Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
De qualquer forma, nada é igual.
Aqui cada dia é dia de um texto diferente.
Quer sair da rotina? Fica com o Salada!

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Letras brancas

 Por Bernardo Sardinha

  Quando acabou, deu um passo para trás e admirou sua caligrafia: 
- "Leticia" - leu em voz alta o que estava escrito no asfalto em grandes letras brancas. Antes de passar para a próxima palavra, por cautela, olhou a sua volta. Ninguém na rua, ninguém nas janelas, e principalmente, ninguém no quinto andar do prédio n.º87. Naquela altura da madrugada a rua Bolívar estava tão deserta que parecia uma cidade fantasma e, sentindo que sairia impune continuou.

Ia escrever "filha da puta", mas achou vulgar demais. Optou então por "vadia" e assim desenhou um grande e belo "V" e depois um "A". Percebeu que tinha esquecido de colocar um pronome,o que seria a morte, então colocou um "a". 

"Leticia a vadia" - pensou em voz alta e sentiu que soava como um título. Como queria ataca-la  melhor espremeu um "s" e um "u" formando toscamente um "sua". Gramaticalmente correto, agora podia terminar seu trabalho. Mas assim, do nada, decidiu chama-la de vagabunda, e aproveitou o "VA", já lindamente desenhado no asfalto, e escreveu até a tinta acabar. Persistente, conseguiu ainda espremer daquela latinha de Colorgil branca um pouco mais de tinta para colocar o acento no nome daquela filha da puta. Afinal, não era ela que vivia tirando pontos de todos por causa dos acentos? Não podia faltar isso.

"- Colocou o acento no lugar errado." - disse uma vozinha tímida que continuou - "É Letícia, e não Léticia." e você esqueceu do "n" em vagabunda." Olhou para trás e uma senhorinha estava no parapeito da janela do 1º andar do prédio n.º 87 estava com os olhos bem arregalados observando-o. "Vai ter que ficar assim agora. A tinta acabou." - disse sem querer ser arrogante, mas sendo. Antes de fechar as janelas ela disse: - "Acho que tenho um pouco aqui. Espere aí". Quando pegou das mãos da senhora a tinta para corrigir, ainda ouviu dela: "Tinha que ter escrito filha da puta. É isso que ela é!" - ele riu alto e concordou.

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quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Tradição: respeito ou evolução?

Por Marcela de Hollanda

Falo hoje na primeira pessoa do singular para não embutir meu ponto de vista em nenhuma forma. Há alguns anos, ainda no Ensino Médio, um professor de geografia olhou para mim e disse que eu tinha cara de feminista. Do nada. Eu não tinha emitido nenhuma opinião, não estava sendo discutido nenhum assunto relacionado. Ele olhou para mim, sentiu e disse. Eu não compreendi, nem concordei. Não identificava em mim nenhuma necessidade de defender essa bandeira, nem tinha consciência se pensava ou não sobre isso. Quando nasci, as mulheres já tinham conquistado direitos que a minha geração sequer consegue conceber direito que algum dia tivessem sido negados. Demorou um tempo para eu começar a perceber que o que antes era uma diferença legalmente instituída, deixou ainda tantos resquícios sob o nome de Costume ou Tradição. Não digo aqui que eles devem ser todos abandonados. Longe disso. Mas é sempre bom lembrar que eles não são verdades absolutas, não são os mesmos desde que o mundo é mundo. Os antepassados que os criaram e a quem podemos achar que devemos reverenciar respeitando seus legados culturais, um dia também quebraram a corrente. E, por isso, as tradições podem e devem ser constantemente questionadas e, se necessário, mudadas. Não é um desrespeito, é um respeito. Respeito pela necessidade de constante evolução do ser humano. Respeito pelos que tiveram coragem antes para transformar as coisas e tornar possível o mundo de hoje. Quem tornará possível o mundo de amanhã? Os que agora aqui estão. Já foi o tempo em que as crianças eram criadas na base do “Isso é assim porque é assim.” E bendita seja a necessidade de argumentar. Ela está aí para nos ajudar a questionar, refletir. A cabeça não está aí para adornar o pescoço. Isso não se limita às questões relacionadas à igualdade de direitos entre os sexos, mas passa por elas. Não se limita à questão das tradições, mas passa por ela. Podemos perder tanta coisa boa simplesmente por achar que as coisas só podem ser como sempre foram. Não acho que preciso citar aqui exemplos. Sei que quem lê é capaz de identificá-los sozinho e terá maior ganho fazendo isso. Ao professor de geografia eu digo: não sei se feminista é uma palavra que pode ser aplicada à minha pessoa, mas conformista também não.


