Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
De qualquer forma, nada é igual.
Aqui cada dia é dia de um texto diferente.
Quer sair da rotina? Fica com o Salada!

sábado, 31 de maio de 2014

Clichê

Por Rodrigo Amém


Por estas mal traçadas linhas, venho até você, caro leitor, dirigir-me humildemente. Quero falar-lhe de uma fantástica aventura que vivi ainda há pouco.

Estava eu cuidando da minha vida, captando inspirações para vencer o desafio do papel branco à minha frente, representado da fria luminosidade do meu computador. Oh, máquina insensível que tanto me torturas. Não percebes a angústia de insuflas no âmago do meu ser? Clamo por minha musa inspiradora, mas ela não me ouvirá. Estou só. Oh, destino cruel.

Eis que de repente, não mais que de repente, pela vidraça umedecida pelos pingos da chuva que outrora caíra, um vulto se faz presente.

Sentindo o coração pulsar como se fosse sair pela boca, lancei olhares sobre a janela, mas nada lá havia. Com um suspiro aliviado, voltei a mergulhar no fundo do meu eu à procura das belas palavras que escreveria para ti, quando uma gélida mão pousou sobre meu ombro.

Um arrepio percorreu minha espinha de tal forma que meu corpo ficou paralisado. Uma voz sepulcral ecoou pelo aposento, como se vinda de além-túmulo:

Desta vez não escaparás de mim. - Disse a maldita aparição e, ao final de sua sentença, disferiu uma risada macabra que fez meus ossos gelarem.

O-o q-que queres tu de mim? - Perguntei com minha voz trêmula de pavor. Só então atrevi-me a virar lentamente e encarar meu algoz. Era uma figura sem rosto, de manto negro como as asas da graúna. De mãos grandes e dedos delgados, seu toque era frio como a lâmina da morte. Mais uma vez estremeci.

Durante toda a sua vida fugiste de mim. Agora não há para onde correr. Quem virá lhe ajudar, escritor? Teus gritos de clêmencia não serão mais ouvidos. - Ao fim desta frase, outra risada nefasta reverberou pelo ambiente.

- Mas q-quem é você, com mil demônios?

Senti sua mão apertar com mais força meu ombro. Embora não conseguisse ver seus olhos, senti que seu olhar sobre mim lançava-se como dardos venenosos e mortais. De súbito, ele largou - me e caminhou rapidamente para a janela. Olhando para a noite negra e fria lá fora, respondeu-me lentamente.

 - Eu sou o seu maior pesadelo. Sou tudo aquilo que temes. Eu sou o seu começo e serei seu fim. Sou o seu passo em falso, seu momento de distração, o fruto de sua preguiça... Sou aquele quem você teme ser e, no final das contas, exatamente quem você é. Eu sou você amanhã, porque você já foi como eu... Estive contigo na tua primeira redação de escola... Na primeira carta de amor arrancada desesperadamente na forma de versinhos de rimas pobres... Fui seu aliado em todas as provas de interpretação de texto onde não sabias exatamente o que dizer. Eu sou a tua ausência de luz divina... Sou seu talento em trevas. Sou o padastro de tua musa inspiradora. Eu sou...

...O Clichê! - completei num sussurro rouco. - Mas, o que você quer de mim?

- Eu quero teu texto, tua redação, teu estilo. Quero viver nas tuas histórias, alimentar-me de seus contos, chafurdar nas tuas poesias. A cada linha em que me tiveres, me tornarei mais forte, irei mais longe e semearei minha chaga. E você, ao fim de meu trabalho, será medíocre e escreverá contos para revistas de adolescentes, novelas de televisão e letras de sucessos da música popular romântica. Eu vou consumir seu poder de criação mas, em troca, lhe farei milionário. Terás, fama, fortuna e poder. Venha comigo...

- Não! Como viverei em paz com minha consciência sabendo que colaborei para um mundo mais medíocre? Que me vendi ao sistema? Que tornei me um...um... Carlos Lombardi! Não! Valha-me Deus! Prefiro morrer à míngua!

