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sábado, 3 de maio de 2014

O duelo

Por Rodrigo Amém

Têm umas palavras que a gente nem sabe que existem. Até o dia em que elas viram a coisa mais importante da sua vida. E eu nunca esqueci as palavras que mudaram a minha vida pra sempre: Esquizofrenia Hebefrênica.

Não, eu não sou esquizofrênico. Meu pai era. Mas, quando eu tinha 14 anos, eu não sabia disso. Eu achava meu pai divertido. Imprevisível. Às vezes ele era alegre demais, e minha mãe parecia que não gostava. Ficava com uma cara meio constrangida. Mas a gente adorava o pai fanfarrão, falando alto no meio da sala de estar. Às vezes, ele ficava quieto. Triste. Não falava com a gente. Se trancava no escritório. Ouvia música italiana antiga. Ópera. Às vezes, não ouvia nada. Ficava lá, sozinho. Mamãe entrava com um prato de comida, ficava um pouco. E saia com a comida do jeito que tinha entrado. Na maior parte do tempo, meu pai era um pai como tantos outros. Até o dia em que voltamos da escola e mamãe tinha ido ao mercado.

Papai nos recebeu na porta da sala, coberto de suor. Vestia um avental. Só um avental. Sorriso aberto, escancarado, numa boca marcada de batom vermelho. Cabelo em pé, sombra azul borrada nos olhos. “Crianças! Que bom que vocês chegaram!” Fabiana, minha irmã, tinha de oito anos. Laurinha, a caçula, tinha seis. Ficamos os três parados. Atônitos. A casa estava impecável. Papai devia ter trabalhado a dia inteiro em uma faxina pesada. Isso explicava porque ele tava tão suado. Porque ele estava nu e maquiado como uma drag Queen, não. Mas antes que a gente pudesse fazer qualquer pergunta, ele nos conduziu até a mesa de jantar.“Papai tem uma surpresa pra vocês”, disse sorrindo. Sobre a mesa de jantar, bem longa, estava cuidadosamente expostas todas, absolutamente todas as facas que tínhamos em casa. Todas. Alinhadas da menor para a maior. Assim, num extremo da mesa estava uma pequena faca de manteiga. No outro extremo, uma enorme faca de cozinha. Entre elas, todas as facas que meu pai conseguiu achar. Ele nos colocou sentados à mesa, ao redor daquela exposição.

Então Fabiana conseguiu verbalizar sua confusão: “Papai, o que você ta fazendo?” Ele olhou para ela sorrindo. “Foi bom o seu dia na escola, minha querida? Aprendeu muitas coisas novas? E você, meu amorzinho? Ta gostando das coleguinhas, Laurinha?” Aí ele parou a festa e olhou seco, sério, para mim. Por uns 2 segundos. E sorriu de novo: “Meu garotão vai gostar dessa surpresa que o pai preparou!” e ficou sério, sereno. “A situação não ta fácil, meu filho. A economia ta de mal a pior. A inflação tá incontrolável. A gente não têm como sustentar dois homens nessa casa. E Deus sabe que eu é que não vou sair, não é? Ahahahhaha! Mas se têm uma coisa que todo mundo diz a meu respeito é que eu sou justo! Todo mundo fala: Seu Martins é muito justo! Não é com o meu filho que eu vou deixar de ser, poxa! Então eu tive essa ideia. A gente vai ter um duelo com facas. Até a morte. Quem sobreviver, fica como chefe da família. Eu deixo você escolher sua faca primeiro. Aí a gente desce pro porão, pra não sujar nada aqui e resolve a coisa toda. Não é uma ideia genial?”

O jeito que ele olhava pra gente era tão distante do pai que a gente conhecia, que a possibilidade de ser uma brincadeira nunca nem passou pela cabeça de nenhum de nós. Era pra valer e todo mundo naquela mesa sabia disso. Fabiana começou a chorar, com medo. “Eu não quero duelar com você, pai”, parecia que eu não tinha força pra empurrar as palavras pra fora da boca. Parecia que eu não conseguia me mover. “Nananinanão. Eu disse que te daria uma chance. Não que te daria uma opção. Até porque eu já pensei bastante sobre isso. Eu penso sobre isso desde que você era pequeno. Que um dia eu teria que matar você. A natureza é assim, meu filho. É uma questão de dominância. O cão mais novo vai sempre querer tomar o lugar do cão mais velho. Olha, vamos fazer o seguinte. Escolhe qualquer uma. Só por formalidade. A gente não precisa duelar. Você pega uma faca qualquer, a gente vai pro porão. Eu corto seu pescoço. Rápido, sem dor. Quer dizer, isso se você me deixar pegar a faca maior, que é mais afiada. Fica difícil fazer corte sem dor com faca de manteiga, não acha?”

Luiza chorava baixinho, com a mão na boca. Fez xixi na roupa. Fabiana fez que ia leva-la pro quarto. Meu pai lançou um olhar ríspido e uma frase seca: “Ninguém levanta”. Eu queria argumentar que não era preciso recorrer à violência. Que eu podia simplesmente sair de casa, que eu podia trabalhar pra aumentar a renda, que eu não queria ocupar o lugar dele. Eu queria falar isso tudo, ainda que, no fundo, eu soubesse que não adiantava. O que quer que estivesse acontecendo com meu pai, ele não estava em sã consciência. Não era ele. Aquela figura maquiada, suada, nua, com o avental colado no corpo e sorrindo para mim não era meu pai. Era um demônio. Só podia ser. E eu só conseguia repetir, como se fosse um mantra: “Eu não quero duelar, pai. Eu não quero duelar...”


Então eu ouvi o barulho de vidro se quebrando. Minha mãe, que acabara de chegar, levou um choque ao ver meu pai ali, naquela situação, brandindo facas na direção dos seus filhos. A garrafa de refrigerante que ela trazia para o lanche tinha escapado de suas mãos e espatifado no chão. O barulho e a visão da minha mãe em choque deixaram meu pai atônito, congelado. Depois de alguns momentos contemplando o horror, minha mãe se refez, caminhou decidida até ele. Sem falar uma palavra, tirou-lhe a faca da mão e colocou-a sobre a mesa. Com a outra mão, agarrou o braço do meu pai e levou-o para o quarto. Lá ficaram por algum tempo. Ouvíamos murmúrios. Minha mãe sabia como falar com ele. Sempre soube. Não devia ter sido a primeira vez. Com certeza não foi a última. Alguns momentos depois, meu pai saiu de lá de paletó, cabelo arrumado, cara lavada. Uma maleta nas mãos. Quase ao mesmo tempo, o som de sirene da ambulância estacionando em frente de casa encheu a sala. Papai passou por nós de cabeça baixa, guiado por mamãe, que lhe segurava o braço. Ele murmurou algo como “Me desculpe” e saiu pela porta. Voltou algumas semanas depois, exausto, mas refeito. E mamãe me explicou o que era Esquizofrenia Hebefrênica: “É quando a pessoa se ausenta, mas o mal permanece”.

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