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quarta-feira, 21 de maio de 2014

Vizinhança

Por Marcela de Holanda

 O cenário do seu sonho foi invadido por um som estranho que parecia não pertencer àquele contexto. Uns segundos depois, seus olhos abriram. O som continuava. Uma música alta, bem alta, vinda sei lá de onde. Olhou no relógio. Eram 6 da manhã. De um domingo. Que infeliz seria capaz de ligar uma música no volume máximo numa hora dessas?

Foi ao banheiro e voltou para a cama. Fechou os olhos e tentou. Mas quem ela estava enganando? Sabia que enquanto aquele barulho insuportável continuasse, não seria capaz de dormir. Xingou mentalmente a vizinhança inteira na falta de um alvo específico. Tinha trabalhado de segunda a sábado. Domingo era seu único dia de descanso. Ela sempre tomava cuidado para não incomodar ninguém. Por que não faziam o mesmo por ela?

Acabou levantando. Investigou pela janela e viu que o som vinha de uma vila de casas na frente do seu prédio. Mas de qual delas? Esperou que algum vizinho começasse a berrar pedindo silêncio. Não era possível que fosse a única a se sentir incomodada. Ninguém se manifestou. A música continuava ainda pior. Alguém trocava a rádio de estação enlouquecidamente. Era provocação demais. Colocou um roupão e saiu com aquele cabelo de maluca mesmo. De perto, identificaria a casa e tomaria satisfação com quem quer que fosse.

Os corredores do prédio estavam desertos e a rua também. Sentiu um pouco de medo, mas seguiu em frente. Vinha da casa amarela. Tocou a campainha. Ninguém veio. Aproximou o ouvido da porta e ouviu um choro. Um choro de criança. Ninguém parecia atender os chamados dela também. A criança chamava o pai e chorava e nenhuma resposta era ouvida.

Sentiu um aperto no peito. Bateu à porta, bateu mais forte, quis arrombar. Não sabia como. Olhou em volta. Lá longe vinha um adolescente com uns 15 anos que parecia voltar do programa de sábado à noite. Ele era forte o suficiente. Foi até ele, explicou a situação e pediu ajuda. Ele não sabia bem como fazer, mas tinha visto num seriado um cara se lançando em direção a uma porta e conseguindo derrubar. Tentou três vezes até a porta abrir. Acabou ganhando uma fratura no braço.

Encontraram a criança sozinha em casa. Ela devia ter uns 5 anos. A mulher desligou o rádio que estava no chão e tentou acalmar a criança. O adolescente pediu desculpa por não ficar, mas tinha que chegar em casa antes que a mãe acordasse e a tempo de inventar uma história para a mãe levá-lo ao hospital para ver o braço.

A mulher ligou para a polícia e esperou com o seu roupão e cabelo de maluca. Esquentou um leite para a menina e fez as perguntas que foi capaz de fazer sem assustá-la. Acabaram dormindo enquanto esperavam. A polícia chegou. O pai da menina tinha saído na noite anterior e acabou preso. Ela não tinha nenhum outro parente vivo.

O processo foi lento e difícil, mas a mulher conseguiu adotar a menina. Cuidou dela sozinha. O pai sumiu no mundo depois de sair da prisão. As duas criaram o hábito de dormir ouvindo música, mas nunca alta o suficiente para ser ouvida de fora do apartamento.


A criança cresceu e, quando fez 25 anos, conseguiu um emprego numa empresa e se apaixonou pelo seu chefe, com quem casou 3 anos depois. O chefe era um homem de ótimo coração que um dia tinha sido um adolescente corajoso o suficiente para quebrar o braço arrombando a porta para socorrer uma criança desconhecida chorando.




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