Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
De qualquer forma, nada é igual.
Aqui cada dia é dia de um texto diferente.
Quer sair da rotina? Fica com o Salada!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O que em ti voa – O convite

Por Marcela de Holanda



Era um domingo de sol e Fernando olhava desolado para o painel do Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, onde dizia que seu voo estava com um atraso de duas horas previsto. Ele já não sabia muito bem porque estava ali. Não estava muito certo da sua decisão. Resolveu dar uma volta pelo aeroporto para refletir antes de despachar sua mala.

Na área de embarques nacionais, uma mulher chamou sua atenção. Ela estava sentada com os pés em cima da cadeira, tinha o cabelo preso de uma maneira meio desajeitada e olhos cor de mel que pareciam devorar o livro à frente. Se aproximou um pouco mais e viu que era um guia de Paris. Uma ideia louca passou pela sua cabeça. Mas ele andava tão mal nos últimos dias que só de pensar naquela pequena loucura foi invadido de uma nova esperança. Resolveu arriscar. Sentou ao lado da mulher que lia o guia e uns minutos depois tomou coragem para falar.

— Com licença, acho que você está na área errada. Os embarques para Paris não são aqui.

— Ahn? Quem disse que eu estou indo para Paris?

— O livro.

—  Ah, não. É só um livro.

— Me desculpa então. Presumi errado. Deixa eu me apresentar. Meu nome é Fernando. Posso saber o seu?

— Clara.

— E posso saber seu destino, Clara?

— Curitiba.

— Passeio?

— Mãe.

— Você é de lá?

— Sou.

— Nossa. Não tem nenhum sotaque.

— Faz tempo.

— E você gostaria de ir a Paris?

— Que tipo de pergunta é essa?

— Não é uma pergunta. É um convite.

— Tá louco? Obrigada, mas eu não estou interessada.

— Espera. Você ainda nem ouviu a minha proposta.

— Nem preciso.

— Não é que o você está pensando. Sem querer ofender, eu não estou interessado em você. Eu preciso da sua ajuda. Queria propor uma troca.

— Troca? To ouvindo.

— Olha, eu vou ser bem sincero e direto porque a gente não tem muito tempo. Mas antes de tudo, o mais importante. Você por acaso tá com o seu passaporte aí?

— To. Eu estou sempre com ele. Gosto de pensar que posso ir para onde quiser quando quiser.

—  Sabia que você era a pessoa certa. Acontece que eu tenho uma viagem completa reservada para duas pessoas passando pela Itália, França, Inglaterra e Espanha. Mas como você pode ver, eu estou sozinho. Planejei tudo durante um ano para ir com a minha namorada. A gente ia comemorar nosso aniversário de quatro anos de namoro e eu pretendia pedir a mão dela. Mas ontem, com as malas prontas, ela surtou. Não vou entrar em detalhes agora. Mas ela foi embora, disse que eu era muito previsível e que ela não aguentava mais e eu quero provar que ela estava errada. Eu sei que ela é a mulher da minha vida e que ainda vai perceber que eu sou o homem da vida dela. Por isso resolvi ir mesmo sem ela. Porque não é o que ela espera que eu faça. Quando te vi sentada aí me passou uma coisa pela cabeça. Se eu viajasse com uma completa desconhecida seria totalmente imprevisível. E você poderia registrar toda a viagem pra mostrar pra ela tudo que ela perdeu e como eu posso ser divertido. Em troca, você conhece todos esses lugares de graça. Eu compro sua passagem agora e a gente vai.

— Olha, não sei não. Eu não te conheço e nem tenho roupas para isso. Em Curitiba faz frio, mas nem tanto. E eu só trouxe essa mala de mão.

— Eu compro o que você precisar quando a gente chegar lá.

— Mas se estava tudo reservado para um casal, eu vou ter que dormir com você?

— No mesmo quarto. Mas peço para colocarem duas camas de solteiro e não encosto um dedo em você.

