Por Rodrigo Amém
Nos dias mais quentes, Edgar e seus amigos costumavam nadar numa represa nas vizinhanças do bairro. Ele se lembrava da sensação de estar debaixo d’água. A visão turva, embaçada. O mundo em câmera lenta, distante, o som grave ao seu redor, os membros pesados. Coração acelerando, pulmões ardendo. Até que o corpo se rende e ganha a superfície. Num instante, luz, som, ar, tudo volta. A vida volta.
Era assim que Edgar se sentia. Mergulhado no açude. Visão turva, sons distantes, corpo pesado. A fome tinha mergulhado o garoto num universo só dele. Arrastava os pés, respiração ofegante, joelhos fracos. Engraçadas as coisas que vêm à tona na mente confusa. Edgar lembrou-se de cada migalha caída nos lanches da tarde. Nunca teve muito, mas tinha o bastante para o desperdício. Pensou em sua mãe. O abraço dela. Por onde andaria sua mãe?
O cheiro atingiu-lhe as narinas como um soco no frágil estômago. Na esquina, um homem de braços peludos jogava pedaços de carne sobre um braseiro. A fumaça subia e o cheiro hipnotizante ganhava força. Quando deu por si, Edgar estava a dois passos do churrasco. Pálido.
O homem usou em Edgar o mesmo gesto que dedicava às moscas. Andando de costas, o garoto não tirou os olhos dos bifes suculentos. A boca, seca e rachada, agora se enchia de água. Uma senhora passou, deu algumas moedas ao homem e levou a mão direita à altura do rosto, aproximando o polegar e o indicador. O homem sorriu e seus braços peludos alcançaram um facão e tiraram um pedaço de um dos bifes mais mal passados. O vermelho do interior da carne escorreu numa gota de sangue que evaporou no contato com a brasa. Com a ponta da faca, o homem jogou o pedacinho cortado para o ar, fazendo uma parábola que levava até os pés da senhora. Só então Edgar percebeu o cachorrinho da senhora, praticamente uma micro ovelha, um chumaço de algodão com patas. O cachorrinho se aproximou, cheirou a carne e a abocanhou. A senhora agradeceu ao homem e puxou a coleira do chumaço branco, voltando de onde vieram, passando por Edgar.
Edgar estendeu a mão, envergonhado. A mulher ignorou sua presença. O cachorro também. E o senhor com o filho gordinho que comprou o próximo bife inteiro, também. E as duas mulheres espalhafatosas que levaram dois bifes ao ponto, também. E o velhinho que passou com o bife debaixo de um braço e uma bengala na outra também. E todas as pessoas. E todos os bifes. Ninguém via e ouvia os apelos de Edgar, de dentro do seu açude de fome.
Sobrara um corte esturricado. Mais sebo que carne, no canto da grelha. Edgar cerrou os dentes. Virado bicho, aproveitou que o homem levantou os braços peludos para acenar a um conhecido que passava no outro lado da esquina. Correu. Correu meio sem sentir, pontos pretos embaralhando a vista. Meteu a mão e agarrou o sebo esturricado. Correu mais. Ouviu o homem urrando “moleque”, “ladrãozinho”, “pega”. Edgar não parou. Não sentia as pernas, não ousava olhar pra trás. Correu pelas ruelas, becos, por debaixo das pontes. Tropeçou, ralou o joelho. Do jeito que caiu, levantou e seguiu.
Quando não conseguiu mais correr, entrou debaixo de um canto e se encolheu, prendendo o fôlego para não ser ouvido. Coração disparado, pulmões ardendo. Como no açude.
Quando se acalmou, abriu o punho cerrado e olhou sua mão. As queimaduras do contato com a grelha fizeram bolhas e marcas. Ardiam. Na sua palma, o sebo esturricado, duro, sujo de terra e suor. Edgar comeu cada pedaço sôfrego, entre envergonhado e agradecido. Lembrou-se de sua mãe. Onde andaria sua mãe?
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