Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
De qualquer forma, nada é igual.
Aqui cada dia é dia de um texto diferente.
Quer sair da rotina? Fica com o Salada!

segunda-feira, 2 de março de 2015

Evidências

Por Rodrigo Amém

Quando a porta do camburão abriu, a saraivada de flashes fez Edgard se encolher. Instintivamente, tentava proteger o rosto das luzes. As mãos algemadas às costas o obrigavam a virar o rosto para dentro do carro de polícia. Um puxão forte em seu cabelo o trouxe de volta aos holofotes. Era a mão do Delegado Roger, expondo sua presa à mídia.

As perguntas gritadas dos jornalistas se sobrepunham umas às outras, num alarido ensurdecedor. Debaixo daquela surra de luz e som, era difícil para Edgard manter o corpo ereto. Mas, sempre que ele se curvava em direção ao solo, a mão disciplinadora de Roger esticava sua coluna de volta à posição ereta.

As perguntas eram um confuso misto de indagações redundantes e pedidos de pose para fotos. Roger não respondia. Ele apenas aproveitava o enxame de microfones para dizer o que achava conveniente. Agradeceu a colaboração dos policiais envolvidos, enalteceu a importância do serviço de inteligência, assegurou o público de que a cidade dormiria mais segura depois da captura do mais terrível serial killer de nossa história.

-       É verdade que o senhor usou de tortura para capturar o Açougueiro, delegado?

A pergunta, feita um decibel acima do burburinho da coletiva, calou a todos. Os olhos de Roger se inflamaram por um segundo, enquanto ele varria a multidão em busca do desagradável inquisidor.

Os olhos de Roger encontraram Lucas. Jovem, magro, cabelos castanhos grandes e desgrenhados,  uma paródia de barba despontando descuidadamente aqui e ali. De braço levantado, Lucas não se escondia.

Roger se deu conta da própria contrariedade, respirou fundo e adotou um tom professoral.

- Absolutamente. Nossa equipe está nas ruas para cumprir a lei e fazer valer os direitos dos cidadãos. Quem tortura não é a polícia. O que nós fazemos é um trabalho profundo de investigação. Tortura é outra coisa. Tortura é entrar num convento e fazer uma chacina com crianças órfãs e freiras.

- Quais são as evidências da participação deste suspeito na chacina do orfanato? – interrompeu Lucas.

- Temos fortes indícios que aquele crime foi cometido pela mesma quadrilha responsável pelo sequestro da menina Sarah. São criminosos bárbaros, capazes de decepar dedos de crianças para coagir o pagamento do resgate.

- Senhor delegado, o senhor me desculpe, mas um não vejo a conexão entre esses crimes. – insistiu Lucas.

O burburinho aumentou, os flashes ficaram mais intermitentes, a medida em que Roger titubeava catando palavras.
- Um criminoso violento foi tirado das ruas. Uma vida de uma criança inocente foi salva. A polícia cumpriu o seu papel de dar segurança aos cidadãos. Quem vai julgar o suspeito e o nosso trabalho é a justiça. E eu tenho toda a tranquilidade de que tivemos sucesso em nossa missão. Sem mais perguntas.

Algumas horas depois, Edgard caia de joelhos dentro de uma cela de cadeia e as grades pesadas se fechavam atrás dele com um eco metálico. Ao se levantar, Edgard reparou uma presença no beliche superior.

- Edgard, meu velho! – de olhos arregalados, Leo sorria amarelo para seu novo companheiro de cela.


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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

De repente

Por Marcela de Holanda


— Carla!


— Oi. Nem tinha te visto aí. Tudo bem, Marina?


— Tudo. Agora tá tudo ótimo. Casei. Estou esperando meu primeiro filho...


— Nossa. Parabéns. Como o tempo passa, né?


— Pois é. Tem o que? Oito anos? Acho que é isso, oito anos que você desapareceu do nada, parou de responder minhas mensagens e atender minhas ligações.


— Oito anos? Tudo isso?


— Tudo isso. Mas não se preocupa, eu demorei uns três anos mas achei uma nova melhor 
amiga.


— Olha, Marina. Eu não sei nem o que te dizer. Desculpa. Eu sei que foi muita covardia da 
minha parte sumir sem dar explicação. Mas...