— E como eu vou saber que tudo isso é verdade?

— Você vai ter que acreditar na tristeza dos meus olhos.

— Não sei não.

— O voo sai daqui a pouco. É minha última chance de comprar a sua passagem. Ainda tenho que despachar minha mala. Você vai ou não?

— Vou.

— Ótimo. Deixa que eu levo a sua mala.

Clara sorri sem a menor certeza do que está fazendo. Mas não consegue resistir à ideia de mudar seu destino de uma hora para outra. Essa sensação de ser dona do próprio caminho, de mudar seu mundo com as suas escolhas. Furada ou não, era alguma coisa nova acontecendo. A mãe teria que esperar um pouco mais.



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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A Última Gravação de Rec PARTE 2 DE 4

Por Rec Haddock


INT. CONSULTÓRIO DO TERAPEUTA. MANHÃ.

REC, agora um homem com 50 anos de idade, está sentado em uma cadeira, de frente para uma mesa totalmente vazia, a não ser por um pequeno toca-fitas. Ele tamborila a mesa com a ponta de seus dedos e olha fixamente para o toca-fitas, através de seus óculos escuros. Do outro lado da mesa, sentado em outra cadeira, está o TERAPEUTA, que está digitando algo em seu tablet. 

Vemos o terapeuta marcando uma consulta para Rec Haddock em Primeiro de Junho de 2038, na tela do Tablet. Vemos também que é dia 25 de Maio do mesmo ano.

Vemos pela janela do consultório um dia claro. O Terapeuta baixa o tablet e olha para o seu paciente, que para de tamborilar os dedos na mesa, mas não desvia o olhar do toca-fitas.

TERAPEUTA
Você não quer tirar os óculos?

REC HADDOCK
A luz machuca a minha vista.

TERAPEUTA
Eu posso baixar a persiana. 

REC HADDOCK
Não é o caso. Obrigado.

TERAPEUTA
Eu preferia que você tirasse os óculos mesmo assim.

Rec olha para o terapeuta, longamente. Tira os óculos escuros lentamente e revela olhos inchados de choro. Os dois se encaram por um tempo, sem que nenhum dos dois fale.

REC HADDOCK
Quem tem um toca-fitas hoje em dia? 

TERAPEUTA
Quando fico nervoso, gosto da sensação de ouvir as mesmas fitas que a minha mãe ouvia quando estava nervosa. Me acalma.

REC HADDOCK
Rá.

TERAPEUTA
O que foi?

REC HADDOCK
O senhor não me parecia um homem nostálgico.

TERAPEUTA
A gente nunca é o que parece, né?

O Terapeuta se levanta, vai até um armário atrás de sua cadeira, o abre e pega um case com várias fitas cassete. Escolhe uma.

Vemos que é uma fita com o encarte escrito em hebraico. O nome do artista está em letras latinas e é Yehoram Gaon.

O Terapeuta coloca a fita no toca-fitas e dá o play. Ouvimos “Avre tu puerta” ao fundo. Rec fica olhando para o aparelho, fixamente, enquanto o Terapeuta olha para o seu paciente.

REC HADDOCK
Bonito.

O Terapeuta sorri.

REC HADDOCK (CONT’D)
Eu não tenho isso. Não herdei nenhuma música dos meus pais. Sua mãe morreu?

TERAPEUTA
Não estamos aqui para falar de mim.

REC HADDOCK
Claro. O senhor tem razão. 

Rec fecha os olhos e balança a cabeça no ritmo da música. 

TERAPEUTA
Você acha que perdeu a chance de conhecer melhor os seus pais?

Rec abre os olhos e olha para o Terapeuta.

REC HADDOCK
Não. A gente não conversava muito porque falar de coisas triviais nunca me interessou. Acho enfadonho todo este protocolo social de você fala da sua vida ordinária e eu finjo que me interesso.

Rec desliga o toca-fitas.

