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terça-feira, 4 de novembro de 2014

Note from Tijuca National Ministry Facilities Park in Rio de Janeiro

Por Rec Haddock


Devo admitir que houve uma época em que fui assessor parlamentar, ainda que num passado longínquo. Sempre tive algum talento diplomático e naquela época ainda podia utilizá-lo: eu era bastante útil em matéria de fazer arranjos para aprovar leis. Hoje - quando a comunicação entre nós é essencialmente digital e robôs falam com a voz que antes apenas seres conscientes tinham - fico perdido em meio a tantos canais, e vejo que virei inútil.

Falo apenas para leitores que não vejo, neste openjoulying melancólico. Mas esta entrada não é para tratar disto.

Hoje venho falar (quem dera que isto fosse falar) sobre as leis e costumes que nos impõe que não sejamos nós e sim quem se espera que sejamos, o que, no fim das contas, é o dever de todo político: moldar as atitudes e vontades individuais em prol do que se acredita que seja o bem maior para todos os cidadãos de uma nação.

Pois bem.

Quando eu estava no Senado Federal, passei uma lei que hoje, 60 anos depois, está sendo revogada. A tal lei garantia que todo ser humano brasileiro, ao completar 21 anos poderia escolher o seu nome. Se ele quisesse manter o seu, poderia, mas se quisesse mudá-lo também poderia. Mais do que atender a Clédstons e Jhonniestons, a lei tinha o claro propósito de facilitar a vida do jovem transexual ou crossdresser que tinha de enfrentar um desgastante processo civil toda vez que gostaria de ver no extinto RG um nome correspondente à orientação sexual que seus pais não tinham como reconhecer em um recém-nascido.

Com o tempo, a lei denotou a presciência dos seus redatores – a modéstia me obriga a salientar que foi uma presciência que previu o que aconteceria até um futuro a médio prazo, apenas – e fez parte de um movimento ainda mais amplo. Dentro de um contexto onde os jovens brasileiros se politizaram e passaram a reconhecer o seu papel de protagonistas no futuro da nação – estes mesmos que agora são os novos coronéis da política e legislam em favor dos seus próprios umbigos-centro-do-universo – a lei serviu para que os jovens adotassem nomes que bradassem o que de fato eram ou queriam ser.

Forte de Albuquerque, Águia Meniscepal, Tupã Magalhães e Fogo Fátuo Silveira são exemplos de uma cultura que se instalou entre os jovens que remete às nossas mais verdadeiras raízes indígenas. Somada à uma diversidade de outras medidas, propiciou o que hoje entendemos como Cultura de pré-Identificação Digital, ou “C PID”, como chamamos mais comumente.

A princípio, hoje, pode parecer uma lei inútil e sem propósito (ou é isso que os parlamentares que a derrubaram insistem em afirmar), afinal, qual é a diferença que faria modificar o nome civil se é possível mudar o seu avatar ao seu bel-prazer?

"Na época de sua aprovação a pertinência da lei 0056/3 de 2015 não poderia ser questionada, com todas as confusões causadas pelo movimento transgênere, conhecido pelo caráter subversivo de seus conceitos. Hoje, esta lei só contribui para o acúmulo de normas prescritas na prática que insistem em pesar o judiciário com sua teoria ultrapassada". Cito o excrementíssimo Deputado Federal Lofre Buba, senhor conhecido por sua luta contra os direitos individuais dos outros, em prol do seu individual sem escrúpulos.

Eu, claramente, discordo da visão do Deputado. A questão da escolha é fundamental. O livre-arbítrio de ser quem se é ou de ser quem se quer ser é fundamental em qualquer sociedade que preze pela constituição de seus indivíduos, na medida em que, a partir do momento em que esse direito lhe é retirado, ele passa a ser apenas o que se quer – o outro quer – que ele seja. Talvez hoje em dia, o conceito tenha caído em desuso, mas o nome das coisas devem representar quem elas são em seu âmago mais imutável. Todos devem ter o direito de se dizer o que quer que queiram e participar dos movimentos que se chamem como querem que se chamem. E nada nem ninguém deveriam se colocar no meio disto.

Estou mesmo muito ultrapassado ao acreditar que as pessoas possam querer construir uma autoimagem individualizada no âmbito carnal? Será que somente o digital – e, portanto, o que os outros veem ou sabem a nosso respeito – importa hoje em dia? Não vejo como uma sociedade pode conseguir se sustentar sem que seus integrantes se vejam olhos nos olhos? Mesmo que fossem eyescopes.

E, entrando no mérito de trocar partes saudáveis do seu corpo por partes biônicas, será que não trocamos também a nossa humanidade por um pragmatismo robótico?


Talvez a nossa ânsia de nos manter vivos e saudáveis, longe de doenças, presos em cápsulas herméticas, esteja nos fazendo simplesmente menos humanos. Nem tudo pode ser gente. Nem mesmo toda gente o pode.



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