- Pois você não tem escolha - bradou O Clichê, enquanto ria e caminhava ameaçadoramente até mim.

- Não! Não! Não!!!! - gritei, tentando proteger-me com meus braços. Quando abri os olhos, estava em minha cama, e o sol raiava pela janela. Respirei, aliviado. Estava a salvo afinal. Tudo não passara de um pesadelo. Minha integridade ainda estava intacta. Mas, quando levantei-me e caminhei até o computador, notei que este estava ligado e este texto havia sido digitado. Comecei a balançar a cabeça, como se não pudesse acreditar e pus-me a recuar em direção à porta, por onde saí correndo e gritando.

Zoom out partindo do close na tela do computador, passando através do vidro da janela como em Cidadão Kane.

Vista panorâmica da cidade e lentamente dá fade to black.


The end.


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sexta-feira, 30 de maio de 2014

Você e eu.

Por Amanda Leal 

Sinto esse frio que gela a minha alma.
Essa dor adormecida sempre acorda quando a noite cai,
Seu amor por mim resplandece nas manhãs .
A esperança me fortalece nas tardes tristes e nubladas.
Podem mudar as estações,
O tempo pode até não parar, mas a minha certeza continua:
Quero estar sempre ao seu lado.
Seu cabelo bagunçado e sua blusa preta de sempre,
Seu cheiro de suor e suas grandes mãos só me fazem respirar e transpirar o meu querer.
A atenção que me entregas e o carinho com que me recebe só aumenta o que você já sabe.
Meu coração contigo não chora.
No seu aconchego durmo noites que nunca dormi.
No seu edredom encontro o aquecer perfeito e a temperatura essencial para me acalmar.
E quando for dormir não te esqueças de mim.
E quando acordar não te esqueças de mim.
E quando me amar não te esqueças de mim.
Quero estar sempre ao seu lado.
Há ainda muito para se conquistar
E essa certeza comigo sempre está.
Eu preciso do seu amor e você do meu,
Combustível eficiente que faz a nossa vida funcionar.
E se um dia esqueceres da vida, dos sonhos, ao menos não se esqueça do amor que sentes por mim.
Eu já não posso mais me esquecer de você. 



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quinta-feira, 29 de maio de 2014

Carta Bomba

Por Bernardo Sardinha

Rio de Janeiro, 27 de maio de 2014


Nesta terça-feira, uma suspeita de bomba fechou a estação de metrô da General Osório.Uma mala que foi encontrada abandonada debaixo de um banco foi considerada suspeita pelos funcionários da concessionária. O esquadrão antibombas da policia civil foi acionado e houve caos entre os passageiros. Os policiais encontraram dentro da mala apenas uma carta de amor. Diante do conteúdo do envelope ser muito instável, a área foi evacuada e o artefato detonado.



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quarta-feira, 28 de maio de 2014

Reencontro

Por Marcela de Holanda

  Nossa! Você está...

—  Velha?

—  Não.

—  Gorda?

—  Não. Aqui. Você está aqui.

—  É. E você também.

—  Pois é. Eu venho sempre aqui. E todas as vezes eu me lembro de você. Mas nunca pensei que te encontraria aqui. De novo.

—  Foi naquele banco ali, né?

—  Sim. O último. Quando você me beijou daquele jeito eu achei que apesar de tudo ia ficar tudo bem.

—  Eu sabia que se houvesse uma despedida não seria a última. Achei que se fugisse podia dar certo.

—  E deu. Eu voltei pro banco com os sorvetes na mão e fiquei esperando um tempo, achando que talvez você tivesse ido ao banheiro e fosse voltar. O sorvete derreteu antes que eu entendesse que aquele era o fim.

—  Quer um sorvete? Dessa vez eu vou lá comprar. O seu favorito ainda é de pistache?