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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Lei nº 1

Por Rec Haddock



Lei nº1, de 06 de Janeiro de 1988
O Presidente da Casa da Árvore diz que o Conselho dos Mártires determina e eu aprovo a seguinte lei:

Título I
Capítulo Único
Quem Somos
Art. 1º A Casa da Árvore é a residência imperial construída sobre os galhos mais grossos do velho pessegueiro da Rua Azul, no Distrito 7.
Art. 2º Têm acesso garantido somente o Presidente e o Conselho dos Mártires. Todos os outros têm que responder as perguntas do antigo código secreto para provar lealdade e receber um visto provisório diário.
Art. 3º Toda e qualquer comunicação sobre a nossa sociedade, fora da residência imperial, deve ser feita em Código Drageo. Não são permitidas comunicações escritas, nem mesmo codificadas.

Título II
Organização dos Membros
Capítulo I
O Presidente
Art. 4º O Presidente é, por direito, o Membro com maior tempo de Casa que tenha provado valor em campo, executando Ato Heroico.
Art. 5º O Presidente tem o poder de mandar e desmandar, e a galera tem que obedecer, senão a cobra fuma mesmo.

Capítulo II
Conselho dos Mártires
Art. 6º O Conselho dos Mártires é composto pelos membros da Casa que tenham provado valor em campo, executando Ato Heroico.
Art. 7º O Ato Heroico deve ser reconhecido como tal pelos outros membros do Conselho.
Art. 8º O Conselho dos Mártires pode depor o Presidente em uma única situação. Se o Presidente virar um babaca, ele será expulso da Casa, e só poderá voltar como Membro do Conselho, com o tempo de casa zerado, e só se pedir desculpas muito bem pedidas, de joelhos, na frente de todo mundo, incluindo pelo menos duas garotas bonitas desconhecidas, caracterizando novo Ato Heroico.

Título III
O Segredo
Capítulo Único
Fica Quieto!
Art. 9º Se você vazar esse documento, o Conselho vai sumir com você e te transformar em um Mártir sem direito a cadeira no Conselho.

Título IV
As Disposições Finais
Art. 10 Todos os procedimentos e definições que os novos membros têm que saber, estão explicados no mural da Parede Sul. Se você puder encontra-la, saberá como engrossar nossas fileiras. Mas pense bem. Cuidado com o Presidente. O poder costuma subir à cabeça, e ele pode dar bastante trabalho antes de ser deposto.
Cidade de Fogo, 06 de Janeiro de 1988; 19º presidente da Casa da Árvore.

REC HADDOCK



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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Deu

Por Danilo Marcks


Deu saudade de você

Deu saudade de te ter

De sentir você um pouquinho

Devagarzinho, mas deu


Deu saudade de ter você

Deu saudade de saber

Deu saudade de ti querer

Deu saudade de saber de você

Bate devagar, quase parando

Bate devagar, meio cansando

Vou tentar me desligar

Vou tentar não mais pensar, mas...

