Por Rodrigo Amém
Dois maços por dia. Todo prazer tem lá seu preço. Dois maços por dia e uma gripe mal curada. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, ia acabar se lascando. Dois maços por dia, uma gripe mal curada e noites de boemia on the rocks. No começo, um pigarrinho chato. Depois uma tosse comprida e ruidosa. A garganta ardia como o diabo e ele acendia outro cigarro. Mas naquela noite ele não estava bem. Não dava para parar de tossir. As pessoas da mesa já estavam incomodadas. Não dava nem para conversar com ele ali, latindo sua tosse de cachorro velho.
Uma crise mais forte e ele foi obrigado a se levantar, trôpego, com as mãos no rosto, tentando abafar o som gutural que incomodava a todos. Um pouco de sangue começou a escorrer desta máscara de dedos que levava à face. A dor era lancinante. Derrubou algumas cadeiras e fechou-se no banheiro. Não era mais tosse. Eram urros. Mal conseguia respirar. Pensou que agora era a hora. Tossir até morrer. Um fim patético e coerente.
A crise se intensificava e ele, prostrado. Sentiu que vomitaria. Trêmulo e suando, aguardou o inevitável. Qual não foi sua surpresa quando, no momento do derradeiro tossido, sentiu uma golfada de sangue sair-lhe pela boca, junto um material que, de início, não conseguiria identificar. Parecia uma grande bexiga cinzenta de aniversário. Mas pulsava. Demorou para compreender que tinha um de seus pulmões expulso pela boca.
Com algum receio, passou a tatear o pulmão exposto. Seu conhecimento de anatomia não permitia uma análise cuidadosa, mas podia jurar pela textura do tecido que o órgão estava virado do avesso. Era possível observar as manchas de nicotina. Dois maços por dia e uma viscosidade lodosa por toda a extensão do tecido.
A questão agora exigia uma atitude. Ou saía do banheiro com o pulmão balançando por entre os dentes e provocava o repúdio e o horror de amigos e estranhos ou tentava enfiar o bicho goela a dentro com as próprias mãos.
Optou pela segunda. Mas sabia que seu frágil órgão podia não resistir aos empurrões e acabar rompendo-se. Podia ainda acabar dirigindo o pulmão rumo ao estômago, ao invés do caminho certo. Será que nenhum médico estaria no bar e prestes a usar os mictórios?
Como numa resposta vinda dos céus, a porta se abre e, por ela, adentra um homem de branco. O outro sorri aliviado, com cuidado para não acabar mordendo o pulmão de alegria. Mas, numa segunda olhada, ele percebe algo estranho. O homem de branco está sujo de sangue. Imundo. Caminha curvado, chorando, levando as mãos juntas, perto do peito. E ele pára de chorar ao se deparar com um homem que parecia trazer um pulmão na boca.
Por alguns segundos os dois se encaram atônitos. E então o homem de branco abre as mãos. Segura o próprio coração, ainda pulsando e espirrando sangue para todos os lados. O outro balbucia algo inintelegível e pastoso que deveria significar algo como "O que aconteceu com você?". O homem de branco, como se compreendesse a pergunta, responde em voz chorosa.
- Eu dei meu coração para aquela vagabunda... Como ela pode me desprezar assim...? - E caiu em prantos.
Diante do tocante quadro, o outro emitiu um enternecido suspiro. E o pulmão em sua boca encheu-se como um balão.
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Imaginei o final: ele morrendo sufocado.
ResponderExcluirAo menos o final de minha mente. Rs
Tipo de leitura que prende. Adorei.
Fatos reais, fantasias, dinâmica...
Parabéns!!
Sucesso!
Carla P