— Mas o que? O que aconteceu? O que foi que eu fiz? Eu juro que pensei muito mas não 
consegui imaginar nenhuma razão para você se afastar sem me dar nenhuma satisfação. A gente se via todos os dias. Você era tratada pela minha família como se fosse minha irmã. 


— Eu sei. Eu sei. Você não fez nada. Por isso eu não tive coragem de falar qualquer coisa. Eu cheguei da sua casa, fui dormir e quando acordei no dia seguinte eu já não era mais sua amiga. Eu simplesmente sabia que não era. Sabia que não ia conseguir olhar mais para você porque você ia perceber. E ia querer uma explicação. E eu não saberia o que dizer. Mas sabia que não queria fazer mais nada com você. Me desculpa. Realmente. Eu não sei porque isso aconteceu.

— Nossa. De todos os motivos que eu cogitei nenhum era tão ruim quanto não ter motivo nenhum. Você sabia que eu perdi meu pai na semana seguinte? Você imagina o quanto eu precisava de você? Mas ouvindo você falar agora eu acho que foi melhor assim mesmo. Você não era o tipo de pessoa que eu pensava que era. 


— Não. Eu não sabia. Sinto muito. Mas não foi minha culpa, sabe? Foi uma coisa incontrolável. Para você ter uma ideia. Lembra de como eu era viciada em chocolate?


— Claro que lembro. Eu sempre estava acima do peso porque comia junto. E você não engordava nada.


— Então. No mesmo dia em que eu acordei e não era mais sua amiga eu também acordei e não queria mais comer chocolate.


— Ah, tá. Aí sim. Foi um desequilíbrio mental grave então. Chegou a ser internada?


— Para. É sério. Só que uns dias depois eu já queria comer de novo. Mas como eu nunca mais tive vontade de ser sua amiga, eu não achei justo e não comi mais chocolate.


— Poxa. Quanta consideração. Obrigada.


— Ouve. Eu sei que eu te magoei. E que o que eu fiz não tem perdão. Mas saiba que eu nunca deixei de desejar que você fosse feliz.


— Eu também. Apesar da raiva, de não compreender e tudo. Eu sempre torci para que você estivesse feliz em algum lugar.


— Obrigada, Marina. Você sempre foi uma excelente amiga.  E vai ser uma mãe maravilhosa. Tenho certeza.


— Obrigada. Eu também acho que sim. Toma.


— O que é isso?


— Não era esse o seu chocolate preferido? Pode comer. Se liberta. A vida seguiu e eu também.


— Obrigada. Quem sabe a gente não marca de sair para conversar melhor e...


— Não. Melhor não.


— É. Tem razão. Bom, de repente um outro dia a gente se esbarra por aí.


— É. De repente. Quem sabe?



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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Se eu fosse


Por Marcela de Holanda


Não mudar é a certeza de morrer sem avançar nenhuma fase no jogo. Mudar dói. Não mudar corrói entre um café e outro, dia a dia. Viver dentro das possibilidades do corpo atrofia a alma. É preciso expandir. É preciso transcender.  Sem coragem não se vai nem do banheiro à cozinha. Com coragem você vai até para lugares que não existem. Você cria novas fronteiras e vai as empurrando até o infinito. Esqueça tudo que trava. É preciso esquecer. Voltar ao estágio inicial, da criança que não sabe do que não é capaz e, por isso, é capaz de tudo. Se amar é possível, o que não será? Acreditar e se jogar. Cair, cair, cair. O fundo? Bem, o fundo não existe.

      
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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A vida do duplo

Por Rec Haddock


João Genaro Silva e Gaulês de Menezes Dantas nascem ao dia 20 de Janeiro de 1922, na mesma maternidade. Colocados em berços vizinhos se observam.

Em 3 dias, João é levado dali pelos seus pais. 

Aos 8, deixa seu irmão mais novo cair de cima de um muro. Leva a maior surra da sua vida.

Aos 12, seu pai lhe paga uma profissional. É o primeiro de sua classe a entrar na vida adulta.

Aos 18, é enviado à guerra. Solicita um cargo administrativo por medo de matar alguém.

Aos 21, volta, veterano, sem puxar o gatilho em combate ao menos uma vez. Ótimo estrategista, matou milhares das mesas em que sentou.

