Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Dupla jornada

Por Marcela de Holanda

       Todas as noites, ela escovava os dentes, fingia um beijo de boa noite e esperava ele dormir. Aí, vestia uma roupa etérea, lhe dava um beijo na testa e voava em direção a mais uma aventura intimamente proibida. De dia, andava com os pés bem fixos na terra. Mas, à noite, gostava de hidratar seus cabelos nas nuvens antes de sair por aí conhecendo lugares e pessoas.
         
      Vivia, nessas horas, uma vida de filme. Às vezes romance, às vezes drama, muitas vezes comédia, constantemente aventura, de vez em quando terror e até ficção científica. Tinha uma fila interminável de amantes dos quais nem sempre se lembrava do rosto. Seus poderes especiais a levavam do Brasil ao Japão antes mesmo de virar a esquina. Tinha dias em que ela resolvia ser homem e, simplesmente, era. Sem se dar conta, mudava de rosto e de corpo como uma “camaleoa” descontrolada.
      
       Devia ter muita sorte porque, nos seus passeios noturnos, presenciava momentos que pareciam impossíveis. Via elefantes darem cambalhotas, leões vivendo em apartamentos e bebendo chá gelado na tigela. Via bicicletas voarem, ingleses dançando a dança da chuva, fora a quantidade de vezes que ela mesma ganhou na loteria sem nunca ter apostado. Vivia bem feliz no meio da bizarrice. Amava o inesperado. Não planejava nada. Deixava-se levar e confiava que nada de mal ia lhe acontecer.

       Quando a morte chegava perto e vinha a abraçar querendo fazer amizade, ela lhe apertava a mão e dizia que ia ali e já voltava. Um dia, acabava voltando mesmo, mas sempre dava um jeito de escapar na última hora e depois gargalhava se lembrando do risco que tinha corrido.

      Ela também tinha, sem querer, descoberto uma maneira de viajar no tempo. Estava andando por uma rua escura e se deu conta de que estava no século XVI. Depois disso, era só pensar que gostaria de conhecer determinada época, que lá ela aparecia. Conseguia também misturar os tempos. Uma vez se viu no meio de uma guerra medieval. Pegou seu celular e pediu socorro para um amigo dinossauro que em dois minutos chegou e a tirou dali.

     Era uma vida um pouco cansativa. Mas valia a pena. Ela não tinha do que reclamar. Gostava de sentir seu coração palpitando por baixo da blusa e também de quando ele subia até sua boca ou escorria pras suas mãos. A sua vida era tão boa que nem reclamava quando percebia que estava amanhecendo lá embaixo e que tinha que voltar.

     Na ponta dos pés, ia em direção à sua cama e se enfiava com o máximo cuidado debaixo das cobertas pra ele nada perceber. Quando acontecia de ser pega, dizia que tinha ido ao banheiro rapidinho. Ele sempre acreditava. Como ele pensava que ela tinha dormido a noite inteira, ela nunca podia descansar. Fingia que já estava bem descansada, se espreguiçava, escovava os dentes, descia para comprar pão e jornal e voltava pra fingir um beijo de bom dia. Ele perguntava se ela tinha dormido bem e ela sempre dizia um "ahan" bem indiferente pra não gerar mais perguntas. Por dentro, ela sorria por não precisar dividir seu segredo. Aquela vida era só dela. Eles não tinham se casado naquela vida.

      Ele saía para trabalhar e ela se preparava para mais um dia vazio. Fazia tudo mecanicamente contando as horas para a noite chegar. Gostava de assistir às novelas só para ter o prazer de saber que nenhuma vida ali era melhor do que a dela. Não essa, diurna e sem graça, mas aquela que era de verdade. Porque ela sabia que tinha nascido ao contrário e que vivia enquanto a maioria dormia e esperava enquanto a maioria vivia.

      Até que um dia, enquanto fazia o jantar, se sentiu mal e foi correndo para o banheiro. Pôs pra fora todo o tédio que tinha ingerido nas últimas horas. Não assistiu à novela nesse dia, pois o marido insistiu que tinha que levá-la para o hospital. O médico, um senhor de barba branca com um sorriso bondoso, anunciou que eles estavam prestes a embarcar numa grande aventura com um bebê a caminho. Ela não sabia se ria ou se chorava. Não estava acostumada a sentir nada àquela hora do dia. Na sua vida secreta, ela nunca tinha tido filhos. Não tinha treinado para isso. Ela, que gostava de sentir seu próprio coração, agora sentia mais um, na sua barriga, que batia ainda mais acelerado do que o dela durante suas aventuras mais doidas. Olhou para o marido e viu que o rosto dele não estava borrado como o de costume. Ela agora conseguia ver nitidamente as linhas do rosto dele. E eram agradáveis. Por elas, escorriam pequenos riachos salgados de emoção. Ele também tinha cara de quem não sabia o que fazer. Voltaram para casa e ela repetiu seu ritual de sempre.