REC HADDOCK (CONT’D)
Eles me ensinaram o que sabiam da vida. Conheci bastante bem eles nesse processo. Nunca precisei de mais do que isso para amar meus pais, se isso te interessa. Não tenho nenhum problema com isso.

O terapeuta olha com expectativa para seu paciente em silêncio.

REC HADDOCK (CONT’D)
O meu problema é comigo mesmo. Eu sempre achei que fosse um artista. Rá. Hoje eu nem sei mais o que é arte. Tentei acontecer como ator, cantor, compositor, diretor, dramaturgo, pintor e agora como escritor. Nada funciona. Eu deixei de acreditar que eu posso.

Estou escrevendo um livro infantil. É sobre a morte da minha mãe, contada de uma forma lúdica. Ela voa num balão, no fim. Uma editora entrou em contato, interessada em ler o livro, baseada na sinopse.

Rec volta a tamborilar o tampo da mesa com a ponta de seus dedos. Fica em silêncio por um tempo, olhando a janela.

TERAPEUTA
Isso não é bom?

REC HADDOCK
Não. O livro não está pronto. Tenho certeza que se eles lessem o livro agora, eu não ia conseguir vender.

TERAPEUTA
E você acha que o livro é bom?

REC HADDOCK
Acho que vai ficar ótimo com mais tempo de trabalho.

Rec tira uma banana de sua bolsa e começa a comê-la.

REC HADDOCK (CONT’D)
Desculpa, doutor. Estou morrendo de fome. Tem problema?

TERAPEUTA
Nenhum. Sabe, Rec. Eu me pergunto se você não está com medo de publicar este livro.

REC HADDOCK
Não. Eu não tenho mais medo de fracassar profissionalmente. Já perdi o bonde do sucesso há muito tempo.

TERAPEUTA
Eu digo que acho que você está com medo de publicar este livro, porque acho que você tem medo de fazer sucesso. É muito comum se acomodar com a situação em que você se encontra, mesmo que ela seja uma situação perversa para você. Em casos como este, a pessoa faz tudo para manter seu padrão de vida, inconscientemente. 

REC HADDOCK
O senhor está enganado, doutor. Eu sempre corri atrás do sucesso. Você sabe o que eu fiz quando tinha 27 anos?

TERAPEUTA
O quê?

REC HADDOCK
Era o meu aniversário. Eu tinha uma entrevista de emprego às dez da manhã, para uma vaga de professor de História da Arte. Me ligaram às oito, para cancelar a minha entrevista, porque a vaga já tinha sido preenchida. Eu falei que aquilo não era possível, que eles estavam abrindo mão do melhor profissional sem que soubessem e que eu ia fazer a minha entrevista mesmo que fosse para mostrar a eles que estavam errados. Eles falaram ao telefone que não adiantava, que o DP já tinha dado entrada nos papéis de contratação e que o contrato já tinha sido assinado. Falei para a secretária que não tinha problema. Ou aquela vaga seria minha, ou eu não me chamava Rec Haddock.

CORTA PARA



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segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Oportunidades

Por Rodrigo Amém

Só uma mesa e duas cadeiras. Era uma sala nua iluminada por uma luz fria, oscilante. O zumbido da eletricidade só era interrompido pelo soar de telefones reverberando à distância.  A cabeça de Léo girava. Ele tentou levar as mãos ao rosto, mas o movimento foi interrompido por um puxão nos punhos.  A lembrança das mãos algemadas relembrou Léo da gravidade da situação.

Os conselhos de Seteoito para situações de enfrentamento com as autoridades começaram a emergir por entre pensamentos desconexos. Mantenha a boca fechada. Peça um advogado. Não responda nada. Não concorde com nada. Ignore as perguntas. Aguente a dor. Qual o telefone do doutor, mesmo?

A porta se abriu antes que Léo pudesse se lembrar. Não era um PM. Com certeza, não. Não parecia nem ser policial.  Talvez um defensor público, mas era cedo ainda. A menos que tivessem alguma coisa grande contra ele. Um filme começou a passar na cabeça de Léo. Os últimos delitos, os trabalhos mais recentes. Será que ele tinha pisado na bola?

