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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Pequenas confissões - Texto 1 - O caso da esteira








Por Amanda Leal


Preciso confessar, tenho medo de me desestabilizar. Receio perder as estribeiras e surtar. Tenho me segurado. Tenho segurado minha boca de tanta coisa que está engasgada bem dentro da minha goela. E se tenho segurado não será agora, aqui no Salada de textos, que vou colocar tudo pra fora. A gente precisa aprender a ser firme, sabe? A guardar as coisas. Essa história de “minha vida é um livro aberto” não é comigo.

Meu maior medo? Tem sido os momentos em que passo na academia, tenho sentido o peso da idade, trinta anos e sedentária. Eu me sinto com setenta, pode apostar! Agora eu sei como minha avó se sentia ao subir escadas e fazer movimentos bruscos. Tenho trinta, mas no fundo eu sou setentona. Minha vida está num clima geriátricamente precoce. E justamente por isso eu decidi, com certa urgência, que deveria me exercitar.

Eu já decidi isso outras vezes, na verdade. Há dois anos atrás eu tinha decidido também, mas antes eu estava muito bem de saúde, não sentia taquicardia ao subir ladeiras, escadas, ao limpar banheiro e também não tinha essas malditas dores na lombar. Bons tempos! Desde essa época eu já tinha um certo medo da esteira, tinha medo de cair e todo mundo olhar pra mim. Tinha medo de todo mundo me olhar na academia e gravar a minha cara: “- Olha lá a menina que caiu da esteira! É uma anta mesmo.”. Lembro que na época a mãe de um amigo da minha irmã havia caído da esteira e quantos anos ela tinha? Setenta.

Hoje meus medos estão avançados e tenho percebido que não foi só o meu corpo que enferrujou. Meu coração também. É tanta coisa que se vive, é tanta coisa que se deixa de viver e quando você volta a si já está tudo diferente. Você está diferente. E eu ainda com medo de cair da esteira, medo daqueles aparelhoszinhos da musculação, medo de fazer algo de errado e pagar mico na frente daquela gente.

Ah, na academia todo mundo fica diferente, todo mundo vira “aquela gente”. Até eu. A gente se mistura numa coisa pseudo independente e blasé, é um cada um por si meio forçado porque na verdade todo mundo depende de todo mundo, depende de dividir aparelho, depende de ter professor, depende de ter quórum para ter aula, depende do sistema, depende do dinheiro que paga o funcionamento do mundo.

Quando eu percebi que eu já estava ficando meio tan tan com essa coisa de modinha de academia, gastando o que não tinha para poder comprar roupa  pra malhar(onde já se viu isso?), quando eu percebi que ninguém estava nem ai pra mim e eu justamente pensando sempre o contrário: “- Faz certo estão te olhando, faz certo, faz certo! CERTO.”. Quando eu vi que meu medo da esteira só ia passar se eu relaxasse, então eu relaxei.

Optei por vencer minhas inseguranças, mesmo que isso me fizesse parecer ridícula. Coisa que não faria a menor diferença, pois eu já sou bem ridícula.  Ridícula sim. Primeiro porque sou o tipo de pessoa que tem medo de cair da esteira e que confere mil vezes o que está dentro da minha carteira, numa espécie de TOC consciente e obrigatório, algo que a minha mente criou para poder se sentir menos ridícula diante da vida. Óbvio que não adiantou. E dentro de toda essa “segurança” que a minha mente criou para ela mesma se sentir à vontade nesse mundo, ela me colocou como uma maluquinha beleza em meio a seres humanos superficialmente normais.

Sim, eu conto repetidas vezes o meu dinheiro com medo do troco estar errado, eu confiro o número do ônibus que tenho que pegar, eu fico nervosa para ouvir as estações do metrô mesmo já sabendo a ordem todinha do trajeto de cor e salteado, eu crio musiquinhas de direcionamento, músicas que eu componho e só canto dentro da minha cabeça. Eu confiro se o gás está fechado e se eu tranquei a porta. E eu te digo: eu faço tudo isso sem ninguém saber! Justamente para não parecer ridícula na frente de segundos e terceiros. Meu mundo tenta me colocar segura me gerando inseguranças. Isso está errado. Eu admito.

Simplesmente acordei e decidi. Chega! Agora é vida nova. Me arrumei, fui malhar, subi na esteira e corri, corri por quase uma hora, corri tranquila dentro de toda a intranquilidade que estava dentro da minha mente. Corri dentro de toda a contradição em que eu me encontrava.

Pela primeira vez na vida eu caguei, caguei para quem estava me olhando, caguei para o que podia acontecer. Eu precisava relaxar, precisava descansar a cabeça e o corpo. Então eu cai, mas eu cai bem feio, foi o tombo mais lindo da minha vida, senti uma dor física absurda, quebrei uma perna, arranhões leves pelo corpo e um dedo torcido. E muita felicidade interior. Vergonhosamente feliz. Vai entender! E eu estava muito suada também, o que deixou tudo mais bonito. Eu estava corada. Estava bem.

Fui por uma meia hora o centro das atenções, todo mundo queria saber como eu estava, todos queriam saber como eu tinha feito aquilo. Todos estavam olhando para mim e eu estava tranquila. Eu podia ter morrido, eu sei. Só uma ridícula como eu para se jogar de forma tão absurda e se submeter a um risco desses.

Hoje eu tô em casa me recuperando das questões físicas, mas a minha cabeça está tão leve e zen. Tá certo que me sinto idiota por ter deixado as coisas chegarem a esse ponto, não acho que você deva fazer o mesmo e, por favor, não faça. Eu não posso ser responsável pela tragédia de ninguém. Eu me sinto estranha por estar, de certa forma, feliz com o que eu fiz.

 A verdade é que eu não vejo a hora de me recuperar pra voltar a me exercitar, comprei novas roupas de ginástica e meias da moda. Tô outra! Doida para voltar a fazer o que eu descobri ser a minha paixão: correr. Às vezes a gente precisa se permitir, às vezes a gente precisa cair e recuperar um pouco a humanidade e redescobrir do que somos feitos. Depois da queda você levanta e segue em frente.  A partir de agora farei uso do sentido metafórico. Uma experiência dolorosa já basta, né? Ninguém gosta de sentir mais de uma vez a mesma dor. E te digo, cair da esteira dói. Dói demais. Não recomendo.

Fim do texto 1.



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