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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O dedo

Por Rodrigo Amém

A porta se fechou atrás de Edgard. Tudo ao redor era escuridão e soluços amedrontados. Suas pupilas revelavam detalhes na penumbra na medida em que dilatavam. Um colchão, restos de comida, barata. Uma garotinha abraçada aos próprios joelhos, chorando baixinho. Ela era magra, cabelos negros, muito lisos. Com a vista acostumada, Edgard agora percebia o reflexo das lágrimas no rosto da menina.  Edgard se curvou e aproximou-se. Ela começou a gritar.

- Não, não, por favor! – implorou a menina.

- Cala a boca, garota. – a voz de Edgard era baixa e firme.

De perto, a menina parecia um fantasma. Uma imagem do passado de Edgard, dos seus tempos de Palmira.  Ela tinha os olhos de Jandira. Jandira era a irmã mais velha do Galeto. Linda em sua brejeirice, Jandira olhava para os moleques da vila com o desprezo que três anos de diferença lhe permitia. Eram crianças.  Jandira só queria a companhia de homens mais velhos. Edgard, azarado, era garoto. Um dia, um homem mais velho quebrou o pescoço de Jandira. E os moleques da rua foram privados até mesmo do desprezo de sua musa. 

No horror dos olhos daquela garotinha, Edgard viu o horror de Jandira. O medo diante do abuso. O último olhar de Jandira para seu agressor não fora muito diferente, pensou.

- Qual é o seu nome? – perguntou para a menina que chorava baixinho.

- S...Sarah...

- Presta atenção, Sarah. Eu não quero machucar você. Mas não tem jeito.
Sarah começou a chorar mais alto, peito cheio de pavor.  Edgard cravou o facão na parede rente à cabeça da menina. Ela congelou.

- Agora, presta atenção. Se eu não fizer isso, eles vão matar minha nenê.  Acho que a gente pode chegar num acordo.  Você escolhe o dedo. Eu faço o serviço mais rápido que der. Você nem vai sentir direito. Eu levo o dedo, mando pro seu pai, ele paga o resgate, você sai daqui viva. Se você se negar e eu sair daqui sem o dedo, eles matam minha filha. Então, acho que você sabe que isso não vai acontecer. Se você me ajudar, vai ser melhor.
Sarah parecia prestes a entrar em choque, na corda-bamba entre desespero e loucura. 

 Edgard levou a mão ao pescoço dela. 

- Escolhe – ameaçou.

Sarah olhou para as mãos. Chorou. Finalmente, estendeu o dedo mindinho da mão direita.

- Tem certeza? – perguntou Edgard.

- É o único que eu não uso nas aulas de violão... – murmurou a menina.

O grito da garota reverberou por todo barraco.  Edgard saiu do quarto carregando um pano ensanguentado enrolado. 

- Ninguém entra até eu voltar com curativos. – Disse ele para o marginal de guarda. Na porta do casebre, Pereira pediu pra ver o serviço. O dedo, empapado em sangue, era indistinguível de uma salsicha, ou de um rabo de ratazana, não fosse a unha e o pedaço de osso exposto. Era pequeno, curto, inchado. Pereira desviou o olho. 

- Não sei como você consegue, mano.

Edgard não respondeu. Embrulhou o dedo no pano e seguiu seu caminho. Mancando levemente.



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