— É. Vai ser estranho tomar esse sorvete dez anos depois. Aqui. Com você. Mas eu aceito. Se você não se incomodar, eu prefiro ir comprar junto com você. Só para garantir.

—  Vamos sim. Posso segurar na sua mão? Ou ela já tem dona?

—  Dona? Não. Ela é minha e eu te empresto pelos velhos tempos.

— Nossa! Você sentiu isso? Parece que deu choque. Cheguei a ficar tonta.

—  Quer soltar?

—  Não. Na verdade, eu quero pedir desculpa. Não foi legal sumir daquele jeito.

—  Tudo bem. Eu acho que mereci.

—  Não. Hoje eu sei que a culpa não era sua. Você não tinha que mudar por mim. Sei que você não fazia por mal. O tempo é engraçado. Me levou a fazer com outras pessoas o mesmo que você fazia comigo. O mundo gira. Nada é. Tudo está.

—  E como você está agora?

—  Com medo.

—  De quê?

—  De você não gostar do que eu me tornei. De estragar as lembranças que eu tenho e as que eu deixei. Eu, pelo menos, fui apagando o que era ruim e guardei só os bons momentos.

—  Já faz tanto tempo que o que você lembra de mim não deve ter mais nada do que um dia eu fui. A memória inventa. Ela engana a gente o tempo todo.

—  Pode ser. Dois sorvetes de pistache, por favor.

—  Ué? Você detestava pistache. Ou foi minha memória que inventou isso?

—  Detestava. Como eu disse. Nada é. Digamos que hoje em dia pistache está o meu preferido.

—  Você acha que a gente pode ter mudado o suficiente para dar certo?

—  Acho que não vamos ter tempo de saber. Estou só de passagem pela cidade. Meu chefe prometeu me transferir de volta pra cá, mas ainda não conseguiu. Pode demorar até três anos.

—  Segura o meu sorvete. Volta lá no banco e fica sentada até que os dois derretam. Eu vou escolher hoje três datas para voltar aqui nos próximos três anos. Se em uma delas a gente se encontrar, a gente casa. Sem perguntas. E você nunca mais foge. Se a gente não se encontrar mas se esbarrar em outro lugar, outra situação, você finge que não me viu e eu vou fazer o mesmo. Olha pra lá. (Ele foge)


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terça-feira, 27 de maio de 2014

O chinelo, o cabo de vassoura e a régua

Por Rec Haddock

Janaína – Chegou o boletim, filho?

Fábio – Não, mãe. Teve um problema com a impressora da escola. Vão consertar e talvez fique pronto amanhã.

Janaína – A sua mochila ainda está com aquele rasgadinho?

Fábio – tá sim.

Janaína – Então me empresta ela, rapidinho, pra eu costurar.

Fábio – Claro. Deixa só eu ir ao banheiro.

Janaína – Com a mochila? Deixa a mochila aqui e vai ao banheiro.

Fábio – Ih, mãe. Que saco isso, hein! Tem que ser tudo do seu jeito, agora?

Janaína – Se eu não tivesse achado estranho o boletim ainda não ter vindo, neste momento, eu teria achado.

Fábio – Mãe. Não veio o boletim. Eu to te falando.

Janaína – Então abre a mochila aqui na minha frente.


Fábio Abre a mochila e a fecha rapidamente.


Janaína - Abre e deixa aberta, que eu vou achar esse maldito boletim. Agora senta.


Fábio senta e sua mãe começa a mexer na mochila do filho, jogando pastas, cadernos e livros pra todos os lados, sem sucesso. Enquanto isso, fala.


Janaína - Eu estava achando muito estranha essa atitude de não trazer mais as provas pra casa, pra eu ver. Estava ficando preocupada, achando que você estava tirando notas ruins. Depois comecei a me acostumar, sabe, filho? Achei que você simplesmente tinha esquecido que eu queria ver as suas notas. E eu fui procurar as provas no seu quarto hoje de manhã, quando você estava na escola, porque eu me preocupo com você.