Deu saudade de você

Deu saudade de querer

De sentir   você do meu lado

Dos torpedos, dos beijos roubados

De saudade de querer

Das viagens, da “felicidade”

Dos seus olhos, seus lados e lábios

Deu saudade de você

Deu você nessa saudade


Deu saudade de você

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domingo, 27 de outubro de 2013

Guarda-chuva fechado

Por Halliny Lima

Chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...
Chuuuuuuuuuuu...
Tili, Tili, Tili, Tili...
Vruuuuuuuumm...
Tututututututu...
O céu ta caindo em pedras
Igual aquele drink azul...uma vez eu bebi um desses na boate... Curaçau.
São Pedro preparou o drink do céu e ta jogando na minha telha.
Caiu tanta água que abriu uma vala
Abriram-se dois mundos 
Tibum
Da água do galão
Tibum 
No sofá da sala
E o escuro, amigo 
Nos ouve
Estou como Charles
Ray
Guiado pelo toc toc do cavalo
Cri cri do grilo
Os olhos dele viam a árvore de garrafas coloridas desbotar
Sensações
Os olhos pesam e a mente quer dormir
Mas...

Inundada


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sábado, 26 de outubro de 2013

Sujos e malcheirosos

Por Rodrigo Amém


Era uma vez um mendigo roto, sujo e malcheiroso. Pois este mendigo tinha um cão sarnento, sujo e malcheiroso. Eles moravam num beco, úmido, sujo e malcheiroso, no final de uma rua escura, suja e malcheirosa. 

Por essa rua escura, suja e malcheirosa, passavam muitas pessoas assustadas, sujas e malcheirosas. Todas tinham medo de passar pelo beco úmido, sujo e malcheiroso, porque sabiam que ali morava um assassino sanguinário, sujo e malcheiroso. Pois todas as manhãs, os garis magricelas, sujos e malcheirosos retiravam do latão de lixo enferrujado, sujo e malcheiroso do beco úmido, sujo e malcheiroso, pedaços de cadáveres retalhados, sujos e malcheirosos. Com certeza, tratavam-se de vítimas do assassino sanguinário, sujo e malcheiroso que habitava naquele beco úmido, sujo e malcheiroso. Ele as roubava e esquartejava, sem piedade. Deixava os restos decompostos, sujos e malcheirosos dentro do lixão enferrujado, sujo e malcheiroso. 

Mas num dia ensolarado, sujo e malcheiroso, vários policiais obesos, sujos e malcheirosos invadiram o beco úmido, sujo e malcheiroso a procura do assassino sanguinário, sujo e malcheiroso. Encontrara o mendigo roto, sujo e malcheiroso e seu cão, sarnento, sujo e malcheiroso. Com seus cacetetes compridos, sujos e malcheirosos, açoitaram o mendigo roto, sujo e malcheiroso e seu cão sarnento, sujo e malcheiroso para dentro de um camburão apertado, sujo e malcheiroso. Então os policiais obesos, sujos e malcheirosos saíram dali rindo. Vitoriosos, sujos e malcheirosos. 

Nem viram quando uma limusine bela, suja e malcheirosa estacionou no beco úmido, sujo e malcheiroso e um motorista forte, sujo e malcheiroso desceu carregando um saco plástico, sujo e malcheiroso e atirou o seu conteúdo dentro do latão enferrujado, sujo e malcheiroso. Pedaços de cadáveres decompostos, sujos e malcheirosos. 

Na parte de trás da limusine bela, suja e malcheirosa, o assassino sanguinário, sujo e malcheiroso sorria enquanto falava em seu celular digital, sujo e malcheiroso com patrões que, provavelmente, jamais conhecerá nem pelo cheiro.

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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Amanhã sem demora

Por Amanda Leal

A vida é como uma brisinha que vai e passa
Sem demora e nos deixa sem graça
Nos surpreende a cada instante
Nos prova, move, cansa
Hoje estamos aqui,
Amanhã já não se sabe
A única certeza é que com Ele quero estar
Tudo parece ser  tão breve
Mesmo que dure uma eternidade
De cada um e cada hora,
O tempo só Deus sabe
Como areia molhada que bate a onda
Nossos dias vão e vêm
Não quero perder um só do meu tempo
Tudo é um aprendizado
Frieza, carinho, tristeza
Isso tudo serve pra que eu entenda meu chamado
A única certeza é que com Ele quero estar
Vento doce, forte impacto
Dias quentes, frias noites
Tudo parece ser tão breve
Mesmo que dure uma eternidade
Medo qualquer um sente
Mas se vem de Deus esse abraço
Vá em paz meu amigo
Segue o seu passo.

