Não era por falta de estímulo que Edgar havia se tornado uma verdadeira chaga para a humanidade. Muito pelo contrário. Toda experiência que ele vivera até aquele momento tivera o firme e indelével propósito de fazê-lo odiar o planeta. Mas talvez a primeira memória seja a mais viva. O dia em que Edgar conheceu sua primeira vítima, o amor de sua vida.
Edgar nasceu pobre, mas não sabia disso. Todos ao seu redor pareciam partilhar das mesmas agruras e fugazes alegrias. Algumas coisas eram mais difíceis que outras. Ter pai, por exemplo, Edgar achava difícil. Não ficava muito claro pra ele porque as outras crianças lamentavam não conhecer os próprios pais. Edgar conhecia o seu como quem conhece um porão escuro. Nunca sabia o que podia sair de lá. Às vezes, um brinquedo velho, cheirando a lixo. Às vezes, um tapa, um soco. O não saber era a pior parte. As certezas, como o cheiro de álcool e a frieza do toque, não chegavam a ser atenuantes.
Um dia Edgar estava brincando na lama do campinho pós-chuva. Maurício e Galeto faziam
bolinhas de barro e miravam um no outro. A essa altura, só o branco dos olhos contrastava com o tom de sujeira que cobria seus corpos.
- Toma, abestado! - gritava Galeto ao desferir seu projétil na direção de Maurício. Edgar, camuflado, observou o tiro de barro de Galeto explodir nas costas de Maurício em sua rota de fuga. Com Galeto desarmado e Maurício se recompondo do ataque, era sua chance de contar com o fator surpresa.
Uma bomba de lama em cada mão, Edgar escalou a carcaça de fusca que usava de trincheira e fez dois arremessos cruzados. Um acertou a cara de Galeto em cheio, derrubando-o de costas no chão. A segunda pegou no ombro de Maurício, que acabou derrubando a bola de barro que se preparava para arremessar.
Edgar apontava e ria, triunfante, do alto de sua montanha de Wolkswagen enferrujado. Levou só alguns segundos para ele se dar conta de que sua condição havia passado de superioridade tática a alvo fácil desarmado. Maurício e Galeto já estava de cócoras preparando suas bombas afoitas quando Edgar começou sua desabalada carreira em direção a qualquer lugar mais seguro. Não deu. A pressão de duas bombas de lama atingindo suas costas quase que simultaneamente levou Edgar de cara ao chão. Quando levantou, já de braços erguidos em trégua, os três ouviram a mãe de Maurício chamar. A noite caía e eles nem repararam. Não era mais hora de criança na rua.
Especialmente não naquela região.
Os três se despediram e cada um correu em uma direção diferente. Edgar logo diminuiu o passo, concentrado em tentar tirar um pouco de barro das narinas e do canto dos olhos. Ele e Galeto eram amigos de berço, diziam. Muito embora nenhum deles tivesse dormido num berço desde que deixaram o hospital. O caso é que eles se conheceram pequenos. Edgar não se lembrava dos detalhes, mas Galeto costumava ter um irmão mais velho. Mas faz tempo, já. Morreu de trem.
Agora ele e Galeto eram unha e carne. Maurício é que tinha chegado faz pouco tempo. Parece que o pai tinha quebrado e eles precisaram mudar pra Palmira. Antes de Maurício chegar, Edgar achava que precisava nascer em Palmira para morar em Palmira. Até porque, quem é que escolheria morar ali? Pelo jeito, Palmira não se escolhe. Acontece com as pessoas.
Ao entrar na sua rua, Edgar gelou. Sua casa era no final do beco, mas dali ele podia ver a porta. Dalí ele podia ver a luz acesa pela janela. Ele podia ver a bicicleta vermelha encostada na porta.
Arrepio.
Não era corriqueiro - nem desejável - ver aquela bicicleta ali. Muito menos desejáveis eram as consequências desse avistamento. Quando estava com sorte, Edgar passava semanas, até meses, sem avistar a bicicleta. Uma vez, os pesadelos tinham até parado, quando a bicicleta regressou de surpresa numa noite quente de fevereiro. Edgar se lembra muito bem daquele verão e do seu calor atípico. Ele sentia que seu braço cozinhava dentro do gesso incômodo.
Parado na entrada da rua, Edgar fingia que decidia ficar ou correr. Fingia para si mesmo. Correr nunca foi opção. A saída - se é que havia alguma - era passar despercebido e torcer que a cachaça fosse daquelas. Edgar respirou fundo para firmar os joelhos e retomou sua caminhada com cautela.
Era engraçado. Não. Não era essa a palavra. Era assustador como os passos em silêncio era mais ruidosos. Cada pisada soava como um tapa ardendo na lembrança.
Em frente a porta, Edgar segurava o fôlego para apurar os ouvidos. O silêncio que vinha de
dentro da casa era uma afronta. Devagar, encostou o ouvido na madeira. Nada. Não tinha jeito.
Levou a mão na maçaneta, dedo ante dedo. girou devagar.