Fábio – Eu esqueci mesmo.

Janaína – Só que é muito cômodo esquecer quando as notas estão a tragédia que estão, né?

Fábio – Tragédia, mãe? Eu só tirei uma nota abaixo de sete.

Janaína – E nenhuma acima de nove! Nenhuma! É assim que você se esforça, filho?


Ela acha o boletim na mochila.


Janaína - É assim que você recompensa o esforço dos seus pais pra te dar uma boa educação?

Fábio – Mas eu estudo, mãe.

Janaína – Não o suficiente.

Fábio – Deixa eu falar? Tá? Deixa eu falar? Mas eu me esforço pra caramba. Eu saí do futebol, tá, pra estudar mais. Eu não vou à casa dos meus amigos pra estudar mais tá? Eu não entro no computador durante a semana pra estudar mais. O que mais você quer de mim?

Janaína – Ô, meu filhinho querido, presta atenção no que mamãe vai te dizer, tá? Em primeiro lugar eu quero que você pare de mentir pra mim, que nem eu nem seu pai te damos esse exemplo. Tá? Em segundo lugar, eu quero que você abaixe a sua bola, porque a mãe aqui sou eu. E por último, eu quero que você coloque na sua cabeça, que na hora do vestibular, o que importa não é quem estudou mais, nem quem se esforçou mais, nem quem abriu mão de mais coisa que passa. Quem passa é quem tem a nota mais alta.

Fábio – E quem disse que eu quero fazer vestibular?

Janaína – O quê? Que ideia é essa agora?

Fábio – Eu quero ser artista. Vou virar ator!

Janaína – Ai, meu Deus do céu! É agora que eu vou pro seu lado, mortinha de Jesus!

Fábio – Ah mãe, para de drama.

Janaína – Que drama o quê? Drama é o que você vai ver quando o seu pai chegar. Ele vai colocar juízo na sua cabeça à base de chinelada.

Fábio – Tudo bem! Eu uso como memória sensorial!

Janaína – Então eu vou te dar uns bons sentimentos pra você lembrar depois, moleque!


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segunda-feira, 26 de maio de 2014

Ela é carioca... Ela é meretriz

Por Danilo Marcks

Ela tem 25 anos agora. É bonita. Muito bonita. Loira. Olhos azuis. Branca. Seios fartos. 1,70 de altura e cinturinha violão. Ela mora em uma quitinete na Barata Ribeiro, em Copacabana. Hoje em dia mora sozinha. Ela trabalha sempre de noite, às vezes de dia, mas raramente de tarde. Trabalha na Princesa Isabel, também em Copacabana. Dança a noite toda. Ela gosta da noite. Gosta do seu trabalho. Ela faz tudo. Topa tudo. Topa todas. Ela fuma de vez em quando, bebe sempre e cheira raramente. Às vezes consegue um bom cliente. Às vezes consegue mais de 300 reais numa noite. Não tem medo da morte e nem da vida. Vive como e quando pode. Vai à praia aos domingos no Posto 5, na altura da Miguel Lemos. Vai à praia pra deixar a marca do biquini. Quando não vai, tira o dia para ir à zona oeste da cidade, em Campo Grande. Pega o trem, mais uma condução, apesar de não gostar muito e compra balas e doces no trajeto da viagem. Doces e balas para levar a Nina, sua filha. Ela tem quatro anos. Nina não mora com ela. Mora com a bisavó. Foi Nina que fez com que ela mudasse de vida. Um empurrãozinho para começar na carreira. Visita à filha e volta para o batente novamente. Domingo a noite atende os clientes fixos. É no domingo que as pessoas se sentem mais sozinhas, primeiro por já ser o próprio domingo e segundo porque é nos domingos que a Natasha se sente mais solitária. Natasha, 25 anos, carioca, loira, seios fartos, mãe de Nina, garota de programa de Copacabana, posto 5.

