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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Noite linda

Por Rodrigo Amém

Roger usou a ponta do lápis para levantar do chão o que parecia ser uma tripa. Um segundo mais tarde, ele deixou o material cair de volta ao solo, esponjoso. Com cuidado, levou as costas do braço direito à testa, tentando enxugar o suor frio sem pintar o próprio rosto com o sangue alheio.

Qualquer outra pessoa, ao se encontrar em sua posição, começaria a questionar as escolhas feitas na vida. Não Roger. No centro de um quarto pintado em sangue fresco, cercado de restos mortais de freiras e crianças órfãs, Roger tentava conter o sorriso de satisfação.

Jackson cambaleou pra fora do banheiro, tossindo e arfando. Cuspiu um resto de vômito num canto do corredor.

- Nada dos forenses, delegado. É esse trânsito – afirmou prendendo o fôlego.

- E os jornais? – disse Roger.

- Liguei assim que o senhor falou. Eu vou lá fora tomar um ar.  – disse Jackson.

- Liga de novo. Fala que é primeira página. Primeira página, porra.

Um chorinho baixo tirou Roger de seu mundo de sonho. Embaixo de uma cama, uma criancinha voltava aos poucos do choque. O tenente puxou a cama e pegou a criança ensopada, trêmula.

- Não chora, nenê. Vai dar tudo certo.

Quando o tumulto de jornalistas começou a se estabelecer em frente ao orfanato, Roger atravessou a porta de entrada com o pequeno sobrevivente em seus braços. A criança, nua e coberta de sangue. Parecia ter, literalmente, nascido de novo. Mesmo os abutres do jornalismo policial precisaram de um segundo para sair do estupor daquela imagem e começar disparar seus flashes. A criança gritou apavorada e se protegeu no colo de Roger. 

O alarido e as explosões das câmeras reavivaram os disparos que perseguiriam aquela mente pelo resto de seus dias. Roger cobriu o rosto da criança com a mão e fuzilou os fotógrafos com seu olhar de reprovação ensaiada.

Assim que os paramédicos tiraram a criança de seu colo e a levaram para a ambulância, Roger dirigiu-se à imprensa. Um alarido de perguntas cresceu quando o delegado se aproximou dos microfones. Com a palma da mão manchada de vermelho, ele pediu silêncio.

- Hoje, o terror atingiu nossa cidade. Dentro desta casa, uma casa de caridade e de espírito cristão, uma casa que dava abrigo a dezenas de crianças, monstros deram uma demonstração de crueldade e frieza. Tivemos a sorte de poder salvar algumas vidas. Tragicamente, não pudemos salvar todas. Mas a polícia civil assume nesta noite um compromisso com a sociedade. Jamais vamos nos esquecer do horror. Eu não vou esquecer. E, diante da imprensa e do povo de nossa cidade, eu prometo. Prometo a vocês e a Deus. Vamos encontrar os responsáveis e trazê-los à justiça. Obrigado.

Dentro do carro, Jackson fitou os olhos de Roger pelo retrovisor no banco de trás.

- Mandou bem no discurso, chefe. Nem se eu tivesse lendo eu falava bonito assim. Quanto mais de improviso.

Roger levantou os olhos e encarou Jackson pelo retrovisor.

- Não aconteceu nada “bonito” naquele orfanato esta noite. – desconversou.

- Claro que não, senhor. – corrigiu-se Jackson.

Encarando o movimento da noite pela janela, Roger sorriu por dentro. Sim, tinha sido um belo discurso. Mas não foi improvisado. Foi ensaiado à exaustão, durante anos. Foi sonhado. O dia em que o Delegado Roger assumiria seu posto de defensor da sociedade. O dia em que seu nome se tornaria sinônimo de justiça. Esse dia finalmente chegou, e numa dimensão muito maior que ele ousaria sonhar. Uma chacina em um orfanato de freiras. Solucionar esse caso seria o divisor de águas da sua carreira. Quiçá, de sua carreira política. Esse era o seu momento, Roger. Que noite linda.


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