Aos 26, se forma advogado. Sua mãe nunca ficou tão orgulhosa quanto agora.Aos 27, casa com Mariana Melo Mendonça. É o último de sua antiga classe a ser laçado.

Aos 36, tem seu quarto e último filho. Não queria que sua mulher ligasse as trompas, mas ela o fez mesmo assim.

Aos 49, vira avô. Chorou como só tinha feito no dia em que o Japão se rendeu.

Aos 53, perde seus pais. Apesar do orgulho da família que construiu, se sente só pela primeira vez na vida.

Aos 61, perde seu primogênito para a ditadura. Pior que enterrar um filho é não ter corpo para velar.

Aos 62, pega seu neto fumando. Faz com que ele coma todo o maço de cigarro para que nunca fume de novo.

Aos 69, acerta a quina na mega-sena. Volta para a Europa, com sua esposa e não consegue decidir se prefere Florença ou Barcelona.

Aos 73, vê seu neto participar da criação do site Yahoo!. Não faz idéia do que isso virá a Significar.

Aos 74, tem um AVC. Levado ao hospital, só encontra vaga em um quarto compartilhado.

João Genaro Silva e Gaulês de Menezes Dantas dividem o quarto no hospital São Francisco, vitimas do mesmo mal.

Gaulês olha para João e pergunta: "E aí? O que você achou?".

Aos 74, João responde: “Foi bom enquanto durou”.



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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Pequenas Confissões - texto 9 - Coincidência

Por Amanda Leal

Ele me falou que estava confuso e não sabia ao certo o que estávamos vivendo. Ele me pediu um tempo, já era a quarta vez que isso acontecia. Dizia que me amava, mas ao mesmo tempo tinha dúvidas.

Eu estava decidida a terminar, mas eu gostava dele  e ao mesmo tempo eu já estava insatisfeita com tamanha indecisão. O tempo lhe foi dado e eu fiquei leve. Um tempo pode até funcionar pra muita gente, mas para mim não. Já era a quarta vez e essa me soou como última.

Conversei com uns amigos e decidi sair e me divertir.  Encontrei um amigo de infância, eu estava super  animada e bebi um pouco além da conta. Ficamos.

Quando a noite parecia já terminar eu encontro com o meu recém ex-namorado, exatamente depois de um beijo delícia no amigo da infância. Naquele momento eu tive certeza: terminamos.

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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Contramão


Por Marcela de Holanda


Ele era o que se pode chamar de diferente. Ele não fazia sentido em um mundo em que o sentido andava na contramão. Quando nasceu, não chorou. Ninguém ousaria chamar de choro, embora expulsasse o ar dos seus pulmões, tamanha era alegria que ele era capaz de expressar por estar ali, era mais um grito de comemoração, uma declaração de liberdade. No começo, encantava pelas suas peculiaridades, mas conforme foi crescendo elas começaram a incomodar. Recusava-se a competir em qualquer circunstância. Deixava sua mãe irritada quando saíam na rua porque queria parar para conversar com todos os sem teto.  Não conseguia compreender, precisava perguntar, ninguém oferecia uma resposta satisfatória para aquela situação e tudo que sua mãe podia dizer era que as coisas eram assim mesmo e que eles não podiam parar, que era perigoso. Um dia lhe disseram que ele tinha cabelos lindos de fazer inveja. Daquele dia em diante, raspou a cabeça e nunca mais deixou crescer mesmo diante de protestos inconformados e pedidos de namoradas. As namoradas o admiravam enormemente mas ao mesmo tempo não suportavam ficar muito tempo com ele. Ele as exasperava, elas não conseguiam o compreender com aquela ausência de ciúmes, com aquela calma inabalável. Esse menino não existe! Nesse ponto, todos concordavam. Difícil era respeitar suas escolhas, sua alimentação saudável, sua consciência ambiental, seu engajamento político. Para a maioria, era considerado um chato ou uma fraude. Possivelmente alguém que esconde um segredo inominável. Mas ele era só ele. E ele era assim, simples assim. Aos 18 anos, presenciou um grupo de adolescentes espancando um cachorro na rua. Resolveu interferir. Apanhou. Não revidou. O cachorro fugiu. Apanhou. Não revidou. Apanhou. Não revidou. Partiu desse mundo sem uma raiva no coração. Pior para o mundo. Ponto para ele que para cá não voltou mais.


