Cada dia da nossa vida é de um jeito. Sem regras ou com regras.
De qualquer forma, nada é igual.
Aqui cada dia é dia de um texto diferente.
Quer sair da rotina? Fica com o Salada!

segunda-feira, 2 de março de 2015

Evidências

Por Rodrigo Amém

Quando a porta do camburão abriu, a saraivada de flashes fez Edgard se encolher. Instintivamente, tentava proteger o rosto das luzes. As mãos algemadas às costas o obrigavam a virar o rosto para dentro do carro de polícia. Um puxão forte em seu cabelo o trouxe de volta aos holofotes. Era a mão do Delegado Roger, expondo sua presa à mídia.

As perguntas gritadas dos jornalistas se sobrepunham umas às outras, num alarido ensurdecedor. Debaixo daquela surra de luz e som, era difícil para Edgard manter o corpo ereto. Mas, sempre que ele se curvava em direção ao solo, a mão disciplinadora de Roger esticava sua coluna de volta à posição ereta.

As perguntas eram um confuso misto de indagações redundantes e pedidos de pose para fotos. Roger não respondia. Ele apenas aproveitava o enxame de microfones para dizer o que achava conveniente. Agradeceu a colaboração dos policiais envolvidos, enalteceu a importância do serviço de inteligência, assegurou o público de que a cidade dormiria mais segura depois da captura do mais terrível serial killer de nossa história.

-       É verdade que o senhor usou de tortura para capturar o Açougueiro, delegado?

A pergunta, feita um decibel acima do burburinho da coletiva, calou a todos. Os olhos de Roger se inflamaram por um segundo, enquanto ele varria a multidão em busca do desagradável inquisidor.

Os olhos de Roger encontraram Lucas. Jovem, magro, cabelos castanhos grandes e desgrenhados,  uma paródia de barba despontando descuidadamente aqui e ali. De braço levantado, Lucas não se escondia.

Roger se deu conta da própria contrariedade, respirou fundo e adotou um tom professoral.

- Absolutamente. Nossa equipe está nas ruas para cumprir a lei e fazer valer os direitos dos cidadãos. Quem tortura não é a polícia. O que nós fazemos é um trabalho profundo de investigação. Tortura é outra coisa. Tortura é entrar num convento e fazer uma chacina com crianças órfãs e freiras.

- Quais são as evidências da participação deste suspeito na chacina do orfanato? – interrompeu Lucas.

- Temos fortes indícios que aquele crime foi cometido pela mesma quadrilha responsável pelo sequestro da menina Sarah. São criminosos bárbaros, capazes de decepar dedos de crianças para coagir o pagamento do resgate.

- Senhor delegado, o senhor me desculpe, mas um não vejo a conexão entre esses crimes. – insistiu Lucas.

O burburinho aumentou, os flashes ficaram mais intermitentes, a medida em que Roger titubeava catando palavras.
- Um criminoso violento foi tirado das ruas. Uma vida de uma criança inocente foi salva. A polícia cumpriu o seu papel de dar segurança aos cidadãos. Quem vai julgar o suspeito e o nosso trabalho é a justiça. E eu tenho toda a tranquilidade de que tivemos sucesso em nossa missão. Sem mais perguntas.

Algumas horas depois, Edgard caia de joelhos dentro de uma cela de cadeia e as grades pesadas se fechavam atrás dele com um eco metálico. Ao se levantar, Edgard reparou uma presença no beliche superior.

- Edgard, meu velho! – de olhos arregalados, Leo sorria amarelo para seu novo companheiro de cela.


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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

De repente

Por Marcela de Holanda


— Carla!


— Oi. Nem tinha te visto aí. Tudo bem, Marina?


— Tudo. Agora tá tudo ótimo. Casei. Estou esperando meu primeiro filho...


— Nossa. Parabéns. Como o tempo passa, né?


— Pois é. Tem o que? Oito anos? Acho que é isso, oito anos que você desapareceu do nada, parou de responder minhas mensagens e atender minhas ligações.


— Oito anos? Tudo isso?


— Tudo isso. Mas não se preocupa, eu demorei uns três anos mas achei uma nova melhor 
amiga.


— Olha, Marina. Eu não sei nem o que te dizer. Desculpa. Eu sei que foi muita covardia da 
minha parte sumir sem dar explicação. Mas...


— Mas o que? O que aconteceu? O que foi que eu fiz? Eu juro que pensei muito mas não 
consegui imaginar nenhuma razão para você se afastar sem me dar nenhuma satisfação. A gente se via todos os dias. Você era tratada pela minha família como se fosse minha irmã. 


