Por Marcela de Holanda
Todas as noites, ela escovava os dentes,
fingia um beijo de boa noite e esperava ele dormir. Aí, vestia uma roupa
etérea, lhe dava um beijo na testa e voava em direção a mais uma aventura
intimamente proibida. De dia, andava com os pés bem fixos na terra. Mas, à
noite, gostava de hidratar seus cabelos nas nuvens antes de sair por aí
conhecendo lugares e pessoas.
Vivia, nessas horas, uma vida de
filme. Às vezes romance, às vezes drama, muitas vezes comédia, constantemente
aventura, de vez em quando terror e até ficção científica. Tinha uma fila
interminável de amantes dos quais nem sempre se lembrava do rosto. Seus poderes
especiais a levavam do Brasil ao Japão antes mesmo de virar a esquina. Tinha
dias em que ela resolvia ser homem e, simplesmente, era. Sem se dar conta,
mudava de rosto e de corpo como uma “camaleoa” descontrolada.
Devia ter muita sorte porque, nos seus
passeios noturnos, presenciava momentos que pareciam impossíveis. Via elefantes
darem cambalhotas, leões vivendo em apartamentos e bebendo chá gelado na
tigela. Via bicicletas voarem, ingleses dançando a dança da chuva, fora a
quantidade de vezes que ela mesma ganhou na loteria sem nunca ter apostado.
Vivia bem feliz no meio da bizarrice. Amava o inesperado. Não planejava nada.
Deixava-se levar e confiava que nada de mal ia lhe acontecer.
Quando a morte chegava perto e vinha a
abraçar querendo fazer amizade, ela lhe apertava a mão e dizia que ia ali e já
voltava. Um dia, acabava voltando mesmo, mas sempre dava um jeito de escapar na
última hora e depois gargalhava se lembrando do risco que tinha corrido.
Ela também tinha, sem querer, descoberto
uma maneira de viajar no tempo. Estava andando por uma rua escura e se deu
conta de que estava no século XVI. Depois disso, era só pensar que gostaria de
conhecer determinada época, que lá ela aparecia. Conseguia também misturar os
tempos. Uma vez se viu no meio de uma guerra medieval. Pegou seu celular e
pediu socorro para um amigo dinossauro que em dois minutos chegou e a tirou
dali.
Era uma vida um pouco cansativa. Mas valia
a pena. Ela não tinha do que reclamar. Gostava de sentir seu coração palpitando
por baixo da blusa e também de quando ele subia até sua boca ou escorria pras
suas mãos. A sua vida era tão boa que nem reclamava quando percebia que estava
amanhecendo lá embaixo e que tinha que voltar.
Na ponta dos pés, ia em direção à sua cama
e se enfiava com o máximo cuidado debaixo das cobertas pra ele nada perceber.
Quando acontecia de ser pega, dizia que tinha ido ao banheiro rapidinho. Ele
sempre acreditava. Como ele pensava que ela tinha dormido a noite inteira, ela
nunca podia descansar. Fingia que já estava bem descansada, se espreguiçava,
escovava os dentes, descia para comprar pão e jornal e voltava pra fingir um
beijo de bom dia. Ele perguntava se ela tinha dormido bem e ela sempre dizia um
"ahan" bem indiferente pra não gerar mais perguntas. Por dentro, ela
sorria por não precisar dividir seu segredo. Aquela vida era só dela. Eles não
tinham se casado naquela vida.
Ele saía para trabalhar e ela se
preparava para mais um dia vazio. Fazia tudo mecanicamente contando as horas
para a noite chegar. Gostava de assistir às novelas só para ter o prazer de
saber que nenhuma vida ali era melhor do que a dela. Não essa, diurna e sem
graça, mas aquela que era de verdade. Porque ela sabia que tinha nascido ao
contrário e que vivia enquanto a maioria dormia e esperava enquanto a maioria
vivia.
Até que um dia, enquanto fazia o jantar,
se sentiu mal e foi correndo para o banheiro. Pôs pra fora todo o tédio que
tinha ingerido nas últimas horas. Não assistiu à novela nesse dia, pois o
marido insistiu que tinha que levá-la para o hospital. O médico, um senhor de
barba branca com um sorriso bondoso, anunciou que eles estavam prestes a
embarcar numa grande aventura com um bebê a caminho. Ela não sabia se ria ou se
chorava. Não estava acostumada a sentir nada àquela hora do dia. Na sua vida
secreta, ela nunca tinha tido filhos. Não tinha treinado para isso. Ela, que
gostava de sentir seu próprio coração, agora sentia mais um, na sua barriga,
que batia ainda mais acelerado do que o dela durante suas aventuras mais
doidas. Olhou para o marido e viu que o rosto dele não estava borrado como o de
costume. Ela agora conseguia ver nitidamente as linhas do rosto dele. E eram
agradáveis. Por elas, escorriam pequenos riachos salgados de emoção. Ele também
tinha cara de quem não sabia o que fazer. Voltaram para casa e ela repetiu seu
ritual de sempre.