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domingo, 25 de maio de 2014

Tempestade em dois copos

Por Halliny Lima


Gente pequena

Primeira escola

E a intenção era crescer

Gente pequena

Escola da vida

Insiste em se abster

Quanta mesquinharia

Ninharia

Falta do que fazer

Por dois copos

Uma revolução

Educação?

Não.

Sim, uma preocupação

Com o seu

É meu!!!

Avise

Sem crise

Simples 

Um gole por vez

Ao invés do arremesso na minha cara


Gente pequena...




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sábado, 24 de maio de 2014

Aquele lance de mudar de um lance pra outro,tá ligado?

Por Rodrigo Amém


Assim que acordou, Gregório avistou a rua pela janela. Chuviscos escorriam pelo vidro e um dia nublado se desenhava lá fora. Olhou para o relógio. Um quarto para as sete. Estava atrasado para a aula de História da Arte do Egito Antigo. Olhou para o próprio corpo e assustou-se. Uma estranha massa bronzeada de músculos bem definidos se apresentava no lugar onde, costumeiramente, encontrava sua barriga flácida e branquela. Imaginou que era, meramente, uma alucinação, fruto da noite mal-dormida. Logo recobraria plenamente os sentidos e despertaria. Pensou em retirar o lençol de cima das pernas com um movimento rápido. Qual não foi sua surpresa ao perceber que havia colocado força demais no movimento e acabara por rasgar o lençol.

Levantou-se depressa e olhou-se no espelho. O que era aquilo? No lugar do físico pequeno e cheio de alvas dobras cutâneas, enxergou um verdadeiro Apolo no espelho. Alto, queimado de sol, incorrigível. A não ser, talvez, pelas orelhas. Péssimas orelhas, aquelas. Inchadas, disformes. Lembravam aquele vegetal. Como é mesmo o nome? Agrião. Não. Agrião é verde, pensou sem muita certeza.

Que situação. E agora, como explicaria aquilo no clube de ciências? Uma ruptura no fluxo tempo-espaço. Sua massa corpórea sofrera uma mutação causada, provavelmente pelo... Como é o nome daquele fenômeno? Ah, sei lá, mano.

Subitamente olhou para o chão. Sentiu uma vontade incontrolável de atirar-se ao solo. Atirou-se, pois. E descobriu, assustado, que era capaz de fazer apoios. E gostava da sensação. Maneiro! Mas foi interrompido por um barulho. Alguém batia à porta. Era sua mãe, avisando que a galera do curso tinha chegado para buscá-lo.

Num ato quase involuntário, passou a chave na porta. Não poderia deixar que fosse visto daquele jeito. O que diriam? Fariam citações eruditas de físicos como Shakespeare. Opa. Eu disse Shakespeare? Mas ele nunca foi físico. Ele era, na verdade... Deu branco, mano.

Voltam a bater na porta. Sua mãe, de novo. Seus amigos estavam com ela e pediam que ele se apressasse. Resolveu inventar uma desculpa para o atraso.

- Pera aí, mermão. Fica de boa que a gente já vamos...

Gregório leva as mãos à boca. De onde teria saído aquela frase? Aquele modo de falar não era dele, definitivamente. E, no entanto, havia saído de seus lábios. Estaria possuído por algum espectro descarnado? Ou teria levado muito pé na orelha e estava zoado? Zoado?! Ó o cara, meu!

- Gregório, você está bem? Há algo errado? - perguntava um dos colegas, atrás da porta. Gregório não sabia o que fazer. Talvez devesse avisar que estava se sentindo mal, que não iria à aula, esperaria que todos saíssem e depois levaria seu pit bull para dar uns rolê e ficar de bobeira vendo as mina. Meu Deus, o que havia acontecido com ele? Que vírus teria mudado seu corpo e sua mente? Seja lá quem for esse tal de vírus, vai levar porrada! Qual que é, mermão? Vai levar um armiloque!


De comum acordo, mãe, família e amigos acharam melhor lacrar a porta. Definitivamente.