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terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sinais Vitais

Por Marcela de Hollanda

Amar é natural como respirar
Ainda que, às vezes, o ar falte por alguns segundos
Que seja difícil inspirar bem fundo e se sentir pleno
Que possa haver obstruções no caminho
Que tenha que ser com a ajuda de aparelhos
O ar sempre acaba entrando e o amor também
Amar é fundamental como respirar
Amar é indispensável como respirar
Com ou sem qualidade, todo mundo respira, todo mundo ama
Para estar vivo, não basta estar respirando
Tem que estar amando. 

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Complexo onírico

Por Rec Haddock

 O corpo não cabia na mala. Não importa o quanto eu esquartejasse, sempre sobrava uma parte. Tentara até me desfazer das partes menores, mas era impressionante o tamanho que o intestino podia ter.
  Desta vez sobrara a cabeça.
  Não sei se era o cansaço. Não sei se era o desespero. Aquilo não devia acontecer.
  - Desse jeito você não vai a lugar nenhum.
  A boca se mexia.
   - Não quero ir a nenhum lugar, quero que você vá.
  A minha boca, não.
 O momento surreal, pelo menos para mim, passou despercebido. O fato da cabeça ter se apiedado da minha figura e começado a dar sugestões de como eu poderia me livrar daquela confusão não chamou a minha atenção como deveria.
 - Você tem que ter alguém que possa te ajudar. Não é possível.
 - Alguma loja tem que vender uma mala maior do que essa.
 - Tem que existir um liquidificador em algum lugar por aqui.
Eu continuava tentando rearranjar o corpo na mala quando me dei conta de que a cabeça deveria saber se tinha um liquidificador por ali. A casa era dela.
 - A casa não é minha. Eu estava aqui assaltando a casa. De repente, um cara entrou e me arrebentou todo. Foi você?

 E as dores no meu corpo começaram a fazer sentido. A cabeça era minha, afinal.


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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

É quase

Por Danilo Marcks


É quase que uma semana
É quase que uma intolerância
É quase que uma criança
É quase que uma vingança

É como um beijo sem boca
É como se um ‘tira a roupa’
É como a sua inteligência
É como a nossa indecência

É quase que um minuto
É quase que um segundo
É como quase todo mundo
Que se exprime lá no fundo

É quase levantar bandeira
É quase que sair do mapa
É quase que uma cilada
É apostar tudo numa só jogada

É como ser quase o amante
É como ser o ignorante
É como ver você dormindo

É como medir o que eu sinto


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domingo, 20 de outubro de 2013

Sirene da polícia

Por Halliny Lima

Eram cinco e quinze da tarde
E nossa expectativa junto ao meu papel de guarda
O pai tal qual
Guarda na frente do portão
Meu mundo desmoronou quando vi meu pequeno fora dos meus braços
Novamente ela errou
Caiu no discurso 
Ele, escuso
Confuso como sempre
Saiu como se fosse um troféu que carregasse
E era meu filho
Nao uma disputa
Respiração ofegante
Na rua, driblando os carros
Avante
E gritou
Vagabundo
Idiota
Com o pequeno lírio do campo nos braços
Pequeno o meu lírio
Menor ainda a razão daquele 
Vexame 
Reclame
Seu mundo acabou


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sábado, 19 de outubro de 2013

A incrível fábula do literalmente

Por Rodrigo Amém

Dois maços por dia. Todo prazer tem lá seu preço. Dois maços por dia e uma gripe mal curada. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, ia acabar se lascando. Dois maços por dia, uma gripe mal curada e noites de boemia on the rocks. No começo, um pigarrinho chato. Depois uma tosse comprida e ruidosa. A garganta ardia como o diabo e ele acendia outro cigarro. Mas naquela noite ele não estava bem. Não dava para parar de tossir. As pessoas da mesa já estavam incomodadas. Não dava nem para conversar com ele ali, latindo sua tosse de cachorro velho.

