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sábado, 31 de maio de 2014

Clichê

Por Rodrigo Amém


Por estas mal traçadas linhas, venho até você, caro leitor, dirigir-me humildemente. Quero falar-lhe de uma fantástica aventura que vivi ainda há pouco.

Estava eu cuidando da minha vida, captando inspirações para vencer o desafio do papel branco à minha frente, representado da fria luminosidade do meu computador. Oh, máquina insensível que tanto me torturas. Não percebes a angústia de insuflas no âmago do meu ser? Clamo por minha musa inspiradora, mas ela não me ouvirá. Estou só. Oh, destino cruel.

Eis que de repente, não mais que de repente, pela vidraça umedecida pelos pingos da chuva que outrora caíra, um vulto se faz presente.

Sentindo o coração pulsar como se fosse sair pela boca, lancei olhares sobre a janela, mas nada lá havia. Com um suspiro aliviado, voltei a mergulhar no fundo do meu eu à procura das belas palavras que escreveria para ti, quando uma gélida mão pousou sobre meu ombro.

Um arrepio percorreu minha espinha de tal forma que meu corpo ficou paralisado. Uma voz sepulcral ecoou pelo aposento, como se vinda de além-túmulo:

Desta vez não escaparás de mim. - Disse a maldita aparição e, ao final de sua sentença, disferiu uma risada macabra que fez meus ossos gelarem.

O-o q-que queres tu de mim? - Perguntei com minha voz trêmula de pavor. Só então atrevi-me a virar lentamente e encarar meu algoz. Era uma figura sem rosto, de manto negro como as asas da graúna. De mãos grandes e dedos delgados, seu toque era frio como a lâmina da morte. Mais uma vez estremeci.

Durante toda a sua vida fugiste de mim. Agora não há para onde correr. Quem virá lhe ajudar, escritor? Teus gritos de clêmencia não serão mais ouvidos. - Ao fim desta frase, outra risada nefasta reverberou pelo ambiente.

- Mas q-quem é você, com mil demônios?

Senti sua mão apertar com mais força meu ombro. Embora não conseguisse ver seus olhos, senti que seu olhar sobre mim lançava-se como dardos venenosos e mortais. De súbito, ele largou - me e caminhou rapidamente para a janela. Olhando para a noite negra e fria lá fora, respondeu-me lentamente.

 - Eu sou o seu maior pesadelo. Sou tudo aquilo que temes. Eu sou o seu começo e serei seu fim. Sou o seu passo em falso, seu momento de distração, o fruto de sua preguiça... Sou aquele quem você teme ser e, no final das contas, exatamente quem você é. Eu sou você amanhã, porque você já foi como eu... Estive contigo na tua primeira redação de escola... Na primeira carta de amor arrancada desesperadamente na forma de versinhos de rimas pobres... Fui seu aliado em todas as provas de interpretação de texto onde não sabias exatamente o que dizer. Eu sou a tua ausência de luz divina... Sou seu talento em trevas. Sou o padastro de tua musa inspiradora. Eu sou...

...O Clichê! - completei num sussurro rouco. - Mas, o que você quer de mim?

- Eu quero teu texto, tua redação, teu estilo. Quero viver nas tuas histórias, alimentar-me de seus contos, chafurdar nas tuas poesias. A cada linha em que me tiveres, me tornarei mais forte, irei mais longe e semearei minha chaga. E você, ao fim de meu trabalho, será medíocre e escreverá contos para revistas de adolescentes, novelas de televisão e letras de sucessos da música popular romântica. Eu vou consumir seu poder de criação mas, em troca, lhe farei milionário. Terás, fama, fortuna e poder. Venha comigo...

- Não! Como viverei em paz com minha consciência sabendo que colaborei para um mundo mais medíocre? Que me vendi ao sistema? Que tornei me um...um... Carlos Lombardi! Não! Valha-me Deus! Prefiro morrer à míngua!

- Pois você não tem escolha - bradou O Clichê, enquanto ria e caminhava ameaçadoramente até mim.

- Não! Não! Não!!!! - gritei, tentando proteger-me com meus braços. Quando abri os olhos, estava em minha cama, e o sol raiava pela janela. Respirei, aliviado. Estava a salvo afinal. Tudo não passara de um pesadelo. Minha integridade ainda estava intacta. Mas, quando levantei-me e caminhei até o computador, notei que este estava ligado e este texto havia sido digitado. Comecei a balançar a cabeça, como se não pudesse acreditar e pus-me a recuar em direção à porta, por onde saí correndo e gritando.

Zoom out partindo do close na tela do computador, passando através do vidro da janela como em Cidadão Kane.

Vista panorâmica da cidade e lentamente dá fade to black.


The end.


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