Por Rodrigo Amém
A sala era decorada à Luís XV. Alguns
móveis - dizem - haviam pertencido ao próprio. Jantar findando em meio às
pratarias, cristais e guardanapos borrados. Ele joga um olhar em direção a ela.
Lembra o Neymar vendo uma brecha na defesa. Limpa a boca no guardanapo e avança
em direção ao gol:
- Uma beleza, a sua casa. - comenta
ele, com um sorriso obsceno.
- Obrigada. - limita-se a anfitriã.
Ela é loira e tem cabelos muito presos num coque, sobre um vestido muito preto
e uma pele muito branca.
Batom, ainda após a refeição, muito
vermelho.
- E que belo jantar. Acho que comi
mais do que podia! - continua o artilheiro.
- Nosso cozinheiro é realmente muito
talentoso. Trabalhava no Palácio antes de ser contratado. Ganha mais que alguns
Senadores.
- E eu devo dizer que é merecido. Que
carne é essa que comemos? É sofisticado, agridoce... Uma textura incomparável.
Única. Assim como a anfitriã, devo acrescentar, se me permite a ousadia... - Lá
vem o sorriso de novo. E ela apenas retribui. Vai rolar, ele pensa. Novo
ataque:
- Escuta, quero lhe propor algo.
Estamos apenas nos conhecendo e ainda há muito sobre você que eu quero saber.
Eu já sei que você é incrivelmente rica e bela. E que temos um negócio,
digamos, arriscado em comum. Mas o que mais podemos falar sobre você?
- Não sei. Acho que é tudo que há
para saber.
- Não, não. Vamos fazer o seguinte.
Eu proponho um pacto de segredos. O que acha? É a melhor maneira de garantir
nossa confiança mútua. Eu te conto um segredo meu e você me conta um segredo
seu. Que tal?
- Eu não sei...
- Vamos, vai ser bom para aprofundar
nossa cumplicidade, minha ... sócia. - Ao falar isso, ele pega delicadamente na
mão dela sobre a mesa e a olha no fundo dos olhos. Ela sorri, envergonhada.
- Muito bem. Mas você começa - Exige
ela.
- Acho justo. - diz ele, limpando a
garganta. - Bem... Eu, quando era médico residente, tive este paciente, um
senhor bem velho. Ele estava nos aparelhos há muitos meses. Os parentes nem iam
visitá-lo mais. Era um cadáver inflando e murchando no respiradouro. Quantas
pessoas eu vi morrendo nos corredores porque o velho não tinha a dignidade de
morrer e ceder o lugar a quem realmente tinha chance de recuperação... Eu
odiava aquilo. Um belo dia, um senhor muito rico apareceu com seu filho doente.
Precisava de um transplante e o velho moribundo era o doador que ele procurava.
Mas talvez o garoto não conseguisse viver tanto tempo para esperar a boa
vontade do cadáver inflável. Então, quando chegou a madrugada, eu fui e desliguei
tudo. Ele parou de murchar e inflar. Parecia um boneco. Mas então eu percebi
que ele estava agonizando. Não era nada como eu pensava. Ele realmente estava
sufocando calado e lentamente. Sabe o que é mais estranho? Eu gostei de ver. O
resultado final é que o pai do garoto me pagou muito bem pelo órgão e tudo
ficou certo. Desde então eu tenho estado nesse "ramo". Mas a parte
que eu mais gosto, na verdade, não é da vida que eu salvo em cada transplante.
Eu gosto é das eutanásias que eu tenho que fazer, vez ou outra. É isso. Acho
que há, em todo mundo, um médico e um louco. Não é?
- É. Você deve ter razão. - comentou,
laconicamente a loira.
- Sua vez.
- Bem, acho que tenho um segredo para
contar pra você também. Sua fama, desde antes de nos conhecermos, sempre me
impressionou. Por isso procurei você. Sabia que não se negaria a nos ajudar a
conseguir novos órgãos. E desde que nos conhecemos, minha admiração tem
aumentado. Mas há algo que eu preciso confessar, já que você foi tão honesto
comigo. Eu não agencio órgãos humanos para a doação.
O médico ficou atônito e começou a
olhar para todos os lados ligeira e sutilmente.
- Meu Deus, não me diga que você...
- Não, não sou da polícia. E isso não
é uma armadilha. Eu realmente utilizo os órgãos que você me vende, mas para
outros fins.
- Que fins?
- Bem, você sabe que há cerca de 100
pessoas no mundo que detêm mais dinheiro que os 30 países mais pobres juntos. A
divisão de riquezas no planeta é muito desigual. Mas não são só os pobres que
sofrem com isso. Os que estão no topo da pirâmide também. Chega um momento em
que não há mais o que se fazer com tanto dinheiro. A vida fica monótona,
repetitiva. Meu trabalho é arranjar novos prazeres a essas pessoas, que pagam
pequenas fortunas por prazeres que seriam, no mínimo, inusitados para os reles
mortais.
- O que isso tem a ver comigo?
- Bem, não há alimento que não se
experimente, quando se é incontestavelmente rico. E quando já se comeu de tudo,
acaba o prazer, a novidade, a emoção das reuniões gastronômicas...
- Essa não...
- Pois é, meu caro. Eu vendo os
órgãos para um mercado negro de gourmets que cozinham miúdos humanos. Um fígado
em bom estado pode custar 50 mil dólares a porção e render umas 4 delas. Que
boi daria um lucro desses?
- Isso é inaceitável! Meu Deus, eu
posso ter meus problemas éticos, mas não sou um açougueiro! Eu não posso
admitir isso!
- Sabe aquele pâncreas do garoto
alagoense, que iria salvar uma menina americana?
- Sim...?
- Como estava o molho?
O silêncio pairou sobre a
sala e os móveis de Luís XV.
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