      
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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Aos caçulas

Por Rec Haddock


Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 2015

Irmãozinho,

Não é segredo pra você que durante viagens a gente tem oportunidade de ver coisas novas e voltar mudado, você é um cara mais viajado do que eu. Esta que acabei de fazer me deu a oportunidade de pensar bastante em mim mesmo e na minha relação com as coisas e pessoas.
Por muito tempo eu encarei a nossa relação de uma forma muito pouco saudável, e na viagem percebi isso. A nossa diferença de idade sempre foi um peso pra mim, no sentido em que eu tinha sempre que saber mais e ser melhor do que você (na minha cabeça), por ter vivido muito mais tempo. 

Certamente, por isso, eu te causei muitos problemas e podei muitas potencialidades que você ainda tem aí dentro de si. É muito mais fácil acreditar que eu sei mais e ponto, e te diminuir do que engrandecer a mim mesmo para te superar, entenda.
Acho que te devo desculpas por isso.

Agora eu percebo com clareza o quanto você é um cara fantástico, que sabe muito mais do que eu de determinadas coisas e é bem melhor que seu irmão em outras tantas. Espero que a sua viagem faça você me ultrapassar em mais frentes ainda. Eu espero também poder te ajudar a me superar sempre que for necessário. Por isso sempre que você precisar de mim pra qualquer coisa, fale. Se antes não estava, agora estou aqui pra isso.

Te amo.
Boa viagem.
Vai devorar esse mundo, garoto.


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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Luzes

Por Rodrigo Amém

Era um descampado no meio do nada. Não havia luz, só a confusão de faróis na estrada e estrelas no horizonte, atrás de quilômetros de vegetação rasteira. Em silêncio, dentro do carro de motor desligado e luzes apagadas, Edgard tentava extrair sentido do tráfego distante. Desviava o olhar para o relógio no pulso. Voltava a fitar a distância. Não havia ainda, rigorosamente, atraso. Mas a espera era incômoda. A menina, ainda de saco na cabeça, parecia dormir deitada no banco de traseiro.

Ele revisou mentalmente as instruções passadas na carta. O outro motorista deveria se aproximar e esperar seu sinal para parar, desligar o motor e sair do veículo. Sem polícia. Só o pai da menina. Qualquer sinal de outra presença e a menina rodava. Edgard não queria ter que fazer isso. Não com outra criança.

Volta e meia o dedo decepado latejava. Parecia que doía, mas não estava mais lá. Parecia que o espírito do dedinho permanecia ali, assombrando seu pé. E Edgard se perguntava se aquela tinha sido a melhor coisa a fazer. Talvez, tivesse tido tempo e calma, teria pensado numa outra saída. Mas arrependimento? Não. Edgard não era de se arrepender da dor sofrida. A causada, no entanto, assombrava seus sonhos, latejava. Tal qual o dedinho fantasma.

Um par de luzes desacelerou e deixou o fluxo da estrada.  O coração de Edgard acelerou.  As luzes cresceram na direção do descampado. Edgard virou a chave na ignição e as luzes do painel iluminaram seu semblante teso com um luz tétrica luz vermelha.

Edgard fez os faróis do seu carro piscarem duas vezes. O outro veículo parou. As luzes foram desligadas em ambos os veículos. O outro motorista abriu a porta, desceu e parou na frente do capô.

Para Edgard, era apenas uma silhueta. Não conseguiu distinguir traços da fisionomia do homem, ainda que a lua estivesse fazendo um ótimo trabalho pintando aquela cena de faroeste azul.

-       Cadê o pacote? – A voz de Edgard ecoou no vazio.

-       A menina primeiro. – respondeu o homem.

Edgard deu partida e começou a manobrar o carro de ré. Os faróis acenderam, cegando o homem. 

-       Ok! Ok! Tá no carro! Espera! – desesperou-se o homem, cobrindo os olhos.

Edgard parou o carro. O homem foi, de braços levantados, até a porta do passageiro. Retirou uma pesada sacola de viagem e, com algum esforço a colocou entre os dois veículos.

-       Agora a menina! – disse, andando de costas de volta ao seu veículo.

