Por Rodrigo Amém
Edgard
sentou-se ao lado do berço. Trinta e oito na mão direita, bebê no braço
esquerdo. Ela dormia, imperturbada pelas gotas de sangue que caiam sobre sua
manta rosa. Sangue de freira? De bandido? De sua mãe? De seu pai? Era um sangue
sem dono, sangue de todo mundo, que ensopava o corpo de Edgard e pingava de seu
nariz sobre a manta de sua filha. O zumbido do ouvido diminuíra. Silêncio.
Lúcia
não devia estar vestida de freira. Não fazia sentido. Edgard não sabia que ela
tinha concordado em trabalhar como babá do orfanato na madrugada para ficar
mais perto da filha. Edgard não sabia que Lúcia roubara a arma de um dos capangas
e tentava proteger a bebê. Edgard não sabia se seria capaz de se perdoar.
Momentos
antes, ele jogou-se sobre o corpo de Lúcia, que já bateu no chão sem vida.
Lúcia caiu de olhos abertos, fitando Edgard. Mas não havia expressão. Uma parte
dele desejava uma reação, um sinal, uma expressão de horror. A outra torcia em
silêncio para que seu amor não reconhecesse seu executor. Edgard sacudia,
gritava, chamava. Os olhos de Lúcia só fitavam inertes. Então o sangue que
descia da testa os cobriu. E nem assim eles se fecharam. O vermelho misturou
com o azul, com o branco. Edgard tentou limpar o rosto da mulher com as mãos. O
sangue só espalhava. Edgard soluçava.
-
Deus sabe o que faz. – Disse uma voz enrugada, ardida.
Edgard
não precisou olhar. Era a voz dos seus pesadelos. A voz da caolha, acumulada de
ódio, rancor e soberba. Como se Deus fosse seu cão de guarda, dilacerando
desafetos, martelando sua justiça torta. “Deus sabe o que faz”, disse ela. Como
quem diz “Você rouba de mim, Deus tira de você. Por suas próprias mãos. Porque
você ousou contra ele. Contra mim. Vocês arderão juntos no inferno”.
Não
foi preciso olhar. A fúria guiou a mão de Edgard e foi certeira. O estômago da
velha explodiu em tripas e pólvora. Edgard baixou a arma e abraçou Lúcia.
Alguns minutos depois, Edgard contemplava a placidez de sua filha, sentado em
seu trono de sangue.
Léo
entrou limpando o cenho.
-
Vambora.
Edgard
levou um tempo, mas finalmente notou a presença do companheiro. Balançou a
cabeça num sim lento e se levantou. Léo lhe estendeu uma faca enorme, virando o
cabo para Edgard.
-
Não esquece da lembrança do chefe.
Edgard
guardou o trinta e oito e pegou a peixeira. Tinha uma cabeça de freira pra
cortar.
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