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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Prefácio aos novos dias

Por Rec Haddock

Luís Roberto fazia parte de um grupo de 7 amigos que se reunia toda semana para contar histórias. Religiosamente. E digo religiosamente porque me disseram que era uma religião, mesmo, para eles. Nenhum acreditava em Deus, e nenhum queria ficar sozinho no mundo, então se reuniam toda semana para contar histórias.
Não falavam das suas vidas, de modo que não demonstravam preferências políticas, ou coisas assim, que poderiam fazer com que eles rompessem ligações. Dos outros conheciam apenas o rosto, o nome e as histórias.
Aquele encontro caíra no dia do Réveillon, e era o dia de Luís Roberto falar. E pelo que me disse, assim contou:
"Tudo estava tranquilo pelos lados de lá. Jonas era casado com uma mulher supimpa de corpo e mente, seus filhos não davam problemas demais, seu carro era novo, seu emprego não lhe custava muitos esforços e pagava acima da média, sua cerveja estava gelada e o Saia Justa estava pra começar.
"Ele tinha, por bastante tempo, – não admitia - um pouco de vergonha de gostar deste programa. Mas o Du Moscovis e o Chico Sá começaram a fazer parte da equipe de apresentadores, e aí ficou fácil de assumir pros amigos que assistia de vez em quando. Se o Chico Sá, que fala aquelas coisas de beber endométrio, pode fazer, ele podia ver sem comprometer a masculinidade.
"Naquela tarde, quem apresentava era o da raquete. Jonas não se achava um cara violento, mas se identificava com aquela brutalidade toda. Tudo o que o distanciava daquele cara era que toda a sua brutalidade estava reprimida.
"A garrafa de cerveja estava na metade. Miriam, sua mulher, lhe trouxe outra e disse que ia levar as crianças para uma peça infantil. Melhor assim. Teria mais tempo para si. Deu até um dinheiro para que a mulher e os filhos fossem de táxi, e não de ônibus.
"Ele terminou as duas cervejas quando acabou o programa. Jogou as garrafas na Mildred – nome que a sua esposa dera a lixeira da cozinha. Ele sempre achara extremamente estúpida aquela mania da Miriam de dar nomes pras coisas. Ele se sentia ofendido até. Tinha a sensação de que ela nomeava as coisas pra não se sentir sozinha, mas ele sempre estava lá. Não tinha motivo pra essas sandices.
"Com esse pensamento na cabeça pegou uma Playboy e foi ao banheiro, aproveitar que estava sozinho em casa. Quando chegou na porta do cômodo, o viu e lembrou-se: Césão estava pintando o seu banheiro. Aquele cara tinha 1,54m e era albino. Uma figura estranhíssima. As paredes que pintava pareciam murais de Mark Rothko. Parecia que tinha cheirado cocaína o tempo todo: piscava a rodo, meio que tremia, seus olhos estavam sempre mais abertos que o necessário e fazia contorções estranhas com a coluna, sem motivo aparente.
"Ele ficou um tempo observando Césão, que parecia em transe, pintando aquele banheiro. O cara fazia arte, mesmo. Seu banheiro ia valer uma fortuna, um dia.
"- Ei. Césão. Você já pensou em pintar quadros?
"- Já sim, seu Jonas. Eu pinto, na verdade, mas o mercado é bem complicado, sabe? Os quadros que pinto não vendem não.
"Jonas não entendia como podia aquilo. O cara era um gênio. Tanta gente medíocre fazendo milhões com pretensa arte – diga o que quiser, mas Jonas nunca concordaria que um mictório é arte – e ele pintando banheiros.
"- Essa playboy aí é boa, seu Jonas?
"- Não vi ainda não.
"- Quando o senhor terminar, posso dar uma olhada?
"- Precisa esperar não. Não quer ver agora?
"Jonas abriu a revista e ficou analisando as fotos com Césão. A mulher era boa. Césão não parava de se contorcer ao lado de Jonas. Fazia um negócio com as mãos, como se estivesse passando uma moeda entre os dedos, mas ali só tinha vontade. O homem era um poço de vontade reprimida.
"Jonas já não olhava mais pra Playboy.
"Césão não olhava para Jonas.
"Se ele quisesse que alguma coisa acontecesse, não haveria momento mais propício. Como ele poderia fazer para pegar o albininho sem causar furor? Talvez um beijo roubado à força?
"Mas ele queria se relacionar com Césão? Que palhaçada era essa agora? Ele tinha mulher, porra. E gostosa pra caralho. Malhava pra cacete, toda durinha e ele de olho no albininho? Ele era macho!
"Ia se controlar. Ia se controlar que nem quando andava na rua e tinha vontade de dar uma porrada em uma velhinha qualquer que atravessava seu caminho. Tinha essa vontade uma vez por semana, mas o soco nunca tinha chegado. Então ele era mais que capaz de conter aquela vontade.
"Fechou a Playboy.
"- Aí, seu merda! Tá achando que vai ficar vendo sacanagem no horário de trabalho? Vai pegando o pincel.
"- Olha só seu Jonas. Eu gosto bastante do senhor, mas não vou ficar aturando desaforo não, que não sou pago pra isso. Você que abriu a revista! Tá maluco?
"Jonas não esperava por aquilo. Césão além de talentoso era durão? Aquele tamanho, aquela pele e aqueles tiques deviam fazer ele se deixar dominar.
"- To de sacanagem, chefe. Que isso. Toma a revista aí. Tira meia hora. Depois você volta a pintar.
"Saiu do banheiro. Césão fechou a porta, e Jonas ficou pensando se devia entrar e surpreender o pintor. Ele entendeu, naquele momento, que mais cedo ou mais tarde ia ceder à tentação. Que fosse logo então.
"Deu meia volta, colocou a mão na maçaneta e hesitou.
 Luís deixou a mão de Jonas na maçaneta. Parou de contar a história. Choveram protestos dos outros seis, mas Roberto estava irredutível.
"Nesse momento, Jonas tinha dois caminhos pela frente. Poderia ceder a sua tentação e mudar a sua vida ou continuar a vida que devia ter. Mas o Jonas não existe. Quem existe sou eu, Luís. Eu não tive a coragem de me arriscar e mudar a minha vida até agora".
Luís nunca mais voltou aos encontros, e os sete viraram seis por um tempo. O que cabalisticamente era inaceitável. Se ele não tivesse saído, eu, Rec, não teria entrado. De qualquer forma, ele disse mais uma coisa antes de ir embora, me contaram:
“- Esse ano não vou contar histórias. Vou vivê-las. Eu desejo que todos vocês abram as suas portas por conta própria”.


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