Uma crise mais forte e ele foi obrigado a se levantar, trôpego, com as mãos no rosto, tentando abafar o som gutural que incomodava a todos. Um pouco de sangue começou a escorrer desta máscara de dedos que levava à face. A dor era lancinante. Derrubou algumas cadeiras e fechou-se no banheiro. Não era mais tosse. Eram urros. Mal conseguia respirar. Pensou que agora era a hora. Tossir até morrer. Um fim patético e coerente.

A crise se intensificava e ele, prostrado. Sentiu que vomitaria. Trêmulo e suando, aguardou o inevitável. Qual não foi sua surpresa quando, no momento do derradeiro tossido, sentiu uma golfada de sangue sair-lhe pela boca, junto um material que, de início, não conseguiria identificar. Parecia uma grande bexiga cinzenta de aniversário. Mas pulsava. Demorou para compreender que tinha um de seus pulmões expulso pela boca.

Com algum receio, passou a tatear o pulmão exposto. Seu conhecimento de anatomia não permitia uma análise cuidadosa, mas podia jurar pela textura do tecido que o órgão estava virado do avesso. Era possível observar as manchas de nicotina. Dois maços por dia e uma viscosidade lodosa por toda a extensão do tecido.

A questão agora exigia uma atitude. Ou saía do banheiro com o pulmão balançando por entre os dentes e provocava o repúdio e o horror de amigos e estranhos ou tentava enfiar o bicho goela a dentro com as próprias mãos. 

Optou pela segunda. Mas sabia que seu frágil órgão podia não resistir aos empurrões e acabar rompendo-se. Podia ainda acabar dirigindo o pulmão rumo ao estômago, ao invés do caminho certo. Será que nenhum médico estaria no bar e prestes a usar os mictórios?

Como numa resposta vinda dos céus, a porta se abre e, por ela, adentra um homem de branco. O outro sorri aliviado, com cuidado para não acabar mordendo o pulmão de alegria. Mas, numa segunda olhada, ele percebe algo estranho. O homem de branco está sujo de sangue. Imundo. Caminha curvado, chorando, levando as mãos juntas, perto do peito. E ele pára de chorar ao se deparar com um homem que parecia trazer um pulmão na boca.

Por alguns segundos os dois se encaram atônitos. E então o homem de branco abre as mãos. Segura o próprio coração, ainda pulsando e espirrando sangue para todos os lados. O outro balbucia algo inintelegível e pastoso que deveria significar algo como "O que aconteceu com você?". O homem de branco, como se compreendesse a pergunta, responde em voz chorosa.

- Eu dei meu coração para aquela vagabunda... Como ela pode me desprezar assim...? - E caiu em prantos.

Diante do tocante quadro, o outro emitiu um enternecido suspiro. E o pulmão em sua boca encheu-se como um balão.


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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Estoque

Por Amanda Leal

Fim de tarde. Dia de chuva.

