Por Rodrigo Amém
Edgard abriu a porta do barraco e voltou a ser criança. Uma sensação aterradora. O silêncio esmagou-lhe o coração, revivendo a bicicleta vermelha. Era como se ela estivesse estacionada no meio da sala, espalhando medo e promessas de violência.
Edgard revirou os poucos cômodos e gritou por Joana. Só obteve a resposta dos ecos. Sentou-se na cama e respirou fundo, procurando ordenar as ideias. Joana sabia que não deveria sair. Não tinham certeza se alguém procurava por eles. Mas sabiam que não queriam ser encontrados por suas vidas anteriores. Não, Joana não sairia se não fosse urgente. Tinha que ser urgente. Tinha que ser a bebê.
Noite alta, Edgard desceu o morro apostando que Joana tivesse colocado em prática seu plano de contingência. “Se a nenê passar mal, corre para o hospital com ela. Eu acho vocês lá”, disse o rapaz alguns dias antes. E o único hospital público da região era a aposta certa.
Edgard cruzou a porta da recepção como um raio. Mal conseguia conter as palavras na boca. Precisou parar, respirar e se concentrar para ser entendido pela recepcionista. Então ele mencionou o nome Joana e disse que ela trazia um bebê. E o sorriso da recepcionista começou a murchar. Ela limpou a garganta e gaguejou, pedindo tempo para olhar os registros. E deu uma olhada sorrateira para o segurança. Edgard notou.
O vento frio da noite já soprava os cabelos de Edgar, três segundos mais tarde. Ele ouviu um “para”, “pega”, “volta aqui”. Não ousou olhar para trás. Sabia que era com ele. Sabia que era com a Joana. Mas primeiro as coisas primeiras. Primeiro era escapar.
O sinal de pedestres fechou, do jeito que Edgard gostava. Carros freavam, pneus cantavam e o garoto se jogava sobre os capôs quentes, deslizando para longe do alcance do guardinha. Ou guardinhas, não sabia quantos. Barulho de colisão. O bololô dos carros ficando para trás.
Os milhões de casebres da favela já iluminavam o horizonte como olhos de fogo quando Edgard abriu caminho por suas vielas, corredores e túneis. Os perseguidores ficaram no asfalto. Ninguém de farda sobre o morro de noite. Nem músico de fanfarra.
Mas o passo de Edgard não relaxava. Ele já não corria para fugir. Ele corria por Joana. E a salvação de sua família estava no alto do morro. A única chance de resgatar sua filha das mãos das autoridades era recorrer a outra autoridade. Edgard precisava de um favor do seu chefe. Em outras palavras, precisava vender a alma ao diabo.
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