— Eu sei. Eu sei. Você não fez nada. Por isso eu não tive coragem de falar qualquer coisa. Eu cheguei da sua casa, fui dormir e quando acordei no dia seguinte eu já não era mais sua amiga. Eu simplesmente sabia que não era. Sabia que não ia conseguir olhar mais para você porque você ia perceber. E ia querer uma explicação. E eu não saberia o que dizer. Mas sabia que não queria fazer mais nada com você. Me desculpa. Realmente. Eu não sei porque isso aconteceu.

— Nossa. De todos os motivos que eu cogitei nenhum era tão ruim quanto não ter motivo nenhum. Você sabia que eu perdi meu pai na semana seguinte? Você imagina o quanto eu precisava de você? Mas ouvindo você falar agora eu acho que foi melhor assim mesmo. Você não era o tipo de pessoa que eu pensava que era. 


— Não. Eu não sabia. Sinto muito. Mas não foi minha culpa, sabe? Foi uma coisa incontrolável. Para você ter uma ideia. Lembra de como eu era viciada em chocolate?


— Claro que lembro. Eu sempre estava acima do peso porque comia junto. E você não engordava nada.


— Então. No mesmo dia em que eu acordei e não era mais sua amiga eu também acordei e não queria mais comer chocolate.


— Ah, tá. Aí sim. Foi um desequilíbrio mental grave então. Chegou a ser internada?


— Para. É sério. Só que uns dias depois eu já queria comer de novo. Mas como eu nunca mais tive vontade de ser sua amiga, eu não achei justo e não comi mais chocolate.


— Poxa. Quanta consideração. Obrigada.


— Ouve. Eu sei que eu te magoei. E que o que eu fiz não tem perdão. Mas saiba que eu nunca deixei de desejar que você fosse feliz.


— Eu também. Apesar da raiva, de não compreender e tudo. Eu sempre torci para que você estivesse feliz em algum lugar.


— Obrigada, Marina. Você sempre foi uma excelente amiga.  E vai ser uma mãe maravilhosa. Tenho certeza.


— Obrigada. Eu também acho que sim. Toma.


— O que é isso?


— Não era esse o seu chocolate preferido? Pode comer. Se liberta. A vida seguiu e eu também.


— Obrigada. Quem sabe a gente não marca de sair para conversar melhor e...


— Não. Melhor não.


— É. Tem razão. Bom, de repente um outro dia a gente se esbarra por aí.


— É. De repente. Quem sabe?



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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Se eu fosse


Por Marcela de Holanda


Não mudar é a certeza de morrer sem avançar nenhuma fase no jogo. Mudar dói. Não mudar corrói entre um café e outro, dia a dia. Viver dentro das possibilidades do corpo atrofia a alma. É preciso expandir. É preciso transcender.  Sem coragem não se vai nem do banheiro à cozinha. Com coragem você vai até para lugares que não existem. Você cria novas fronteiras e vai as empurrando até o infinito. Esqueça tudo que trava. É preciso esquecer. Voltar ao estágio inicial, da criança que não sabe do que não é capaz e, por isso, é capaz de tudo. Se amar é possível, o que não será? Acreditar e se jogar. Cair, cair, cair. O fundo? Bem, o fundo não existe.

      
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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A vida do duplo

Por Rec Haddock


João Genaro Silva e Gaulês de Menezes Dantas nascem ao dia 20 de Janeiro de 1922, na mesma maternidade. Colocados em berços vizinhos se observam.

Em 3 dias, João é levado dali pelos seus pais. 

Aos 8, deixa seu irmão mais novo cair de cima de um muro. Leva a maior surra da sua vida.

Aos 12, seu pai lhe paga uma profissional. É o primeiro de sua classe a entrar na vida adulta.

Aos 18, é enviado à guerra. Solicita um cargo administrativo por medo de matar alguém.

Aos 21, volta, veterano, sem puxar o gatilho em combate ao menos uma vez. Ótimo estrategista, matou milhares das mesas em que sentou.

Aos 26, se forma advogado. Sua mãe nunca ficou tão orgulhosa quanto agora.Aos 27, casa com Mariana Melo Mendonça. É o último de sua antiga classe a ser laçado.

Aos 36, tem seu quarto e último filho. Não queria que sua mulher ligasse as trompas, mas ela o fez mesmo assim.

Aos 49, vira avô. Chorou como só tinha feito no dia em que o Japão se rendeu.

Aos 53, perde seus pais. Apesar do orgulho da família que construiu, se sente só pela primeira vez na vida.

Aos 61, perde seu primogênito para a ditadura. Pior que enterrar um filho é não ter corpo para velar.

Aos 62, pega seu neto fumando. Faz com que ele coma todo o maço de cigarro para que nunca fume de novo.

Aos 69, acerta a quina na mega-sena. Volta para a Europa, com sua esposa e não consegue decidir se prefere Florença ou Barcelona.

Aos 73, vê seu neto participar da criação do site Yahoo!. Não faz idéia do que isso virá a Significar.