Alguns momentos se passaram até que a garota atravessasse o espaço entre os dois carros cambaleando e desnorteada. Enquanto acolhia a menina e a coloca segura no banco de trás de seu carro, o homem notou Edgard pegando a sacola e voltando mancando de volta para o seu lado da arena.

-       Ei, você! – gritou o homem - Você já foi à Bahia?

Edgard parou e se virou para o homem. E então ele notou um, dois, três pontos vermelhos dançando em seu próprio peito.

- Foi lá que eu aprendi a não desperdiçar oportunidades – sorriu o delegado Roger, rosto iluminado pela chama de seu isqueiro, a poeira do descampado revelando o caminho entre os pontos no peito de Edgard e a mira laser dos atiradores de elite posicionados em morros além da estrada.


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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Menu do dia

Por Marcela de Holanda


— Eu vou querer esse camarão e uma salada da casa. Você já sabe o que vai pedir?



— Sei.



— Então, chama o garçom, por favor.



— Ainda não.



— Por que não? Eu não comi nada o dia inteiro.



— Eu chamo já. Mas meu pedido não é para ele. É para você.



— Para mim? O que é?



— Eu quero que você me ajude a vender meu apartamento.



— Vai vender? Mas ele é tão bom. Você adora aquele lugar.



— Eu sei. Mas ele não me serve mais e eu vou precisar da grana.



— Bom, te ajudo, claro.



— Não vai me perguntar porque ele não me serve mais?



— Se você quiser me dizer.



— Eu vou me mudar.



— Espero que sim. Se você vender e continuar lá a gente vai ter um problema.



— Gracinha. Eu quis dizer do país.



— O que? Por que? Quando?



— Assim que eu conseguir resolver as coisas por aqui. Mas no máximo em três meses. Me ofereceram uma vaga na filial de Barcelona.



— Uau. Que máximo, Igor. Parabéns.



— Obrigado. Acho que pode ser uma boa oportunidade. 



— Ah, com certeza. E quem sabe assim você consegue esquecer a Mariana de vez.



— Eu já esqueci, Carol.



— Se você diz... Vou sentir saudades de você. Mas quem sabe eu não vá te visitar um dia? Eu sempre quis conhecer Barcelona.



— Sobre isso, eu gostaria que você me ajudasse a achar um apartamento lá.



— Você quer que eu vá até a Espanha para te ajudar a escolher um apartamento para você?



— Na verdade, não.



— Você quer que eu ajude vendo as fotos daqui?



— Também não. Eu quero que você voe até lá comigo e ache um apartamento para nós dois.



— O que?



— Eu quero que você esqueça que eu já fui um babaca de achar que era melhor a gente continuar só como amigos. E que você saiba que eu nunca fui tão feliz quanto nos meses em que nós fomos mais que isso. Eu quero que você esqueça o que eu te contei sobre as outras que vieram depois. Eu quero que você largue tudo e venha comigo. Eu quero que você confie que a gente vai dar um jeito nas coisas. Eu quero tentar de novo. Eu quero que você venha comigo para Barcelona como minha mulher. Ninguém me entende como você, ninguém me faz sorrir como você me faz, ninguém faz um brigadeiro tão gostoso quanto o seu nos dias de chuva, ninguém sabe melhor que você os filmes e as músicas que eu vou gostar, ninguém mais tem coragem de espremer os cravos das minhas costas, ninguém mais me diz a verdade não importa o quanto ela seja dura. Eu te amo, Carol. Eu tive medo de admitir porque eu não queria te perder. Porque eu sempre estrago tudo com as mulheres. Você sabe melhor que ninguém. Mas eu vou fazer o possível para não estragar dessa vez. Você embarca comigo nessa?



— Com licença, os senhores já sabem o que vão pedir?



— Sim.



— Para mim ou para ele?



— Para ele, Igor. Eu vou querer um camarão com uma salada da casa e pro cavalheiro aqui um frango à milanesa com batatas, por favor.



— Alguma coisa para beber?



— Vocês têm espumante?



— Temos, sim, senhora.



— Uma garrafa, por favor.



— Espumante? Então, é uma comemoração. Você aceita o meu pedido?



— Você disse que te deram três meses. Eu te dou dois meses para me fazer feliz a ponto de largar tudo. Pode começar.