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sexta-feira, 23 de maio de 2014

Classificados

Por Amanda Leal 

Aos cuidados de Luiza:


Vendo casa completa  nos Jardins com três filhos, um marido, dois cachorros e um gato preto. 120 metros de área. Sendo uma suíte e dois banheiros sociais. Contendo uma sogra maluca, uma irmã solteirona e o resto da família interesseira do marido que aparece todo o sábado para tradicional encontro. Também estão inclusos: sócios filhos da puta que todos os dias ligam lá pra casa querendo ocupar o cargo do meu, agora, ex-marido numa empresa escrota em que ele nem ao menos merecia estar. Duas vagas de garagem bem espaçosas, mas só há um carro: o dele. Que apesar de podre de rico sempre alegou que se eu quisesse um, teria que comprar do meu próprio dinheiro. Dependências completas e quarto de empregada inabitado. Aviso: Não pense que quando você vier morar aqui terá mordomias. Acredito que será uma excelente oportunidade para você ter tudo aquilo que sempre quis. E será uma excelente oportunidade para que eu me livre de tudo que sempre me fez mal. Sol da manhã, aquecedores e Split em todos os ambientes. Condomínio caro, IPTU igualmente caro. Não aceito negociações. Porteira fechada. Não é interessante para quem quer investir. Maravilhoso negócio para quem olha de fora. 



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quinta-feira, 22 de maio de 2014

Minimizando as perdas

Por Bernardo Sardinha


Pulei na cama. Era bem tranquila, nem mole, nem dura. Só achei o lençol meio áspero, mas pelo menos estava preso de maneira bem firme na cama. Não seria um vai e vem qualquer que o tiraria. Ela ainda estava no banheiro. Se arrumando. Vocês sabem como é mulher.

Era um motel novo recém-construído no centro e ainda estava no primeiro mês de funcionamento. Esse é exatamente o tipo da novidade que eu adoro.Ar condicionado Split? Show! Não vou mais precisar me levantar para abaixar o ar.Televisão grande com vários canais de putaria, os quais não tenho coragem de assinar…A pista de dança é meio forçada… Só porque tem um globo de vidro e luz estroboscópica não transforma aquele espaço minúsculo em  pista de dança.Quero ver a banheira de hidromassagem. Assim que ela sair do banheiro vou dar uma olhadinha para ver se é realmente tão boa quanto os anúncios dizem.

O celular vibra. O dela ,não o meu. Estava tão afobada para ir ao banheiro que o esqueceu em cima do móvel.Por curiosidade eu dei uma olhada para ver quem era.Era o Wi-Fi do Smartphone dela que havia conectado na rede do motel.Sem pedir senha, sem nada. O que significa que ela já inaugurou esse lugar antes de mim. Que jeito escroto de saber que se é corno. A dúvida agora é se conto que sei de tudo assim que ela sair do banheiro, ou depois para minimizar a perda.



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quarta-feira, 21 de maio de 2014

Vizinhança

Por Marcela de Holanda

 O cenário do seu sonho foi invadido por um som estranho que parecia não pertencer àquele contexto. Uns segundos depois, seus olhos abriram. O som continuava. Uma música alta, bem alta, vinda sei lá de onde. Olhou no relógio. Eram 6 da manhã. De um domingo. Que infeliz seria capaz de ligar uma música no volume máximo numa hora dessas?

Foi ao banheiro e voltou para a cama. Fechou os olhos e tentou. Mas quem ela estava enganando? Sabia que enquanto aquele barulho insuportável continuasse, não seria capaz de dormir. Xingou mentalmente a vizinhança inteira na falta de um alvo específico. Tinha trabalhado de segunda a sábado. Domingo era seu único dia de descanso. Ela sempre tomava cuidado para não incomodar ninguém. Por que não faziam o mesmo por ela?