Naquela madrugada, depois de visitar
dois ou três lugares, ela encontrou uma menina de uns cinco anos, com cachos
dourados e olhos azuis. Perguntou pra menina o que ela fazia fora da cama e
sozinha por ali. A menina contou que ainda não tinha cama e que não estava
sozinha, mas com ela. A menina era tão linda e estranhamente familiar, que ela
aceitou levá-la junto nas aventuras seguintes. Conheceram lugares incríveis e
conversaram durante horas. Ficaram amigas.
Acabou perdendo a hora e, quando voltou
para se esquivar para debaixo da coberta, viu que o marido já não estava mais
lá. Nervosa pelo seu segredo, ficou deitada esperando o que ia acontecer. Ele
voltou, uns minutos depois, com uma bandeja com pão, jornal e uma rosa. Ele
perguntou se ela tinha dormido bem e ela disse que tinha dormido "muito
bem, obrigada". Ele disse que não ia trabalhar e que passaria o dia todo
fazendo as vontades dela. No começo, foi muito estranho. Mas, apesar dos enjoos
dela, eles tiveram momentos felizes naquele dia. A felicidade diurna a fez se
sentir um pouco culpada pelo seu segredo.
Resolveu que, naquela noite, tentaria
dormir. Mas quanto mais tentava, mais rolava na cama. Passou a noite toda ali
mesmo, do lado dele, acordada, pensando em como faria para administrar agora
duas vidas agitadas. Mesmo com a culpa, ficou levando sua dupla jornada como
podia. Estava até começando a gostar da sua vida diurna. Cada dia era
diferente. Cada dia mais pesada e redonda, ela tentava recuperar o tempo
perdido e aprender tudo que precisava para cuidar de uma terceira vida que
estava dentro dela.
Nove meses depois, passeando de
madrugada, ela reencontrou a menina dos cachos
dourados. As duas se abraçaram
longamente. A menina pegou na mão dela e disse que hoje decidiria pra onde elas
iriam. Foram até uma nuvem bem fina e transparente. A menina disse que era pra
ela olhar para baixo. Ela viu a própria casa. A menina perguntou se ela
gostaria de ir lá embaixo e espiar pela janela. Ela concordou e foi espiar o marido
dormindo. Quando chegou lá, nada entendeu. Ao lado do marido, dormia ela mesma
com sua enorme barriga. Mas como ela estava lá se tinha levantado e fugido para
viver sua vida secreta?
A menina a levou de volta para a nuvem e
disse que fechasse os olhos e contasse até dez que, quando abrisse, teria uma
surpresa. Quando abriu, a linda menina já não estava mais lá, mas outra pessoa
vinha andando na direção dela. Ao perceber que era o marido, ela morreu de
vergonha pensando que ele tinha descoberto tudo e que agora a deixaria para
sempre. Justo agora que ela estava voltando a gostar dele? Ele olhou bem no
fundo dos olhos dela e ela pediu desculpas por tê-lo enganado durante tanto
tempo. Ele disse que não só sabia de tudo, mas como tinha estado ao lado dela
escondido durante todos os momentos. Porque ela era o sonho da vida dele,
embora ele não fizesse mais parte dos sonhos dela. Tinha esperado pacientemente
que ela voltasse a viver do lado dele e entendia que aquela vida secreta era
necessária pra que ela aguentasse a vida que não estava mais querendo viver
durante o dia, e que ele tinha sofrido dia e noite por não conseguir ajudá-la.
Os dois choraram muito e se beijaram mais
ainda. Voltaram para a cama de mãos dadas e acordaram ao mesmo tempo. A cama
molhada indicava que tinha chegado a hora. A bolsa estourou. Foram correndo
para o hospital, mas o bebê não quis esperar e nasceu, ainda no caminho, nas
mãos do pai. Era uma linda menina de olhos azuis e uma leve penugem dourada na
cabeça.
Depois daquele dia, a vida era tão
agitada que quase não sobrava tempo para dormir. Sonhavam acordados mesmo.
Atrapalhados, atarefados, mas felizes. A antiga vida secreta dela ia ficando
desbotada para trás. Quando dava tempo de sonhar, ela quase sempre sonhava que
estava ali mesmo naquela casa, com seus dois amores que com o passar dos anos
viraram três e depois quatro. Retomou a sua profissão um ano depois do
nascimento da primeira filha. Nessa nova dupla jornada, sua vida acordada valia
por duas e era mais emocionante que o seu mais louco sonho da época em que
pensava que estava acordada.
FIM
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