Luís
Roberto fazia parte de um grupo de 7 amigos que se reunia toda semana para contar
histórias. Religiosamente. E digo religiosamente porque me disseram que era uma
religião, mesmo, para eles. Nenhum acreditava em Deus, e nenhum queria ficar
sozinho no mundo, então se reuniam toda semana para contar histórias.
Não
falavam das suas vidas, de modo que não demonstravam preferências políticas,
ou coisas assim, que poderiam fazer com que eles rompessem ligações. Dos outros
conheciam apenas o rosto, o nome e as histórias.
Aquele
encontro caíra no dia do Réveillon, e era o dia de Luís Roberto falar. E pelo
que me disse, assim contou:
"Tudo
estava tranquilo pelos lados de lá. Jonas era casado com uma mulher supimpa de
corpo e mente, seus filhos não davam problemas demais, seu carro era novo, seu
emprego não lhe custava muitos esforços e pagava acima da média, sua cerveja
estava gelada e o Saia Justa estava pra começar.
"Ele
tinha, por bastante tempo, – não admitia - um pouco de vergonha de gostar deste
programa. Mas o Du Moscovis e o Chico Sá começaram a fazer parte da equipe de
apresentadores, e aí ficou fácil de assumir pros amigos que assistia de vez em
quando. Se o Chico Sá, que fala aquelas coisas de beber endométrio, pode fazer,
ele podia ver sem comprometer a masculinidade.
"Naquela
tarde, quem apresentava era o da raquete. Jonas não se achava um cara violento,
mas se identificava com aquela brutalidade toda. Tudo o que o distanciava
daquele cara era que toda a sua brutalidade estava reprimida.
"A
garrafa de cerveja estava na metade. Miriam, sua mulher, lhe trouxe outra e
disse que ia levar as crianças para uma peça infantil. Melhor assim. Teria mais
tempo para si. Deu até um dinheiro para que a mulher e os filhos fossem de
táxi, e não de ônibus.
"Ele
terminou as duas cervejas quando acabou o programa. Jogou as garrafas na
Mildred – nome que a sua esposa dera a lixeira da cozinha. Ele sempre achara
extremamente estúpida aquela mania da Miriam de dar nomes pras coisas. Ele se
sentia ofendido até. Tinha a sensação de que ela nomeava as coisas pra não se
sentir sozinha, mas ele sempre estava lá. Não tinha motivo pra essas sandices.
"Com
esse pensamento na cabeça pegou uma Playboy e foi ao banheiro, aproveitar que
estava sozinho em casa. Quando chegou na porta do cômodo, o viu e lembrou-se: Césão
estava pintando o seu banheiro. Aquele cara tinha 1,54m e era albino. Uma figura
estranhíssima. As paredes que pintava pareciam murais de Mark Rothko. Parecia
que tinha cheirado cocaína o tempo todo: piscava a rodo, meio que tremia, seus
olhos estavam sempre mais abertos que o necessário e fazia contorções estranhas
com a coluna, sem motivo aparente.
"Ele
ficou um tempo observando Césão, que parecia em transe, pintando aquele
banheiro. O cara fazia arte, mesmo. Seu banheiro ia valer uma fortuna, um dia.
"-
Ei. Césão. Você já pensou em pintar quadros?
"-
Já sim, seu Jonas. Eu pinto, na verdade, mas o mercado é bem complicado, sabe?
Os quadros que pinto não vendem não.
"Jonas
não entendia como podia aquilo. O cara era um gênio. Tanta gente medíocre
fazendo milhões com pretensa arte – diga o que quiser, mas Jonas nunca
concordaria que um mictório é arte – e ele pintando banheiros.
"-
Essa playboy aí é boa, seu Jonas?
"-
Não vi ainda não.
"-
Quando o senhor terminar, posso dar uma olhada?
"-
Precisa esperar não. Não quer ver agora?
"Jonas
abriu a revista e ficou analisando as fotos com Césão. A mulher era boa. Césão
não parava de se contorcer ao lado de Jonas. Fazia um negócio com as mãos, como
se estivesse passando uma moeda entre os dedos, mas ali só tinha vontade. O
homem era um poço de vontade reprimida.
"Jonas
já não olhava mais pra Playboy.
"Césão
não olhava para Jonas.
"Se
ele quisesse que alguma coisa acontecesse, não haveria momento mais propício.
Como ele poderia fazer para pegar o albininho sem causar furor? Talvez um beijo
roubado à força?
"Mas
ele queria se relacionar com Césão? Que palhaçada era essa agora? Ele tinha mulher,
porra. E gostosa pra caralho. Malhava pra cacete, toda durinha e ele de olho no
albininho? Ele era macho!
"Ia
se controlar. Ia se controlar que nem quando andava na rua e tinha vontade de
dar uma porrada em uma velhinha qualquer que atravessava seu caminho. Tinha
essa vontade uma vez por semana, mas o soco nunca tinha chegado. Então ele era
mais que capaz de conter aquela vontade.
"Fechou
a Playboy.
"-
Aí, seu merda! Tá achando que vai ficar vendo sacanagem no horário de trabalho?
Vai pegando o pincel.
"-
Olha só seu Jonas. Eu gosto bastante do senhor, mas não vou ficar aturando
desaforo não, que não sou pago pra isso. Você que abriu a revista! Tá maluco?
"Jonas
não esperava por aquilo. Césão além de talentoso era durão? Aquele tamanho,
aquela pele e aqueles tiques deviam fazer ele se deixar dominar.
"-
To de sacanagem, chefe. Que isso. Toma a revista aí. Tira meia hora. Depois
você volta a pintar.
"Saiu
do banheiro. Césão fechou a porta, e Jonas ficou pensando se devia entrar e
surpreender o pintor. Ele entendeu, naquele momento, que mais cedo ou mais
tarde ia ceder à tentação. Que fosse logo então.
"Deu
meia volta, colocou a mão na maçaneta e hesitou.
Luís
deixou a mão de Jonas na maçaneta. Parou de contar a história. Choveram
protestos dos outros seis, mas Roberto estava irredutível.
"Nesse
momento, Jonas tinha dois caminhos pela frente. Poderia ceder a sua tentação e
mudar a sua vida ou continuar a vida que devia ter. Mas o Jonas não existe.
Quem existe sou eu, Luís. Eu não tive a coragem de me arriscar e mudar a minha
vida até agora".
Luís
nunca mais voltou aos encontros, e os sete viraram seis por um tempo. O que
cabalisticamente era inaceitável. Se ele não tivesse saído, eu, Rec, não teria
entrado. De qualquer forma, ele disse mais uma coisa antes de ir embora, me
contaram:
“- Esse
ano não vou contar histórias. Vou vivê-las. Eu desejo que todos vocês abram as
suas portas por conta própria”.
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