      
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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O primeiro amor de um homem

Por Rec Haddock

Aos quinze anos de idade, O Rec se preparou para a escola. Era uma manhã comum de outono, no dia 12 de Outubro. O ano letivo começara uns meses antes, em Agosto, e aquele prometia ser um dia sem novidades. Cinza, frio e tedioso.

O trajeto de bicicleta foi marcado por um incidente incomum até para O Rec, acostumado a ver coisas que os outros não eram capazes de enxergar:  na ciclovia, à sua frente, um homem de vinte e poucos pedalava, quando uma mulher mais bonita que a maioria passou por eles pela esquerda, na contramão, também de bicicleta. O homem à sua frente ficou hipnotizado por aquela presença, e olhou fixamente para a bunda que se afastava.

No sentido contrário, vinha outro homem de vinte e poucos que olhos atentos diriam ser igual ao que ia afrente dO Rec. Previsivelmente, também ficou hipnotizado por aquela presença e fez o que os homens fazem. Torceu seu pescoço e olhou para a bunda da qual se afastava.

O que nenhum dos iguais viu foi o seu reflexo. Bateram de frente, cada qual caindo da bicicleta com um estrondo e uma coleção de ferimentos variados. O Rec conseguiu evitar os colisores sem dificuldade, tendo previsto o acidente.

Sem mais, chegou à escola. Lá não incomodou nem foi incomodado, como de costume. Sentou-se ao fundo e dormiu boa parte do dia, com a cabeça apoiada nos braços, sobre a mesa. Se havia alguma coisa em que O Rec era bom a ponto de se tornar um prodígio, esta coisa era sonhar.

A princípio tomou aquilo justamente por um sonho. Depois achou estar alucinando. A mulher da bicicleta estava na sua sala. Acordando ele. A princípio O Rec não conseguiu associá-la ao ocorrido mais cedo, mas depois reconheceu a bunda.

- Que merda é essa, garoto? Você acha que isso é um spa? Se você queria dormir não devia andar tão rápido de bicicleta vindo pra cá – ela disse. Depois piscou um olho para O Rec e deu uma mordidinha no lábio inferior, o que só contribuía para a teoria de que ele estava sonhando ou alucinando. Além de reconhecê-lo, tentava seduzi-lo?

- Como eu ia dizendo, a dona Adélia não vai poder dar as suas aulas de química por um mês e meio, e durante este tempo, vocês vão ter que me aturar no lugar dela. O cabelo dela é suave como a lábia de um cafajeste. Vocês estão muito atrasados na matéria... Os olhos são profundos como só o corte de uma navalha... aldeído mais conhecido é o metanal... Sua boca é tão tentadora quanto a corrupção... nada a ver com qualquer trocadilho que possa estar passando na sua mente. O sorriso é fácil como roubar doce de criança... na página 37 do livro didático... O pescoço é longo como os minutos na cadeira do dentista... entender as reações que acontecem nos nossos cérebros. É por isso que os homens agem como neandertais.

- Eles acham que são mais civilizados que os outros, mas são só reflexos involuntários, muitas vezes preconceituosos, machistas e retrógrados, de reações químicas que acontecem aqui – ela bateu uma vez com o dedo indicador na testa dO Rec.


Parou de divagar. Podia ter se sentido ofendido, mas o Rec reconheceu verdade naquelas palavras e naquele dia, ele não voltou a dormir nem na escola, nem na sua cama, à noite.



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segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Ranger de dentes

Por Rodrigo Amém


A babá fez o melhor que pôde para suturar o pé de Edgard, um mindinho a menos. Mas faltou anestésico, faltou gaze, faltou hospital. E toda vez que ele precisava pisar no freio, a dor latejante gerava movimentos bruscos do automóvel.  A mandíbula de Edgard ardia de tanto ranger dentes. A freada acordou Sarah.

A menina tentou se sentar no banco traseiro. As mãos amarradas nas costas tornaram a tarefa ligeiramente mais difícil. O saco de estopa que cobria sua cabeça pinicava seu rosto e suas orelhas. Somente as luzes difusas dos carros penetravam sua cegueira improvisada.

Pelo retrovisor, Edgard percebeu que a sua refém estava consciente.

-       Fica deitada. – disse ele, num tom seco.