O homem sentou-se no outro lado da mesa, de frente para Léo. Colocou dois copos de água sobre a mesa. Com a ponta dos dedos, empurrou suavemente um deles para o meliante atônito.

- Bebe.

Com os olhos, Léo disse algo como “você acha que eu sou Mané? Que eu vou cair nesse papinho de amiguinho? Tá achando que esse é minha primeira dura? Se liga, otário!”

- Tô com sede não, senhor – foi o que Léo disse em voz alta, numa calculada falsa humildade.

O homem sorriu.

- Você já foi à Bahia?

Léo levantou os olhos e encarou o homem, sem entender de onde diabos tinha saído aquele tópico. Seu cérebro buscou rapidamente algo na sua ficha corrida que tivesse relação com algum baiano, cantor de Axé, percussionista. Nada. Nada!

- Não, senhor... – respondeu confuso.

- Era a minha programação de férias. Todo ano, nas férias de janeiro, meu pai juntava minha mãe, eu e meus irmãos e a gente ia pra Salvador. O velho era de lá. “Meu filho, se Deus fez lugar melhor, guardou pra ele!”

Aquilo era tão fora de contexto que, por um momento, Léo esqueceu que estava na boca do lobo.

- Só que a gente era uma família humilde. Avião era caro demais. A gente ia de fusca. É. Eu sei. Quase dois dias de viagem. Era cansativo que só. Mas ninguém dentro daquele carro tinha mais pressa que o meu pai. Ele queria chegar logo. Ir pra praia. Relaxar.  E se tinha uma coisa que tirava meu velho do sério era parar pra ir ao banheiro. Então, antes de entrar na estrada, ele falava: “São seis horas da manhã. Essa charanga só para às seis da tarde. Não quero saber se estão com vontade ou não. Aproveitem a oportunidade”.

 Léo olhou para o copo em sua frente.

- Meu pai me ensinou muitas coisas na vida. Nessas viagens, eu aprendi a planejar. A ter paciência. A ter resistência. Mas o mais importante: eu aprendi a não deixar de aproveitar as oportunidades que a vida me oferece. Tá vendo esse copo? Pensa nele como uma oportunidade que eu te ofereci. Você não sabe quando é que você vai ter a chance de beber água de novo, sabe?

O homem estendeu a mão, pegou o copo de água e lentamente o entornou no chão da sala.

- É impressionante a velocidade em que a necessidade muda um comportamento. Em algumas horas, uma pessoa que não tinha sede se vê disposta a lamber água do chão para sobreviver.

Léo arregalou os olhos.

- Quando eu voltar, amanhã ou depois, eu vou lhe dar uma nova oportunidade. Mas agora ela virá com um preço.

O homem se levantou e caminhou até a porta.

- Você vai me contar o que você sabe sobre o Açougueiro do Convento.

O girar de cabeça atônito de Léo entregou que ele sabia exatamente de quem se tratava.

- Bom saber que o nome é familiar. Até breve.

Antes de sair, o homem disse mais uma coisa.

- Ah, se você mudar de ideia e quiser fazer proveito da sua oportunidade mais cedo, diga pro guarda que você quer falar comigo. Meu nome é delegado Roger.

A porta se fechou e Léo encarou a poça d’água perto dos seus pés.




