Por Rodrigo Amém
Roger
usou a ponta do lápis para levantar do chão o que parecia ser uma tripa. Um
segundo mais tarde, ele deixou o material cair de volta ao solo, esponjoso. Com
cuidado, levou as costas do braço direito à testa, tentando enxugar o suor frio
sem pintar o próprio rosto com o sangue alheio.
Qualquer
outra pessoa, ao se encontrar em sua posição, começaria a questionar as
escolhas feitas na vida. Não Roger. No centro de um quarto pintado em sangue
fresco, cercado de restos mortais de freiras e crianças órfãs, Roger tentava
conter o sorriso de satisfação.
Jackson
cambaleou pra fora do banheiro, tossindo e arfando. Cuspiu um resto de vômito
num canto do corredor.
-
Nada dos forenses, delegado. É esse trânsito – afirmou prendendo o fôlego.
- E
os jornais? – disse Roger.
- Liguei
assim que o senhor falou. Eu vou lá fora tomar um ar. – disse Jackson.
-
Liga de novo. Fala que é primeira página. Primeira página, porra.
Um
chorinho baixo tirou Roger de seu mundo de sonho. Embaixo de uma cama, uma
criancinha voltava aos poucos do choque. O tenente puxou a cama e pegou a
criança ensopada, trêmula.
-
Não chora, nenê. Vai dar tudo certo.
Quando
o tumulto de jornalistas começou a se estabelecer em frente ao orfanato, Roger
atravessou a porta de entrada com o pequeno sobrevivente em seus braços. A
criança, nua e coberta de sangue. Parecia ter, literalmente, nascido de novo.
Mesmo os abutres do jornalismo policial precisaram de um segundo para sair do
estupor daquela imagem e começar disparar seus flashes. A criança gritou
apavorada e se protegeu no colo de Roger.
O alarido e as explosões das câmeras
reavivaram os disparos que perseguiriam aquela mente pelo resto de seus dias.
Roger cobriu o rosto da criança com a mão e fuzilou os fotógrafos com seu olhar
de reprovação ensaiada.
Assim
que os paramédicos tiraram a criança de seu colo e a levaram para a ambulância,
Roger dirigiu-se à imprensa. Um alarido de perguntas cresceu quando o delegado
se aproximou dos microfones. Com a palma da mão manchada de vermelho, ele pediu
silêncio.
-
Hoje, o terror atingiu nossa cidade. Dentro desta casa, uma casa de caridade e de
espírito cristão, uma casa que dava abrigo a dezenas de crianças, monstros deram
uma demonstração de crueldade e frieza. Tivemos a sorte de poder salvar algumas
vidas. Tragicamente, não pudemos salvar todas. Mas a polícia civil assume nesta
noite um compromisso com a sociedade. Jamais vamos nos esquecer do horror. Eu
não vou esquecer. E, diante da imprensa e do povo de nossa cidade, eu prometo.
Prometo a vocês e a Deus. Vamos encontrar os responsáveis e trazê-los à
justiça. Obrigado.
Dentro
do carro, Jackson fitou os olhos de Roger pelo retrovisor no banco de trás.
-
Mandou bem no discurso, chefe. Nem se eu tivesse lendo eu falava bonito assim.
Quanto mais de improviso.
Roger
levantou os olhos e encarou Jackson pelo retrovisor.
-
Não aconteceu nada “bonito” naquele orfanato esta noite. – desconversou.
-
Claro que não, senhor. – corrigiu-se Jackson.
Encarando
o movimento da noite pela janela, Roger sorriu por dentro. Sim, tinha sido um
belo discurso. Mas não foi improvisado. Foi ensaiado à exaustão, durante anos.
Foi sonhado. O dia em que o Delegado Roger assumiria seu posto de defensor da
sociedade. O dia em que seu nome se tornaria sinônimo de justiça. Esse dia
finalmente chegou, e numa dimensão muito maior que ele ousaria sonhar. Uma
chacina em um orfanato de freiras. Solucionar esse caso seria o divisor de
águas da sua carreira. Quiçá, de sua carreira política. Esse era o seu momento,
Roger. Que noite linda.
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