A porta abriu devagar, rangendo fino. O álcool invadiu suas narinas como um soco. Edgar quase caiu zonzo. No fim da pequena sala, viu cacos sobre o chão da cozinha. Cerâmica. O que sobrou do porquinho. Debaixo da mesa, uma garrafa caída, seca. E um pé. Um pé jogado, dentro de uma bota suja, ligado a uma perna arquejada. O ronco vindo da mesa da cozinha denunciava o dono daquele pé sujo.
Edgar conhecia bem aquele pé. Já o teve nas costelas, no pescoço. O garoto já tinha sido
capacho daquele pé por vezes demais. A vontade era fugir gritando. Mas isso não funcionava.
Pior, poderia sobrar pra mainha.
Toda vez que Edgar correu, sobrou pra mãe. A porta fechada do quarto era alivio. Quando a
coisa desanda, a porta é a primeira a levar. Era muito importante que a porta do quarto de sua mãe permanecesse desse jeito. Edgar levitou até o aposento oposto, um quartinho de costura onde sua mãe fazia o sustento da família.
Entrou e fechou a porta devagar. Encolheu-se num canto e fechou os olhos. Ironia, foi
exatamente quanto Walter abriu os dele.
E a primeira coisa que Walter viu ao cambalear até a sala foi o barro das pegadas pequeninas em direção ao quarto de costura. Walter sorriu e começou a tirar a cinta.
De dentro do quartinho escuro, Edgar tremia. Walter tossindo e pisando duro eram uma
presença que não respeitava portas e paredes. Porque Walter não era apenas maior. Ele era
mais gordo, mais forte, mais brutal do que qualquer pessoa que Edgar pudesse sonhar em pedir socorro num momento daquele. Sim, Walter saboreava cada golpe que desferia contra o menino e sua mãe. Mas os hematomas, os ossos quebrados, eram quase efeito colateral. Walter reagia com surpresa diante do seu próprio poder destruidor. Quem diria que bastava um sacolejo para deslocar o ombro de um moleque de... o que? Oito? Nove? Seis anos? Frágil, o merdinha.
A porta da sala de costura nunca fora um exemplo de solidez, mas ela abriu ao meio com o
chute de Walter. O coração de Edgar parou. E voltou a bater com fúria em seguida.Walter encontrou Edgar encolhido num canto do quarto como um bicho acuado. Um bicho tremeliquento, coberto de barro, chorando lama.
- Olha só a sujeira que você fez, seu merda... - falou Walter entre dentes. Mas não eram dentes cerrados de ódio. Era um sorriso mórbido, emoldurando o brilho perverso dos seus olhos vermelhos. Não havia revolta no seu tom. Não havia ira. Havia o nervosismo de quem encontra o pecado favorito e sente a boca encher de água. Seu punho se fechou em torno da cinta.
Seu braço se ergueu até o teto. Edgar fechou os olhos e prendeu a respiração. A cinta desceu rasgando braço, costela, coxa. A dor cantou aguda e Edgar achou que ia desmaiar. E começou a chover uma chuva quente sobre Edgar. Menos chuva, mais espirro longo. Como quando Maurício enche a boca no tanque e espirra água em quem passa perto. Mas uma água com cheiro de ferro. Edgar abriu os olhos e viu o pescoço cortado de Walter esguichando as últimas gotas de sangue sobre seu corpo, antes de desmoronar numa montanha de carne sem vida.
Atrás dele, uma esquálida sombra de mulher deixava uma enorme faca de churrasco firmar sua ponta tingida de vermelho no taco velho do casebre.
Edgar se levantou e correu para abraçar sua mãe. Um abraço de alívio, remorso, lágrimas, barro e sangue.
A polícia demorou demais a chegar. Edgar e mãe permaneceram abraçados, olhando para o
corpo de Walter em silêncio. Às vezes, parecia que ela Chorava o horror de ter tirado uma vida.
Outras, a dor de ter perdido um grande amor.
Já a paz de Edgar enterrava uma inquietude. Quantas noites de terror, quanto abuso, quanto
sofrimento foi necessário para que aquela cinta fosse derradeira?
A polícia chegou lenta e descompromissada. Cobriram o corpo com um saco preto, fizeram
as perguntas padrões. Algemaram a mãe do Edgar. Levaram o morto e sua mulher no mesmo camburão. Só não levaram Edgar. Ninguém sabia dele. A mãe, em choque, não sabia dar conta do paradeiro do filho. A polícia viu o sumiço como um momentâneo inconveniente e tocou pra delegacia.
Edgar, de seu posto avançado na carcaça enferrujada do fusca, viu sua infância descer o morro banhada em luzes vermelhas e azuis. Pai sem vida, mãe presa, filho na rua.
Edgar esperou que a poeira abaixasse, voltou para casa, encheu uma mochila de trapos e uns biscoitos. Fez questão de juntar cada moedinha que Walter havia subtraído do seu porquinho de cerâmica. Cacos da infância recolhidos, ganhou o mundo.
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