Por Rodrigo Amém
As
palavras escorriam moles da boca de Seteoito, arrastadas numa ginga de morro
quase caricatural. Gírias, contrações, equívocos gramaticais e palavras de
baixo calão escoavam daquela torneira de dentes de ouro como se tentassem
afogar Edgard. E Edgard, submerso, registrava apenas ecos daquele discurso que
já se arrastava por quase uma hora.
A
verborragia só parava quando o chefão acendia um cigarro, tomava um trago de
whisky, cheirava uma carreira. Mas não, o discurso não era substituído pelo
silêncio. Os barulhos guturais dos vícios de Seteoito eram tão audíveis quanto
sua malandragem. Goles, tragos e aspirações eram seguidos de expirações vocais,
gritadas, num exaspero forçado que parecia querer avisar a todo morro que
Seteoito gozava os privilégios dos Reis.
Sentado
em sua cadeira intencionalmente mais baixa, Edgard só enxergava um homem se
esvaindo em ruídos autoindulgentes. Se Seteoito era essa fonte transbordando de
si mesma, Edgard era só aridez. Não é que ele não sentisse medo, inveja ou
admiração do poder de Seteoito. Mas, ao mesmo tempo, era difícil entender para
que aquela força da natureza precisaria de Edgard, ou de qualquer um. Do jeito
que Edgard via o mundo, os poderosos dividiam sua atenção sobre o resto do
mundo em dois grupos: utilidade e desinteresse. E, na cabeça de Edgard, as
autoridades o colocaram na segunda categoria. Por que Seteoito seria diferente?
E quando chegaria a conta dessa exceção? No caminho até a mansão no topo do
morro, Edgard tremeu ao pensar que a hora chegara. Edgard pensou na sua filha e
na puta batida que lhe fora escalada como babá. Será que o plano é me matar e
entregar a bebê pra adoção? Ou pior, matá-la também? Mas o que Seteoito
ganharia matando um “zelador” do seu império? Por outro lado, o que ele ganha
agora, mantendo-o vivo?
A
recepção foi inadequadamente calorosa. Seteoito perguntou da criança, mas não
esperou resposta. Emendou um “fica tranquilo”, porque a “babá” era de
confiança. Fez um comentário de mau gosto sobre a noite em que Joana morreu,
mas Edgard não registrou, e Seteoito riu sozinho até virar o copo. Aí soltou um
“ahhh” de prazer e começou a enfileirar o pó branco sobre a mesa com a ajuda de
uma gilete. Fez que ia oferecer outra linha para Edgard, mas desistiu no meio.
“Você não precisa, já nasceu teso”. E riu. Edgard esforçou um sorriso pra não
parecer indelicado, submerso em confusão.
Seteoito
seguiu inabalado, como um guia turístico numa excursão pelos círculos do
inferno dantesco. Edgard se refugiou no seu bunker mental, onde guardava seus
maiores tesouros. A lembrança de sua mãe e das canções de ninar que venciam o
medo e a fome, a sensação do pé descalço na lama fria numa manha quente. O
abraço de Joana, o sorriso de Socorro.
Quando
finalmente emergiu, Edgard notou que o chefe finalmente adentrava na razão de
sua convocação. Era um trabalho para um perfil especializado. Um trabalho que
exigia um pai. Um pai que soubesse matar. Caso necessário, claro.
Alguém
sequestrou o filho de um figurão. Alguém que não tinha jeito com criança. O
choro do moleque podia virar problema. Edgard perguntou por que não enviar a
puta batida pra cuidar dessa criança diretamente. Seteoito explicou que precisava
de alguém que pudesse dar cabo do pirralho. Alguém pra confiar vida e morte.
Caso necessário, claro. O sangue de Edgard ferveu. Nunquinha que ele mataria
uma criança!
Seteoito
abriu um sorriso e tirou um jarro de dentro do armário. Boiando num líquido
amarelado, a cabeça da freira de olhos vazados.
“Mas lavaria o chão de um orfanato com sangue?”
Edgard
entendeu que não era uma proposta de trabalho. Era hora de pagar a conta.
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