Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
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sábado, 29 de março de 2014

O Jantar

Por Rodrigo Amém

A sala era decorada à Luís XV. Alguns móveis - dizem - haviam pertencido ao próprio. Jantar findando em meio às pratarias, cristais e guardanapos borrados. Ele joga um olhar em direção a ela. Lembra o Neymar vendo uma brecha na defesa. Limpa a boca no guardanapo e avança em direção ao gol:
- Uma beleza, a sua casa. - comenta ele, com um sorriso obsceno.
- Obrigada. - limita-se a anfitriã. Ela é loira e tem cabelos muito presos num coque, sobre um vestido muito preto e uma pele muito branca.
Batom, ainda após a refeição, muito vermelho.
- E que belo jantar. Acho que comi mais do que podia! - continua o artilheiro.
- Nosso cozinheiro é realmente muito talentoso. Trabalhava no Palácio antes de ser contratado. Ganha mais que alguns Senadores.
- E eu devo dizer que é merecido. Que carne é essa que comemos? É sofisticado, agridoce... Uma textura incomparável. Única. Assim como a anfitriã, devo acrescentar, se me permite a ousadia... - Lá vem o sorriso de novo. E ela apenas retribui. Vai rolar, ele pensa. Novo ataque:
- Escuta, quero lhe propor algo. Estamos apenas nos conhecendo e ainda há muito sobre você que eu quero saber. Eu já sei que você é incrivelmente rica e bela. E que temos um negócio, digamos, arriscado em comum. Mas o que mais podemos falar sobre você?
- Não sei. Acho que é tudo que há para saber.
- Não, não. Vamos fazer o seguinte. Eu proponho um pacto de segredos. O que acha? É a melhor maneira de garantir nossa confiança mútua. Eu te conto um segredo meu e você me conta um segredo seu. Que tal?
- Eu não sei...
- Vamos, vai ser bom para aprofundar nossa cumplicidade, minha ... sócia. - Ao falar isso, ele pega delicadamente na mão dela sobre a mesa e a olha no fundo dos olhos. Ela sorri, envergonhada.
- Muito bem. Mas você começa - Exige ela.
- Acho justo. - diz ele, limpando a garganta. - Bem... Eu, quando era médico residente, tive este paciente, um senhor bem velho. Ele estava nos aparelhos há muitos meses. Os parentes nem iam visitá-lo mais. Era um cadáver inflando e murchando no respiradouro. Quantas pessoas eu vi morrendo nos corredores porque o velho não tinha a dignidade de morrer e ceder o lugar a quem realmente tinha chance de recuperação... Eu odiava aquilo. Um belo dia, um senhor muito rico apareceu com seu filho doente. Precisava de um transplante e o velho moribundo era o doador que ele procurava. Mas talvez o garoto não conseguisse viver tanto tempo para esperar a boa vontade do cadáver inflável. Então, quando chegou a madrugada, eu fui e desliguei tudo. Ele parou de murchar e inflar. Parecia um boneco. Mas então eu percebi que ele estava agonizando. Não era nada como eu pensava. Ele realmente estava sufocando calado e lentamente. Sabe o que é mais estranho? Eu gostei de ver. O resultado final é que o pai do garoto me pagou muito bem pelo órgão e tudo ficou certo. Desde então eu tenho estado nesse "ramo". Mas a parte que eu mais gosto, na verdade, não é da vida que eu salvo em cada transplante. Eu gosto é das eutanásias que eu tenho que fazer, vez ou outra. É isso. Acho que há, em todo mundo, um médico e um louco. Não é?
- É. Você deve ter razão. - comentou, laconicamente a loira.
- Sua vez.
- Bem, acho que tenho um segredo para contar pra você também. Sua fama, desde antes de nos conhecermos, sempre me impressionou. Por isso procurei você. Sabia que não se negaria a nos ajudar a conseguir novos órgãos. E desde que nos conhecemos, minha admiração tem aumentado. Mas há algo que eu preciso confessar, já que você foi tão honesto comigo. Eu não agencio órgãos humanos para a doação.
O médico ficou atônito e começou a olhar para todos os lados ligeira e sutilmente.
- Meu Deus, não me diga que você...
- Não, não sou da polícia. E isso não é uma armadilha. Eu realmente utilizo os órgãos que você me vende, mas para outros fins.
- Que fins?
- Bem, você sabe que há cerca de 100 pessoas no mundo que detêm mais dinheiro que os 30 países mais pobres juntos. A divisão de riquezas no planeta é muito desigual. Mas não são só os pobres que sofrem com isso. Os que estão no topo da pirâmide também. Chega um momento em que não há mais o que se fazer com tanto dinheiro. A vida fica monótona, repetitiva. Meu trabalho é arranjar novos prazeres a essas pessoas, que pagam pequenas fortunas por prazeres que seriam, no mínimo, inusitados para os reles mortais.
- O que isso tem a ver comigo?
- Bem, não há alimento que não se experimente, quando se é incontestavelmente rico. E quando já se comeu de tudo, acaba o prazer, a novidade, a emoção das reuniões gastronômicas...
- Essa não...
- Pois é, meu caro. Eu vendo os órgãos para um mercado negro de gourmets que cozinham miúdos humanos. Um fígado em bom estado pode custar 50 mil dólares a porção e render umas 4 delas. Que boi daria um lucro desses?
- Isso é inaceitável! Meu Deus, eu posso ter meus problemas éticos, mas não sou um açougueiro! Eu não posso admitir isso!
- Sabe aquele pâncreas do garoto alagoense, que iria salvar uma menina americana?
- Sim...?
- Como estava o molho?
O silêncio pairou sobre a sala e os móveis de Luís XV.


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