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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Seteoito

Por Rodrigo Amém



Dois tipos de pessoas chegam ao posto de chefe da favela: enxadristas e sobreviventes. Seteoito com certeza pertencia à primeira classe. Franzino, poucos dentes emoldurados num bigode fino, não era um tipo imponente. Mas Seteoito era um pensador. Logo que sua habilidade com número foi percebida pelos antigos chefões, foi promovido a contador do bando ainda moleque. De contador, virou conselheiro. De conselheiro, virou braço direito. De braço direito, virou chefe quando não sobrou mais ninguém vivo na cúpula da favela.  A trajetória de um sobrevivente, diriam alguns. Outros, mais bem informados, suspeitavam da conveniência de tantas mortes. Esses aplaudiam em silêncio o xeque-mate do contador magricela. 

Seteoito se orgulhava de suas mãos relativamente limpas de sangue, apesar da extensa lista de óbitos que sua ascensão proporcionou. Para ele, matar era como masturbação: melhor quando outras pessoas fazem por você. Eventualmente, no entanto, Seteoito se permitia um ou outro homicídio onanista. Dizem que o antigo chefe viu Seteoito acender o fósforo que ateou fogo a suas roupas encharcadas de gasolina. Quem “dizem”? Ninguém.

Como todo mundo que veio de baixo, Seteoito olhava a base de sua pirâmide com particular interesse. Ele procurava atentamente pessoas de potencial. Mão de obra talentosa e motivada devia ser trazido para perto do chefão. Muito de sua força vinha da gratidão daqueles que Seteoito resgatava do lixo. As crianças do lixo viravam os melhores soldados e, eventualmente, os melhores oficiais. Trazidos para perto de seus olhos, Seteoito podia avaliar aqueles que tinham futuro e eliminar os incontroláveis ou exageradamente talentosos. Ninguém gosta de neguinho exibido. 

O único barraco da favela com ar condicionado era o de Seteoito. Debaixo das cobertas, Seteoito fumava um cigarro aquecido por três de suas esposas. A cama, feita sob encomenda, comportaria sete, oito esposas.

O telefone tocou três vezes antes da esposa número dois pegar o telefone, levar ao ouvido e repassar ao marido. Era o Leo. Era importante. Seteoito atendeu desinteressado. Leo, seu sargento de plantão, explicou que um dos garotos novos da entrega estava desesperado e precisava de ajuda. Tinham levado a mulher e a criança dele. Alguma coisa sobre uma freira caolha. Seteoito cutucou a esposa três. Ela saiu debaixo das cobertas nua. O ar frio eriçou pelos e mamilos. Ela saltou nas pontas dos pés até o cabideiro e trouxe o roupão com os números sete e oito bordados em linha dourada. O marido levantou e virou-se de costas com os braços apontados para trás e para baixo. Número três vestiu o roupão no marido. 

Na sala do barraco, um transtornado Edgard esperava impaciente. A porta se abriu revelando um negro baixinho e magricela, de roupão roxo. Seteoito parou em sua frente. Edgard se levantou, ansioso. Um dos soldados que o escoltavam acertou a coronha de sua AR-15 na parte de trás do joelho de Edgard, prostrando-o de joelhos. Seteoito aprovou a nova relação de altura com um discreto sorriso. 


- Roubaram tua mulher, moleque? É isso mermo?

Edgard balançou a cabeça em prantos. 

- Para de chorar, viadinho. É homem na hora de fazer filho. Quando dá merda, vira neném. 

– O desprezo na voz de Seteoito secou as lágrimas de Edgard instantaneamente.

- É parceiro? – perguntou Seteoito para Leo, parado perto da porta. 

- Não fez merda ainda.  – respondeu Leo.

Seteoito arqueou o corpo para olhar nos olhos de Edgard.

- Tu quer que Seteoito dê jeito, é? 

Edgard balançou a cabeça.

- Não vai ser de graça. Mas pode ser barato.

Edgard parecia confuso. Seteoito gritou para dentro do quarto. Três de suas esposas apareceram nuas e posicionaram ao seu redor. Levou alguns segundos, mas Edgard desviou o olhar.

- Eu te arranjo uma esposa nova, mermão. Uma boa. Filho, tu faz mais. Vai?

Edgard olhou com um misto de horror e aversão antes de balançar a cabeça negativamente. Seteoito riu.

- O amor é lindo. Vai ser caro, então. – A expressão de Seteoito ficou subitamente sombria.

O chefe dispensou as esposas nuas de volta ao quarto. Seteoito fez um gesto com a cabeça e Leo entregou um 38 na mão de Edgard. 

- O Leo e os meninos vão com tu. Mas tu me traz a cabeça de quem roubou tua mulher. Foi uma freira, né? Melhor. Deus já fica sabendo com quem que tu tem aliança. 

Edgard se levantou lentamente, segurando o revólver como se fosse uma bomba. 

- Não vacila. Ou a cabeça da freira ou a sua. 

Seteoito fez um gesto dispensando o grupo, abraçou suas esposas e sumiu quarto adentro. 

 Edgard ficou atordoado. Os capangas e Leo começaram a conduzi-lo para fora. 

- Bem que ele falou que ia ser caro – sussurrou um dos capangas. 

- Eu pegava uma mulher nova – sussurrou o outro. 


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