Aos 74, tem um AVC. Levado ao hospital, só encontra vaga em um quarto compartilhado.

João Genaro Silva e Gaulês de Menezes Dantas dividem o quarto no hospital São Francisco, vitimas do mesmo mal.

Gaulês olha para João e pergunta: "E aí? O que você achou?".

Aos 74, João responde: “Foi bom enquanto durou”.



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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Pequenas Confissões - texto 9 - Coincidência

Por Amanda Leal

Ele me falou que estava confuso e não sabia ao certo o que estávamos vivendo. Ele me pediu um tempo, já era a quarta vez que isso acontecia. Dizia que me amava, mas ao mesmo tempo tinha dúvidas.

Eu estava decidida a terminar, mas eu gostava dele  e ao mesmo tempo eu já estava insatisfeita com tamanha indecisão. O tempo lhe foi dado e eu fiquei leve. Um tempo pode até funcionar pra muita gente, mas para mim não. Já era a quarta vez e essa me soou como última.

Conversei com uns amigos e decidi sair e me divertir.  Encontrei um amigo de infância, eu estava super  animada e bebi um pouco além da conta. Ficamos.

Quando a noite parecia já terminar eu encontro com o meu recém ex-namorado, exatamente depois de um beijo delícia no amigo da infância. Naquele momento eu tive certeza: terminamos.

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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Contramão


Por Marcela de Holanda


Ele era o que se pode chamar de diferente. Ele não fazia sentido em um mundo em que o sentido andava na contramão. Quando nasceu, não chorou. Ninguém ousaria chamar de choro, embora expulsasse o ar dos seus pulmões, tamanha era alegria que ele era capaz de expressar por estar ali, era mais um grito de comemoração, uma declaração de liberdade. No começo, encantava pelas suas peculiaridades, mas conforme foi crescendo elas começaram a incomodar. Recusava-se a competir em qualquer circunstância. Deixava sua mãe irritada quando saíam na rua porque queria parar para conversar com todos os sem teto.  Não conseguia compreender, precisava perguntar, ninguém oferecia uma resposta satisfatória para aquela situação e tudo que sua mãe podia dizer era que as coisas eram assim mesmo e que eles não podiam parar, que era perigoso. Um dia lhe disseram que ele tinha cabelos lindos de fazer inveja. Daquele dia em diante, raspou a cabeça e nunca mais deixou crescer mesmo diante de protestos inconformados e pedidos de namoradas. As namoradas o admiravam enormemente mas ao mesmo tempo não suportavam ficar muito tempo com ele. Ele as exasperava, elas não conseguiam o compreender com aquela ausência de ciúmes, com aquela calma inabalável. Esse menino não existe! Nesse ponto, todos concordavam. Difícil era respeitar suas escolhas, sua alimentação saudável, sua consciência ambiental, seu engajamento político. Para a maioria, era considerado um chato ou uma fraude. Possivelmente alguém que esconde um segredo inominável. Mas ele era só ele. E ele era assim, simples assim. Aos 18 anos, presenciou um grupo de adolescentes espancando um cachorro na rua. Resolveu interferir. Apanhou. Não revidou. O cachorro fugiu. Apanhou. Não revidou. Apanhou. Não revidou. Partiu desse mundo sem uma raiva no coração. Pior para o mundo. Ponto para ele que para cá não voltou mais.


      
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terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Aos caçulas

Por Rec Haddock


Rio de Janeiro, 25 de Fevereiro de 2015

Irmãozinho,

Não é segredo pra você que durante viagens a gente tem oportunidade de ver coisas novas e voltar mudado, você é um cara mais viajado do que eu. Esta que acabei de fazer me deu a oportunidade de pensar bastante em mim mesmo e na minha relação com as coisas e pessoas.
Por muito tempo eu encarei a nossa relação de uma forma muito pouco saudável, e na viagem percebi isso. A nossa diferença de idade sempre foi um peso pra mim, no sentido em que eu tinha sempre que saber mais e ser melhor do que você (na minha cabeça), por ter vivido muito mais tempo. 

Certamente, por isso, eu te causei muitos problemas e podei muitas potencialidades que você ainda tem aí dentro de si. É muito mais fácil acreditar que eu sei mais e ponto, e te diminuir do que engrandecer a mim mesmo para te superar, entenda.
Acho que te devo desculpas por isso.

Agora eu percebo com clareza o quanto você é um cara fantástico, que sabe muito mais do que eu de determinadas coisas e é bem melhor que seu irmão em outras tantas. Espero que a sua viagem faça você me ultrapassar em mais frentes ainda. Eu espero também poder te ajudar a me superar sempre que for necessário. Por isso sempre que você precisar de mim pra qualquer coisa, fale. Se antes não estava, agora estou aqui pra isso.

Te amo.
Boa viagem.
Vai devorar esse mundo, garoto.


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