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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Rosto

Por Marcela de Holanda



E sem que percebesse, por trás das máscaras já não havia mais rosto. Havia se dissolvido ao longo dos anos por falta de uso. Eram tantas máscaras uma por cima da outra, uma para cada ocasião. Usava qualquer uma com maestria, mas não as tirava nem para dormir. Foi pega desprevenida quando todas caíram de uma vez ao encontrar com ela, aquela mascarada de definitiva. A Morte. Olhou-se através dos olhos dela e viu sendo refletida apenas uma moldura disforme. Tentou caminhar na direção da Luz como tinha ouvido dizer que era o certo, mas não tinha coragem de chegar seja onde fosse naquele estado. Vagou por aí a procura de outras máscaras, de outros rostos, de si mesma. Nada encontrou além do nada que por toda parte havia. Sem ser propriamente ninguém, ela não era capaz de chegar a lugar algum. Paralisou. Incapaz de se mover começou um percurso diferente. Andou por todo canto lá dentro juntando pequenos pedaços de quem tinha sido enquanto ainda era. Chegou à conclusão de que teria que se reinventar. E quando começou, nasceu para uma nova vida e fez tudo diferente.



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terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A Última Gravação de Rec PARTE 1 DE 4

Por Rec Haddock


INT. ESCRITÓRIO SUJO. NOITE.

REC HADDOCK, um senhor de 80 anos, está sujo como quem não toma banho há dias, sentado em uma cadeira enferrujada, defronte a uma mesa cheia de papéis e fitas cassete espalhados além de dois gravadores antigos de fita cassete.

Vemos um ambiente sem janelas tão sujo quanto seu ocupante, mal-iluminado e extremamente silencioso. Além de sujo, tudo está bagunçado à volta do idoso.

Ele se levanta, vai até um armário de arquivo, abre uma das gavetas e tira uma banana lá de dentro, junto com uma pasta de arquivo, onde se lê o número 2015. Fecha a gaveta e volta a se sentar na cadeira enferrujada.

Descasca a banana, começa a comê-la, liga um gravador e abre o arquivo que estava sobre a mesa.

REC HADDOCK
Sou eu, novamente. Não haveria de ter mais alguém que falasse nessa coisa.

Rec dá uma mordida grande na banana.

REC HADDOCK (CONT’D)
Hoje é o dia 25 de Maio, de novo. O meu octogésimo. Estive lendo o arquivo 2038, o qüinquagésimo, e pude perceber mais uma vez o quanto era um idiota.

Rec dá mais uma mordida na banana e acaba com ela.

REC HADDOCK (CONT’D)
Você acha que pode depender dos outros. Pois não pode, pode? Se depender dos outros levasse a algum lugar, eu não estava aqui preso a um senhorio que me cobra um aluguel de oito quartos em uma sala comercial no subúrbio da civilização.

Meu filho morreu este ano. Não foi câncer, nem um acidente. Não foi nenhuma doença séria. Foi só velhice. O corpo dele parou de funcionar.
Nem com o corpo dos jovens podemos mais contar.

Rec desliga o gravador. Suspira. Levanta, vai até o lixo, tira uma banana lá de dentro e a descasca. Senta e começa a comê-la. Liga novamente o gravador.

REC HADDOCK (CONT’D)
Não foram poucas as pessoas em que confiei na minha vida. Quase todas as nossas relações são baseadas em confiança. Mulher, filhos, amigos, vereadores, policiais, terapeuta. Cada um deles, atestado da nossa demência e incapacidade de nos percebermos como seres solitários.

Liga o outro gravador, enquanto dá uma mordida na banana. Ouvimos uma gravação, enquanto vemos Rec mastigar sua banana.

GRAVAÇÃO
Consegui mais do que imaginava neste ano. O destino foi bom pra mim.

REC HADDOCK
Rá! Você não conseguiu nada!

GRAVAÇÃO
Meu primeiro livro finalmente vai ser publicado. Fechei o acordo há duas semanas.

REC HADDOCK
Se a editora não tivesse fechado.

GRAVAÇÃO
A história é linda, sobre uma menina e seu balão. Ela me veio à cabeça no funeral da minha mãe.

REC HADDOCK
Outra que me abandonou! Rá!

GRAVAÇÃO
Minha mãe não pode ver o meu livro publicado, mas sei que acreditava que eu conseguiria. 
Agora eu sei que só vou conseguir por causa dela.

REC HADDOCK
Chega!

