Por Rodrigo Amém
Não
era exagero dizer que Lúcia e Edgard eram felizes no bairro triste. Demorou,
mas se entenderam parceiros, amigos, amados.
Tiveram filhos, mas só um vingou. Uma menina careca e rosada que não
largava o peito bom de Lúcia. O outro só encontrava serventia na união de
cicatrizes promovida pela palma queimada e ávida de Edgard com a trilha do
terço.Nessas horas, eram um só. Uma só ferida do passado, coberta de pele
grossa e forte.
Lúcia
ficava com a careca rosa em casa. Trabalhar e trazer sustento era coisa de
homem, dizia o imberbe Edgard. Ele saía de manhã e voltava de noite, trazendo
pão, leite, uns trocados e histórias sobre clientes difíceis, entregas
complicadas. Lúcia balançava a cabeça e sorria satisfeita de ser esposa adotiva
e mãe de verdade.
Teve
uma tarde que a bebê ficou febril. Lúcia sabia da gravidade. Viu muita criança
chegar quente no orfanato e sair numa caixinha. Ela não pensou duas vezes.
Embrulhou a menina num pano e correu pro hospital. Nem lembrou que Edgard tinha
falado pra não sair. Nem pensou que o hospital era bem longe do casebre. E que
ela estaria solta na cidade. Teve muita coisa que Lúcia não levou em
consideração no seu desespero materno.
Que,
por exemplo, o hospital público da cidade era o Pronto Socorro Nossa Senhora de
Fátima.
Lúcia
entro no saguão anunciada pelos urros da bebê rosada. A recepcionista perguntou
o nome da criança. Lúcia não sabia. Nunca tinham definido. Ela olhou para a
porta do hospital e respondeu de pronto: Fátima. O nome dela é Fátima. Ajuda
minha Fátima rosa, por favor.
Uma
enfermeira tomou o bebê nos braços e levou hospital adentro. A ex-noviça
seguindo atrás, até ser barrada em uma das portas. Daquele ponto em diante, só
quem é funcionário, mãe. Desculpe. Pode aguardar aqui.
Pelo
vidro, Lúcia acompanhava uma sequência de costas brancas orbitando o choro
abafado de Fátima. Desespero e alívio ao mesmo tempo. E uma sombra no canto do
olho. Uma sombra negra. Virando a cabeça devagar, Lúcia foi perdendo a cor do
rosto. De hábito e tapa-olho, Irmã Dalva sorria em antecipação à sonhada
vingança.
- Você me deve uma
criança, ladra. E um olho. – sussurrou
em alto e bom som.
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