Sarah reconheceu aquela voz. Era o homem que, dois dias atrás, tinha entrado no seu cativeiro com um facão, tirado o sapato e cortado o próprio dedo fora. Sarah gritou diante daquele horror todo, aquele sangue todo. Mas depois ela entendeu que o homem tinha feito aquilo para poupá-la. Então Sarah ficou ainda mais confusa.

Por que alguém – principalmente um bandido, um homem mau – faria isso? Por que cortar o próprio dedo para não ferir uma vítima. A menos que fosse a única alternativa. A menos que ele precisasse sair daquele quarto com um dedo decepado, caso contrário alguém menos piedoso viria fazer o serviço. A menos que esse bandido não fosse um homem tão mau assim. Sarah sentiu-se ligeiramente mais segura na presença daquela voz.

- Pra onde a gente está indo?

- Seu pai pagou. Você vai pra casa. Abaixa.

- Obrigada, moço.

- Fica abaixada. Não vou dizer de novo.

Sarah deitou no banco.  Um celular tocou.

-       Fala. – Atendeu Edgard.

-       Ele chegou. – disse a voz do outro lado.

 -       Tá tudo tranquilo?

-       Tudo. Não tem truque, não. Pode vir. – respondeu Léo.

Edgard desligou e acelerou, rangendo os dentes.



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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Pequenas Confissões - texto 8- Pombinha branca

Por Amanda Leal





Era onze e meia quando decidi puxar uma cadeira e conversar com Deus. Certa de que eu estava fazendo o melhor pra minha vida eu comecei a desabafar, eu não podia mais ser a mesma em 2015. Sentada eu estava confortável demais, ainda estava fácil pra mim...Eu não tinha saído da minha zona de conforto e foi então que eu resolvi ajoelhar. Por mais desconfortável que fosse eu precisava fazer um sacrifício, tudo fluiu melhor depois daquilo. Eu sabia exatamente o que dizer e por onde começar. 

Pedi fortemente que no novo ano eu me tornasse uma pessoa melhor, que pudesse compreender com mais facilidade os meus tropeços e não me julgasse tanto, pedi que minha vida fosse mais divertida, pois eu havia sentido que em 2014 eu não tinha rido demais. Pedi que minha paciência pudesse ser grande e que minhas TPM'S fossem brandas e que não atingissem ninguém, se não a eu mesma. 

Então, como que numa revelação eu comecei a visualizar o ano que queria: um emprego que eu gostasse, uma casa simples que eu pudesse pagar, a família tranquila e estabilizada financeiramente. Na verdade o que eu visualizava ali era bem diferente do que eu mesma sonhara até então. 

Em 2014, eu havia pedido muito dinheiro, um carro, um apartamento de cobertura, uma festa de casamento incrível e um emprego que fizesse de mim muito bem- sucedida. Tomada pelo desespero em conseguir tudo isso eu acabei não conseguindo nada, não sai do lugar. Fiquei parada à espera de um milagre. 

Com o coração cheio de emoção, eu fui sincera e desabei em silêncio e profunda concentração. Podia sentir uma energia boa naquela noite, não só por conta da virada do ano, mas uma energia especial, energia essa que eu não sentia há um tempo. Só abri os olhos quando os fogos começaram e quando meus amigos e parentes me abraçaram e desejaram feliz ano novo. 

Na janela, vendo os fogos refletirem no mar o meu amor me abraçou tão forte que eu poderia ficar assim por horas sem me mexer. Foi uma sensação de completude e de paz tão deliciosa quanto à brisa da manhã. E como que num passe de mágica, uma pomba branca passou na nossa frente na janela do décimo andar. Não sei se assustada com os fogos e desesperada para encontrar abrigo nas coberturas dos prédios da cidade, ou se porque simplesmente veio colorir o cenário a nossa frente. 

Tudo ficou mais bonito a partir daquele momento, voltei a sentir certeza de mim mesma e vi que muita coisa já havia se modificado naquele comecinho de ano. Levantar da cadeira e ajoelhar foi apenas o início, olhar para trás e enxergar o tanto que já deu certo e o tantão que ainda precisa mudar foi mágico. 

Revi minha vida e fiquei feliz,estou caminhando. Sei que não foi à toa que Deus me chamou para conversar, acho que 2015 vai ser o ano! E por mais que a maioria diga que a pomba branca estava ali por acaso, eu tenho sérias desconfianças. Deus sabe de todas as coisas...


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