Acabou levantando. Investigou pela janela e viu que o som vinha de uma vila de casas na frente do seu prédio. Mas de qual delas? Esperou que algum vizinho começasse a berrar pedindo silêncio. Não era possível que fosse a única a se sentir incomodada. Ninguém se manifestou. A música continuava ainda pior. Alguém trocava a rádio de estação enlouquecidamente. Era provocação demais. Colocou um roupão e saiu com aquele cabelo de maluca mesmo. De perto, identificaria a casa e tomaria satisfação com quem quer que fosse.

Os corredores do prédio estavam desertos e a rua também. Sentiu um pouco de medo, mas seguiu em frente. Vinha da casa amarela. Tocou a campainha. Ninguém veio. Aproximou o ouvido da porta e ouviu um choro. Um choro de criança. Ninguém parecia atender os chamados dela também. A criança chamava o pai e chorava e nenhuma resposta era ouvida.

Sentiu um aperto no peito. Bateu à porta, bateu mais forte, quis arrombar. Não sabia como. Olhou em volta. Lá longe vinha um adolescente com uns 15 anos que parecia voltar do programa de sábado à noite. Ele era forte o suficiente. Foi até ele, explicou a situação e pediu ajuda. Ele não sabia bem como fazer, mas tinha visto num seriado um cara se lançando em direção a uma porta e conseguindo derrubar. Tentou três vezes até a porta abrir. Acabou ganhando uma fratura no braço.

Encontraram a criança sozinha em casa. Ela devia ter uns 5 anos. A mulher desligou o rádio que estava no chão e tentou acalmar a criança. O adolescente pediu desculpa por não ficar, mas tinha que chegar em casa antes que a mãe acordasse e a tempo de inventar uma história para a mãe levá-lo ao hospital para ver o braço.

A mulher ligou para a polícia e esperou com o seu roupão e cabelo de maluca. Esquentou um leite para a menina e fez as perguntas que foi capaz de fazer sem assustá-la. Acabaram dormindo enquanto esperavam. A polícia chegou. O pai da menina tinha saído na noite anterior e acabou preso. Ela não tinha nenhum outro parente vivo.

O processo foi lento e difícil, mas a mulher conseguiu adotar a menina. Cuidou dela sozinha. O pai sumiu no mundo depois de sair da prisão. As duas criaram o hábito de dormir ouvindo música, mas nunca alta o suficiente para ser ouvida de fora do apartamento.


A criança cresceu e, quando fez 25 anos, conseguiu um emprego numa empresa e se apaixonou pelo seu chefe, com quem casou 3 anos depois. O chefe era um homem de ótimo coração que um dia tinha sido um adolescente corajoso o suficiente para quebrar o braço arrombando a porta para socorrer uma criança desconhecida chorando.




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terça-feira, 20 de maio de 2014

Afogada

Por Rec Haddock

O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. Nós, homens, sabemos bem que somos nós o sexo frágil. Por todo o choro que contivemos não ficamos mais fortes, nem mais duros. Apenas mais ressabiados.

O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. Não pretendia chorar. Se questionou se havia alguém ali, ou se podia chorar abertamente. Eu estava ali, e podia ver a sua dor, mas ninguém nunca vê o Rec.

O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. As flores que trouxera, percebera, não eram mais jovens, como ela. Algumas estavam murchas, e todas pareciam mortas, mesmo as mais vivas delas.

O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. E por perto, percebeu, as pedras eram lisas e cinzas, como o tempo. Mais eternas do que flores, e mais bonitas do que nós. As pedras só machucam se atiradas por homens.

O espaço de encontrá-la novamente o fez voltar atrás. Apenas para finalmente perceber que ela estava presa e que não havia nada que se pudesse fazer por ela. Colocou pedras sobre ela, e, sem que se notasse, o ajudei.


O espaço de perdê-la novamente o fez seguir em frente. Girou a chave do carro, e abandonou o que havia passado. Sem remorsos, lembrou o que ela havia lhe dito: “Sofrimento se paga com sofrimento, meu amor. Pagá-lo com amor é sadismo”.


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