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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A Última Gravação de Rec PARTE 2 DE 4

Por Rec Haddock


INT. CONSULTÓRIO DO TERAPEUTA. MANHÃ.

REC, agora um homem com 50 anos de idade, está sentado em uma cadeira, de frente para uma mesa totalmente vazia, a não ser por um pequeno toca-fitas. Ele tamborila a mesa com a ponta de seus dedos e olha fixamente para o toca-fitas, através de seus óculos escuros. Do outro lado da mesa, sentado em outra cadeira, está o TERAPEUTA, que está digitando algo em seu tablet. 

Vemos o terapeuta marcando uma consulta para Rec Haddock em Primeiro de Junho de 2038, na tela do Tablet. Vemos também que é dia 25 de Maio do mesmo ano.

Vemos pela janela do consultório um dia claro. O Terapeuta baixa o tablet e olha para o seu paciente, que para de tamborilar os dedos na mesa, mas não desvia o olhar do toca-fitas.

TERAPEUTA
Você não quer tirar os óculos?

REC HADDOCK
A luz machuca a minha vista.

TERAPEUTA
Eu posso baixar a persiana. 

REC HADDOCK
Não é o caso. Obrigado.

TERAPEUTA
Eu preferia que você tirasse os óculos mesmo assim.

Rec olha para o terapeuta, longamente. Tira os óculos escuros lentamente e revela olhos inchados de choro. Os dois se encaram por um tempo, sem que nenhum dos dois fale.

REC HADDOCK
Quem tem um toca-fitas hoje em dia? 

TERAPEUTA
Quando fico nervoso, gosto da sensação de ouvir as mesmas fitas que a minha mãe ouvia quando estava nervosa. Me acalma.

REC HADDOCK
Rá.

TERAPEUTA
O que foi?

REC HADDOCK
O senhor não me parecia um homem nostálgico.

TERAPEUTA
A gente nunca é o que parece, né?

O Terapeuta se levanta, vai até um armário atrás de sua cadeira, o abre e pega um case com várias fitas cassete. Escolhe uma.

Vemos que é uma fita com o encarte escrito em hebraico. O nome do artista está em letras latinas e é Yehoram Gaon.

O Terapeuta coloca a fita no toca-fitas e dá o play. Ouvimos “Avre tu puerta” ao fundo. Rec fica olhando para o aparelho, fixamente, enquanto o Terapeuta olha para o seu paciente.

REC HADDOCK
Bonito.

O Terapeuta sorri.

REC HADDOCK (CONT’D)
Eu não tenho isso. Não herdei nenhuma música dos meus pais. Sua mãe morreu?

TERAPEUTA
Não estamos aqui para falar de mim.

REC HADDOCK
Claro. O senhor tem razão. 

Rec fecha os olhos e balança a cabeça no ritmo da música. 

TERAPEUTA
Você acha que perdeu a chance de conhecer melhor os seus pais?

Rec abre os olhos e olha para o Terapeuta.

REC HADDOCK
Não. A gente não conversava muito porque falar de coisas triviais nunca me interessou. Acho enfadonho todo este protocolo social de você fala da sua vida ordinária e eu finjo que me interesso.

Rec desliga o toca-fitas.

REC HADDOCK (CONT’D)
Eles me ensinaram o que sabiam da vida. Conheci bastante bem eles nesse processo. Nunca precisei de mais do que isso para amar meus pais, se isso te interessa. Não tenho nenhum problema com isso.

O terapeuta olha com expectativa para seu paciente em silêncio.

REC HADDOCK (CONT’D)
O meu problema é comigo mesmo. Eu sempre achei que fosse um artista. Rá. Hoje eu nem sei mais o que é arte. Tentei acontecer como ator, cantor, compositor, diretor, dramaturgo, pintor e agora como escritor. Nada funciona. Eu deixei de acreditar que eu posso.

Estou escrevendo um livro infantil. É sobre a morte da minha mãe, contada de uma forma lúdica. Ela voa num balão, no fim. Uma editora entrou em contato, interessada em ler o livro, baseada na sinopse.

Rec volta a tamborilar o tampo da mesa com a ponta de seus dedos. Fica em silêncio por um tempo, olhando a janela.

TERAPEUTA
Isso não é bom?

REC HADDOCK
Não. O livro não está pronto. Tenho certeza que se eles lessem o livro agora, eu não ia conseguir vender.

TERAPEUTA
E você acha que o livro é bom?

REC HADDOCK
Acho que vai ficar ótimo com mais tempo de trabalho.

Rec tira uma banana de sua bolsa e começa a comê-la.

REC HADDOCK (CONT’D)
Desculpa, doutor. Estou morrendo de fome. Tem problema?

TERAPEUTA
Nenhum. Sabe, Rec. Eu me pergunto se você não está com medo de publicar este livro.

REC HADDOCK
Não. Eu não tenho mais medo de fracassar profissionalmente. Já perdi o bonde do sucesso há muito tempo.

TERAPEUTA
Eu digo que acho que você está com medo de publicar este livro, porque acho que você tem medo de fazer sucesso. É muito comum se acomodar com a situação em que você se encontra, mesmo que ela seja uma situação perversa para você. Em casos como este, a pessoa faz tudo para manter seu padrão de vida, inconscientemente. 

REC HADDOCK
O senhor está enganado, doutor. Eu sempre corri atrás do sucesso. Você sabe o que eu fiz quando tinha 27 anos?

TERAPEUTA
O quê?

REC HADDOCK
Era o meu aniversário. Eu tinha uma entrevista de emprego às dez da manhã, para uma vaga de professor de História da Arte. Me ligaram às oito, para cancelar a minha entrevista, porque a vaga já tinha sido preenchida. Eu falei que aquilo não era possível, que eles estavam abrindo mão do melhor profissional sem que soubessem e que eu ia fazer a minha entrevista mesmo que fosse para mostrar a eles que estavam errados. Eles falaram ao telefone que não adiantava, que o DP já tinha dado entrada nos papéis de contratação e que o contrato já tinha sido assinado. Falei para a secretária que não tinha problema. Ou aquela vaga seria minha, ou eu não me chamava Rec Haddock.

CORTA PARA



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