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sábado, 19 de julho de 2014

Três Dias

Por Rodrigo Amém

 
Três dias. Esse foi o tempo que a fome levou para quebrar Edgar.

Durante um tempo, Maurício e Galeto ajudaram o amigo foragido. Levavam pão, leite e biscoitos para a fábrica abandonada onde ele achou refúgio. Galeto não se sentia confortável com essa situação toda. Desde a primeira vez em que Edgar os procurou depois que sua mãe foi presa. Não é que Galeto não se importasse com seu amigo. Mas Galeto tinha medo. Quem é de Palmira tem dois caminhos pra seguir na vida. Ou segue a lei ou vira bandido. Não cabe relativismo moral num lugar onde as pessoas se ocupam de contestar ou confirmar os preconceitos de quem é de fora. E a mãe de Galeto era categórica. 


- Ou você anda na linha ou anda pra longe, guri. Filho meu não é vagabundo, não. 


No fundo, Galeto não entendia direito o que havia acontecido com a família de Edgar. E se o amigo tivesse algo a ver com a morte do pai? Isso faria de Galeto um cúmplice? Pelo menos nos filmes é assim que acontece. Mas Galeto não era cúmplice de nada. Ele não era vagabundo!

Maurício, não. Maurício era passional. Além do mais, ele conhecia de perto a experiência de perder amigos em decorrência de circunstâncias alheias ao seu controle. Maurício tinha estudado em boas escolas e tinha lá seus bons amigos. Mas aí o pai perdeu o emprego, perdeu a as economias, perdeu a casa. Em algum lugar no processo, Maurício também perdeu sua escola, seu quarto, a maior parte dos seus brinquedos. E todos os seus amigos.

Não fosse por Edgar - e por extensão por Galeto - Vila Palmira seria um exílio. Graças aos guris, foi um recomeço. Foram eles que ensinaram Maurício a andar e por onde andar, como falar e com quem falar, pra quem sorrir e de quem ter medo.


Meio pra retribuir, meio por saudosismo, Maurício contava coisas da sua antiga vida para os dois novos amigos. Contava sobre seus brinquedos, sobre sua escola. Contava as coisas que aprendia nas aulas, o que comia na hora da merenda. Galeto vibrava, vivendo vicariamente as delícias daquela vida farta. Edgar apenas ouvia. Sua expressão aturdida parecia misturar incredulidade e fascínio. Ele acompanhava cada causo do amigo com olhos fixos de quem quer roubar cada palavra. 

De noite, era comum para Edgar visitar o Instituto Educacional São Bento. As minúcias das histórias do ex-garoto rico montavam um mosaico onde Edgar vivia em sonho. Os nomes dos professores, Maurício forneceu. Os rostos, o inconsciente de Edgar esculpiu. Enrolado numa coberta velha, Edgar se escondia no galpão de fábrica. Dormindo, o garoto viva a fantasia de ser aluno, graças ao amigo.

O barulho de uma porta de carro ecoou no teto alto do galpão e acordou Edgar.  Ele fechou um olho e encostou o aberto num buraco na parede carcomida. Dois policiais usavam um alicate enorme para cortar as correntes do portão da fábrica. Edgar juntou o que deu enquanto tentava entender como tinha sido descoberto. Incapaz de definir qual dos garotos o havia traído, optou por condenar ambos.

E foi assim que Edgar deixou para trás seu primeiro refúgio e seus últimos amigos.  Três dias depois, a fome.
 
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