Oi?
No que posso ajudar?
Vocês vendem amor?
Depende do tipo.
Tem amor de novela?
Hum, esse está em falta. Mas se você quiser tem amor romance. É mais literário, menos dramático, só que é mais intenso. Tá saindo por noventa e cinco reais.
Ah, OK. Vou levar.
Atenção tá pra quanto?
Mil e duzentos.
Nossa, mais caro que amor?
É, independe de amor, daí sai mais caro.
E vocês dividem esse valor?
Acima de dois mil, somente.
Bom, então vou ter que levar mais alguma coisa pra inteirar. Compreensão tá muito caro também?
Na verdade, nós não trabalhamos com compreensão, senhora.
Tá difícil encontrar compreensão por ai. Acho que não estão fabricando mais.
Isso eu não sei te informar, senhora.
Se o carinho ali da prateleira é cento e vinte e cinco e ser ouvido é duzentos, estamos chegando perto.
Ainda estamos em mil seiscentos e vinte. Então, senhora falta ainda trezentos e oitenta.
Deixa eu pensar aqui. E vocês entregam em casa?
Uhum. Sai a cento e trinta o frete.
Ué, mas eu vi na internet que o frete era grátis.
Bom, se você comprar pelo site é sim. Mas também corre o risco de você levar amor que não é amor, atenção que não é atenção, falta de carinho e orelhas ao invés de ouvidos.
Ahhh, mas se é mais barato.
O barato sai caro, minha senhora.
Tá bom. Então, eu pago o frete.
Será satisfação garantida. É muita coisa para a senhora carregar sozinha.
Aí meu querido, eu concordo. É muita coisa para eu carregar sozinha. Mas aí teria que ter alguém pra dividir isso comigo. De que adianta tantos sentimentos sem ter alguém pra dividir?
A senhora pode guardar para o caso desse alguém aparecer.
To evitando guardar coisas. Na verdade, eu tava é arrumando a casa e de repente me dei conta de que faltava tudo isso para a casa estar completa. Para eu me sentir realizada. Mas não vai adiantar se não tenho onde guardar. Vai apenas ocupar espaço. E eu sei que vou me frustrar. Faz seguinte, suspende.
Suspender?
Sim. Primeiro eu vou ver se realmente preciso disso. Se eu realmente precisar... Decidi, não vou comprar. Vou é arrumar alguém disposto a me presentear.
OK, senhora. Boa tarde. Até a próxima.
Boa tarde, querido. Até nunca mais.

A moça pega o guarda- chuva, abre e sai da loja. O rapaz se senta e olha pelo vidro da loja as pessoas que passam. Sentimentos cheios de poeira continuam nas prateleiras do lugar. Ninguém entra. 

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Em copa

Por Bernardo Sardinha

          
               Estranhando o movimento, tirou os fones de ouvido e se juntou aos curiosos. As poucas testemunhas estavam em um pé sujo tentando da sua maneira consolá-lo, que de tanto chorar ficou rouco. Os sinos da Igreja da Ressurreição na Francisco Otaviano badalaram e já se podia escutar ao longe a sirene ziguezagueando entre o trânsito. Debaixo do ônibus sai alguém e declara: - Ainda está vivo. E todos se benzeram.


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terça-feira, 15 de outubro de 2013

Pai Modelo

Por Marcela de Hollanda

 - Pai, quando eu crescer, eu quero ser igual a você.
- Sério, filho? Que legal ouvir isso. Quer dizer que você quer ser assim alto e fortão?
- Não, pai. Eu já alcanço tudo o que eu preciso.
- Então você quer ser um advogado de sucesso.
- Não, pai. Eu quero ser músico ou astronauta.
- Ah... Então você quer ser igual ao papai como?
- Eu quero ser um cara bom como você.
- Você me acha um cara bom?
- O melhor.
- Não sou o melhor não, filho. Mas eu me esforço.
- Eu sei, Eu me lembro daquele dia que um menino chegou perto de você pedindo uma moedinha e você mandou ele tomar banho. Ele nem era nada seu e mesmo assim você ensinou que a higiene era mais importante do que o dinheiro.
- É....
- E teve também aquele dia de manhã que o outro menino deixou a bala no retrovisor e você foi embora quando o sinal abriu sem devolver. Pra ele não comer bala antes do almoço.

- Filho... É.... Eu não sei nem o que dizer.... É.... Quando eu crescer, eu quero ser igual a você.


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Primeira Batida

Por Rec Haddock






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 EXT. CALÇADA DO CENTRO DO RIO DE JANEIRO. FINAL DA TARDE.