Rec enfia o que resta da banana no botão “stop” do gravador que está reproduzindo a fita.

REC HADDOCK (CONT’D)
A ingenuidade serve apenas aos analistas, que de bom grado exploram as carências de seus pacientes. Naquele ano, fazia terapia. Por um tempo parecia que ia me ajudar a superar a morte da minha mãe e a separação da Nathasha, mas só me ajudou a aliviar o peso do bolso traseiro da minha calça. Devia ter procurado outras putas. Talvez não tenha tido a grandeza deste pensamento porque a que me largou com um filho e um casamento falido me custou muito caro.

CORTA PARA

INT. SALA DO TERAPEUTA. TARDE.



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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O dedo

Por Rodrigo Amém

A porta se fechou atrás de Edgard. Tudo ao redor era escuridão e soluços amedrontados. Suas pupilas revelavam detalhes na penumbra na medida em que dilatavam. Um colchão, restos de comida, barata. Uma garotinha abraçada aos próprios joelhos, chorando baixinho. Ela era magra, cabelos negros, muito lisos. Com a vista acostumada, Edgard agora percebia o reflexo das lágrimas no rosto da menina.  Edgard se curvou e aproximou-se. Ela começou a gritar.

- Não, não, por favor! – implorou a menina.

- Cala a boca, garota. – a voz de Edgard era baixa e firme.

De perto, a menina parecia um fantasma. Uma imagem do passado de Edgard, dos seus tempos de Palmira.  Ela tinha os olhos de Jandira. Jandira era a irmã mais velha do Galeto. Linda em sua brejeirice, Jandira olhava para os moleques da vila com o desprezo que três anos de diferença lhe permitia. Eram crianças.  Jandira só queria a companhia de homens mais velhos. Edgard, azarado, era garoto. Um dia, um homem mais velho quebrou o pescoço de Jandira. E os moleques da rua foram privados até mesmo do desprezo de sua musa. 

No horror dos olhos daquela garotinha, Edgard viu o horror de Jandira. O medo diante do abuso. O último olhar de Jandira para seu agressor não fora muito diferente, pensou.

- Qual é o seu nome? – perguntou para a menina que chorava baixinho.

- S...Sarah...

- Presta atenção, Sarah. Eu não quero machucar você. Mas não tem jeito.
Sarah começou a chorar mais alto, peito cheio de pavor.  Edgard cravou o facão na parede rente à cabeça da menina. Ela congelou.

- Agora, presta atenção. Se eu não fizer isso, eles vão matar minha nenê.  Acho que a gente pode chegar num acordo.  Você escolhe o dedo. Eu faço o serviço mais rápido que der. Você nem vai sentir direito. Eu levo o dedo, mando pro seu pai, ele paga o resgate, você sai daqui viva. Se você se negar e eu sair daqui sem o dedo, eles matam minha filha. Então, acho que você sabe que isso não vai acontecer. Se você me ajudar, vai ser melhor.
Sarah parecia prestes a entrar em choque, na corda-bamba entre desespero e loucura. 

 Edgard levou a mão ao pescoço dela. 

- Escolhe – ameaçou.

Sarah olhou para as mãos. Chorou. Finalmente, estendeu o dedo mindinho da mão direita.

- Tem certeza? – perguntou Edgard.

- É o único que eu não uso nas aulas de violão... – murmurou a menina.

O grito da garota reverberou por todo barraco.  Edgard saiu do quarto carregando um pano ensanguentado enrolado. 

- Ninguém entra até eu voltar com curativos. – Disse ele para o marginal de guarda. Na porta do casebre, Pereira pediu pra ver o serviço. O dedo, empapado em sangue, era indistinguível de uma salsicha, ou de um rabo de ratazana, não fosse a unha e o pedaço de osso exposto. Era pequeno, curto, inchado. Pereira desviou o olho. 

- Não sei como você consegue, mano.

Edgard não respondeu. Embrulhou o dedo no pano e seguiu seu caminho. Mancando levemente.



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