        Naquela madrugada, depois de visitar dois ou três lugares, ela encontrou uma menina de uns cinco anos, com cachos dourados e olhos azuis. Perguntou pra menina o que ela fazia fora da cama e sozinha por ali. A menina contou que ainda não tinha cama e que não estava sozinha, mas com ela. A menina era tão linda e estranhamente familiar, que ela aceitou levá-la junto nas aventuras seguintes. Conheceram lugares incríveis e conversaram durante horas. Ficaram amigas.

      Acabou perdendo a hora e, quando voltou para se esquivar para debaixo da coberta, viu que o marido já não estava mais lá. Nervosa pelo seu segredo, ficou deitada esperando o que ia acontecer. Ele voltou, uns minutos depois, com uma bandeja com pão, jornal e uma rosa. Ele perguntou se ela tinha dormido bem e ela disse que tinha dormido "muito bem, obrigada". Ele disse que não ia trabalhar e que passaria o dia todo fazendo as vontades dela. No começo, foi muito estranho. Mas, apesar dos enjoos dela, eles tiveram momentos felizes naquele dia. A felicidade diurna a fez se sentir um pouco culpada pelo seu segredo.   

       Resolveu que, naquela noite, tentaria dormir. Mas quanto mais tentava, mais rolava na cama. Passou a noite toda ali mesmo, do lado dele, acordada, pensando em como faria para administrar agora duas vidas agitadas. Mesmo com a culpa, ficou levando sua dupla jornada como podia. Estava até começando a gostar da sua vida diurna. Cada dia era diferente. Cada dia mais pesada e redonda, ela tentava recuperar o tempo perdido e aprender tudo que precisava para cuidar de uma terceira vida que estava dentro dela.

       Nove meses depois, passeando de madrugada, ela reencontrou a menina dos cachos 
dourados. As duas se abraçaram longamente. A menina pegou na mão dela e disse que hoje decidiria pra onde elas iriam. Foram até uma nuvem bem fina e transparente. A menina disse que era pra ela olhar para baixo. Ela viu a própria casa. A menina perguntou se ela gostaria de ir lá embaixo e espiar pela janela. Ela concordou e foi espiar o marido dormindo. Quando chegou lá, nada entendeu. Ao lado do marido, dormia ela mesma com sua enorme barriga. Mas como ela estava lá se tinha levantado e fugido para viver sua vida secreta?

      A menina a levou de volta para a nuvem e disse que fechasse os olhos e contasse até dez que, quando abrisse, teria uma surpresa. Quando abriu, a linda menina já não estava mais lá, mas outra pessoa vinha andando na direção dela. Ao perceber que era o marido, ela morreu de vergonha pensando que ele tinha descoberto tudo e que agora a deixaria para sempre. Justo agora que ela estava voltando a gostar dele? Ele olhou bem no fundo dos olhos dela e ela pediu desculpas por tê-lo enganado durante tanto tempo. Ele disse que não só sabia de tudo, mas como tinha estado ao lado dela escondido durante todos os momentos. Porque ela era o sonho da vida dele, embora ele não fizesse mais parte dos sonhos dela. Tinha esperado pacientemente que ela voltasse a viver do lado dele e entendia que aquela vida secreta era necessária pra que ela aguentasse a vida que não estava mais querendo viver durante o dia, e que ele tinha sofrido dia e noite por não conseguir ajudá-la.

      Os dois choraram muito e se beijaram mais ainda. Voltaram para a cama de mãos dadas e acordaram ao mesmo tempo. A cama molhada indicava que tinha chegado a hora. A bolsa estourou. Foram correndo para o hospital, mas o bebê não quis esperar e nasceu, ainda no caminho, nas mãos do pai. Era uma linda menina de olhos azuis e uma leve penugem dourada na cabeça.

      Depois daquele dia, a vida era tão agitada que quase não sobrava tempo para dormir. Sonhavam acordados mesmo. Atrapalhados, atarefados, mas felizes. A antiga vida secreta dela ia ficando desbotada para trás. Quando dava tempo de sonhar, ela quase sempre sonhava que estava ali mesmo naquela casa, com seus dois amores que com o passar dos anos viraram três e depois quatro. Retomou a sua profissão um ano depois do nascimento da primeira filha. Nessa nova dupla jornada, sua vida acordada valia por duas e era mais emocionante que o seu mais louco sonho da época em que pensava que estava acordada.

FIM



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