MINUTO está andando em uma calçada, atulhada de pessoas de toda a sorte. Os sortudos andam acompanhados de histórias. Os azarados andam acompanhados por notícias, de TV e Jornal. Minuto repara que todos andam acompanhados, no entanto. Menos ele.
                                                                                   
                                                                                                           CORTA PARA:

INT. ESCRITÓRIO DE MILÊNIA. FINAL DA TARDE.

MILÊNIA está sozinha, sentada em sua poltrona confortável, de frente para a sua grande janela panorâmica, que a chama.Atrás de si, todos os objetos de seu escritório começam a helicoidar, apesar de todo o peso que têm, que a prende por lá. A janela se abre no centésimo primeiro andar. Milênia pula.
(MORE)




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domingo, 13 de outubro de 2013

“Melancolia”, eu quero uma pra viver!

Por Danilo Marcks


            Freud, o pai da psicanálise definiu em um dos seus livros, que a melancolia é um estado emocional semelhante ao processo de luto, mas não há a perda que o caracteriza. Ela pode ocorrer sem haver uma causa definida. Já o grego Hipócrates, definiu a melancolia como a “bílis negra”, um dos quatro humores corporais. Para ele, o planeta Saturno exercia influência no humor do indivíduo e levava o baço a expelir bílis negra, causando a melancolia.
   
  Na Psiquiatria, a melancolia é uma síndrome mental que se caracteriza pela sensação de impotência, inutilidade, pensamentos negativos, dificuldade de concentração, falta de apetite, ansiedade, insônia e outras tantas coisas mais. Já no Romantismo, a melancolia era um estado emocional apreciado, pois representava uma experiência que enriquecia a alma. Por isso, diversos artistas famosos da época romancista, foram e eram definidos como melancólicos.

               Temos que saber diferenciar melancolia de tristeza ou do temor que é a depressão. Por muitos anos, pensei que meu jeito triste e introvertido fosse fruto de uma depressão profunda. Pois, felizmente, não é. Ah, e melancolia não é um sentimento de nostalgia. Não! Não podemos confundir. Nostalgia é saudade dos momentos bons, que sempre que possível devem ser lembrados e relembrados. Melancolia é quase um estilo de vida.  Uma beleza criadora. É um jeito peculiar de ver o mundo e recriá-lo. Claro, que com as suas devidas ressalvas, para não cair em algo patológico.
    Melancolia nos faz, ao menos no meu caso , ver a realidade de uma outra forma. Algumas mais realistas, outras mais cruéis, outras mais românticas. Esta última, é o meu caso. Comparo melancolia com romance. Com aquele que é romântico ao extremo.
    Melancolia tem um ar especial, tem olhos especiais, tem algo mais inexplicável. Os artistas são muito melancólicos. Não são tristes.  São sensíveis. Tristeza é um sentimento muito comum. Todo ser humano passa por ela em algum momento de sua vida.
     Artistas são mais raros, menos rasos. A melancolia é feita daquela falta que nos faz. Ou que nos traz. Da chuva que não vem ou vem, e cai. São olhos de chuva. Caio Fernando Abreu, pra mim, a definiu perfeitamente: “Ela é a sensibilidade de alguém que não entende o que veio fazer nessa vida, mas vive”. É exatamente isso! há quem abomine a melancolia: Seja feliz! Seja alegre! Pula! Grita!  Ama! Se joga! Ou seria um “Se boicota...”

    Não levanto a bandeira do “Seja triste”, mas tente ser e sentir aquilo que você é e está naquele exato momento. Neste aqui agora. Sem forçar a nada. Dias tristes demais enjoam. Felizes demais, sempre perdem a devida graça. Melancolia fica ali no meio termo. No morno. Nem frio e nem quente. Às vezes uma filosofia de vida. Uma ideologia? Ou apenas um dia qualquer. Apenas um dia melancólico pra poder viver.



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