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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Sangue

Por Rodrigo Amém

Edgard sentou-se ao lado do berço. Trinta e oito na mão direita, bebê no braço esquerdo. Ela dormia, imperturbada pelas gotas de sangue que caiam sobre sua manta rosa. Sangue de freira? De bandido? De sua mãe? De seu pai? Era um sangue sem dono, sangue de todo mundo, que ensopava o corpo de Edgard e pingava de seu nariz sobre a manta de sua filha. O zumbido do ouvido diminuíra. Silêncio.

Lúcia não devia estar vestida de freira. Não fazia sentido. Edgard não sabia que ela tinha concordado em trabalhar como babá do orfanato na madrugada para ficar mais perto da filha. Edgard não sabia que Lúcia roubara a arma de um dos capangas e tentava proteger a bebê. Edgard não sabia se seria capaz de se perdoar.

Momentos antes, ele jogou-se sobre o corpo de Lúcia, que já bateu no chão sem vida. Lúcia caiu de olhos abertos, fitando Edgard. Mas não havia expressão. Uma parte dele desejava uma reação, um sinal, uma expressão de horror. A outra torcia em silêncio para que seu amor não reconhecesse seu executor. Edgard sacudia, gritava, chamava. Os olhos de Lúcia só fitavam inertes. Então o sangue que descia da testa os cobriu. E nem assim eles se fecharam. O vermelho misturou com o azul, com o branco. Edgard tentou limpar o rosto da mulher com as mãos. O sangue só espalhava. Edgard soluçava.

- Deus sabe o que faz. – Disse uma voz enrugada, ardida.

Edgard não precisou olhar. Era a voz dos seus pesadelos. A voz da caolha, acumulada de ódio, rancor e soberba. Como se Deus fosse seu cão de guarda, dilacerando desafetos, martelando sua justiça torta. “Deus sabe o que faz”, disse ela. Como quem diz “Você rouba de mim, Deus tira de você. Por suas próprias mãos. Porque você ousou contra ele. Contra mim. Vocês arderão juntos no inferno”.

Não foi preciso olhar. A fúria guiou a mão de Edgard e foi certeira. O estômago da velha explodiu em tripas e pólvora. Edgard baixou a arma e abraçou Lúcia. Alguns minutos depois, Edgard contemplava a placidez de sua filha, sentado em seu trono de sangue.

Léo entrou limpando o cenho.

- Vambora.

Edgard levou um tempo, mas finalmente notou a presença do companheiro. Balançou a cabeça num sim lento e se levantou. Léo lhe estendeu uma faca enorme, virando o cabo para Edgard.

- Não esquece da lembrança do chefe.


Edgard guardou o trinta e oito e pegou a peixeira. Tinha uma cabeça de freira pra cortar. 



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