma gosta de dizer, dança para poder se livrar de tudo isso, para poder esquecer por um instante dos pesadelos em que está imersa e também para se preparar para tudo que ainda há de vir. 

Continua... 


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